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Roteiro para Aïnouz vol. 2, de Don L: a luta pelo resgate da história e a revolução

Noah Brandsch

Roteiro para Aïnouz vol. 2, de Don L: a luta pelo resgate da história e a revolução

Noah Brandsch

Neste artigo, abordamos o álbum "Roteiro para Aïnouz vol. 2", de Don L, lançado dia 26/11, fazendo um diálogo sobre a necessidade de resgate da história sangrenta de colonização, e como esse álbum, abertamente socialista e revolucionário, inspira e provoca o sonho por uma sociedade diferente. Aqui, também debatemos brevemente sobre a estratégia guerrilheira, reivindicada em suas músicas e entrevistas.

No dia 26/11, o cantor cearense Don L. lançou o segundo volume do álbum Roteiro para Aïnouz, fazendo uma referência ao cineasta cearense Karim Aïnouz, dando muito ao que falar e a elogios no mundo do rap brasileiro, e na vanguarda da própria esquerda.

O álbum, que foi chamado por muitos como "a trilha da revolução brasileira", traz três tempos históricos dentro de si, sendo eles o passado colonial, a atualidade, e o momento da revolução. Nesses três tempos, Don L. traz a dialética da luta de classes que, além de ser o motor da história, permeando cada som, se colocou como motor e inspiração para a criação do álbum e para a vontade de mudança.

Neste texto, iremos explorar os três tempos/ as três histórias que permeiam seu álbum, fazendo um debate com a necessidade de um resgate de nossa história de resistência, a inspiração e vontade de luta que o álbum traz, e a estratégia para a revolução brasileira, dialogando com o que o compositor coloca para a "volta da vitória": a guerrilha.

Justiceiro, o passado colonial e a necessidade de resgatar a história:

Nas faixas em que o rapper expõe esse passado colonial e sangrento, talvez sejam as que mais resgatam a necessidade de conhecer a própria história, isso fica explícito sobretudo nos Interlúdios 1 e 2, onde há um pastor colocando que se você não carregar, conhecer e escrever a sua história, quem o fará é o diabo.

Don L, já na segunda faixa após o Interlúdio, conta a história de Vila Rica (cujo nome da faixa é o mesmo), posteriormente com o nome trocado para Ouro Preto, que foi fundada em 1711 por bandeirantes na chamada “corrida do ouro”, onde a coroa portuguesa e as elites locais utilizavam da mão de obra de africanos escravizados para enriquecer seus bolsos com a mineração. Na trilha de vila rica, assim como na auri sacra fames (11.), é exposto todo o sangue derramado pelos colonizadores em busca da maldita fome do ouro (significado da expressão latina “auri sacra fames”). Isso fica explícito tanto em parte do refrão da 11° faixa, onde o eu-lírico canta em duas vozes de estéreos diferentes “fome do ouro, me contaminou” repetidas vezes; quanto na própria letra corrida, em que, por exemplo, na faixa vila rica, diz:

por cima de sangue derramado
já fomos quilombos e cidades,
canudos e palmares,
originais e originários,
depois do massacre ergueram catedrais,
uma capela em cada povoado
como se a questão fosse guerra ou paz,
mas sempre foi guerra ou ser devorado
devoto catequizado, crucificai em nome do crucificado

Também nessa faixa, trazendo uma disputa por Jesus e retratando a hipocrisia dos colonizadores que utilizaram o nome de Cristo para crucificar outros povos, continua:

seus Deus é o tal, metal, é o capital,
é terra banhada a sangue escravizado
Jesus não estaria do seu lado!
Jesus não estaria do seu lado!

Voltaremos em breve para essa questão.

Antes disso, um elemento fundamental de se trazer é que, nas três faixas que retratam o passado colonial: vila rica, auri sacra fames e bingo, os eu-líricos se colocam como uma espécie de justiceiros, Robin Hoods brasileiros, um grupo armado que cavalga pelas matas da colônia saqueando ouro dos colonizadores, libertando escravos das senzalas, entrando em conflito e matando bandeirantes, senhores de escravos, sertanistas [1] e soldados do rei gringo (Portugal), “cobrando o quinto” [2] ao estilo revolucionário. Essa espécie de “bandido”, a que “não fecha com polícia” como dizem as letras da música bingo, representam uma resistência contra os colonizadores e escravocratas, e também dialogam com o L de “Don L”, que representa “louco”, como diz o rapper em entrevista ao Rap Falando: um louco que rouba o ouro saqueado de volta, e que nas letras saqueia a história dos vencedores para contar a história da resistência!

Outro momento em que o autor, de forma extremamente poética, retrata a resistência contra a colonização, é quando coloca a força da natureza que resiste à exploração irracional do ouro e da colonização, no refrão e no início da música auri sacra fames:

o ouro afunda no mar!
madeira fica por cima!
a ostra nasce do lodo,
gerando pérolas finas!

Trazendo um debate atualíssimo sobre a destruição e degradação do meio ambiente causada pelo capitalismo e seus governos. Na música pela boca, inclusive, coloca que, após a revolução: “suas empresas agora são do povo, suas terras são florestas de novo”.

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Retomando sua abordagem sobre a hipocrisia de “crucificar em nome do crucificado”, o processo de batalhar pela memória de alguém que esteve lado a lado dos oprimidos e explorados contra o Império Romano, mas que historicamente teve seu nome usado pela Igreja e pelos colonizadores para escravizar e explorar outros povos, faz parte da resistência desse justiceiro filho de um estupro [3], desse “bandido que não fecha com polícia”. No final de vila rica, ao canto de Mateus Fazeno Rock, coloca:

toda canção do meu amor na estrada,
em direção ao sul.
eu tenho uma cavalaria inteira em minha retaguarda,
em direção ao sul.
eu sei que é pouco mas eu não vou sem levar alguns,
se é tudo pelo ouro, eu vou levar algum.
mas vim foi pra cobrar os furos.
eu taquei fogo numa carruagem,
tomei a cruz do peito a céu aberto,
e pus Jesus do lado certo!

Arte do artista Cueca de Mesa, no Instagram.

Como desenvolveu Trotski, a consolidação do capitalismo mundial se deu de forma desigual e combinada, com os países centrais espoliando recursos e mão de obra dos países coloniais e semicoloniais, fazendo com que as burguesias nacionais sejam submissas ao imperialismo e igualmente inimigas da classe trabalhadora e de todos os setores oprimidos, jogando fora qualquer ilusão com algum tipo de “burguesia progressista”. Aqui não foi diferente, desde seu início a formação do capitalismo brasileiro se deu de forma dependente em relação, primeiro à sua metrópole Portugal, que usava da mão de obra escrava e dos recursos naturais para proporcionar a acumulação de capital à coroa e à burguesia portuguesa, além das elites que iam se constituindo no próprio território da colônia, em sua maioria descendente direta de Portugal; depois, à Inglaterra, na época em que o Brasil ganhou sua falsa independência em 1822, em que as dívidas de Portugal com os ingleses passaram para o Brasil; e hoje, subordinado aos EUA, FMI e às grandes corporações financeiras, deixando a herança escravista do latifúndio e das casas grandes gerar fome e miséria.

Sobre o tema: As influências de Trótski sobre o dependentismo

Cada verso desses sons resgatam a necessidade de expor toda a miséria que o capital, a “maldita fome do ouro”, deixou por onde passou e por onde passa. Também trouxe a vontade de recontar a história como forma de fazer justiça pelo passado, e para transformar o presente. Como diz o marxismo e os Interlúdios: ser sujeito de sua própria história.

O presente e o sonho de um futuro diferente:

No segundo tempo histórico do álbum, Don L retrata o presente. Um presente apaixonado, retratado em um casal que está "com o outro para o que for" [4] nas curtições e festas, nos momentos a sós, nas dificuldades e heranças de miséria deixadas pelo capital, e também no sonho por um mundo diferente.

O interessante é que os tempos se dialogam, o presente nas letras é continuação do passado. A exploração de vila rica e o ouro que afunda no mar hoje se tornou a cidade com rios canalizados pela qual Don L passa, como escreve na música contigo pro que for:

O que é ser marginal aqui
Eu já era marginal de onde eu vim que é à margem
Dessa capital entre marginais que um dia foram rios
E agora são esgotos entre corpos frios e carros ilhados

Desviei de balas de verdade
Era gueto ford
Não são balas de borracha os meus black blocs
É, porcos não me dizem rota
Eu sou bad boy, quero minha bad gal em trilha nova

E também como retrata o verso da música trilha pra uma nova trilha (18.), expondo que nessa sociedade, o capitalismo, tudo passa pela exploração, desumanização das relações humanas e falta de perspectiva dentro desse sistema:

sangue pelo lítio do meu Samsung
​guerra por cobalto no meu Apple
​lendo sobre il Sung
​cinco propaganda sobre um paraíso em Cancun
​sério
​outro trampo no domingo
​eu tenho dormido pouco
​e a conta não fecha
​ficar rico pra levar uma vida digna
​quantos conseguem?
​е perder a dignidade nеssa

O “caiçara filho de um esturpo”, que com seu bando ia saqueando ouro, libertando as senzalas e “deixando eles puto”, hoje, em seus rolês pela cidade, continua sendo odiado pelos descendentes dos senhores de engenho e capitães do mato que ele no passado justiçava. Em élewood (15.), coloca:

bora fazer alguma coisa louca (vem comigo)
​hoje eu tô foda, vilão rico
​e a prova disso é que incomodou a polícia
​ela tá foda, vilã rica
​pra essa burguesia paulista eu sou bandido
​ela é puta
​e eles tem ódio porque não... chupa
​julga me como le gusta (foda-se)

Essas músicas retratam as curtições de um casal na cidade que aparenta ser São Paulo, mas uma curtição que foge dos padrões da moralidade burguesa, quadrada e controlada. É uma curtição que entra nos espaços da cidade e nas brechas do capital e do rio ratificado; entra nas paredes do graffiti e na fuga dos enquadros da polícia. Exprime um sentimento de uma liberdade marginal que resiste à construção da história de colonização. Um sentido profundo de união para um futuro diferente.

a todo vapor, faixa 3, também dialoga com esse sentimento. A música é dividida em duas partes: na primeira, o eu-lírico é uma pessoa que está angustiada pela sua vida, sendo perseguida pela polícia e, como diria Racionais, “contrariando as estatísticas”. Na segunda parte, com uma mudança para um beat mais rápido e animado, a pessoa começa a sonhar uma possibilidade de mudança, imaginando:

Eu que um dia me senti um gênio
​Quando imaginei a favela usar as armas dela
​Naipe marighella

e aos poucos foi indo cada vez mais alto em sua imaginação, com vontade de viver mais para realizar tais sonhos, e se coloca a toda disposição para realizar tal mudança. O pré-refrão e refrão são muitos simbólicos nesse sentido, cantando diversas vezes em diferentes tempos: “têm sido um voo foda!”, “pânico de nada” (se referindo a uma outra música do álbum que passa no futuro), e, claro, o nome da música “a todo vapor!”.

O álbum finaliza, e não poderia ser diferente, com trilha pra uma nova trilha, uma música praticamente só o refrão, utilizando de “todo o vapor” que o álbum deu para se colocar à disposição de um mundo diferente:

Se fosse pra viver por isso
​eu não teria a bem dizer morrido pelo que acredito (quase)
​ eu continuo na disposição primo
​se for pra nós viver por isso
​eu prefiro morrer pelo que eu acredito
(...)
A trilha pra uma nova
​uhh
​ estrada pra uma nova
​ uhh
​a trilha pra uma nova
​ novos sonhos
​ nova trilha
​novo filme
​a trilha pra uma nova
​nova nova nova
​uhh

A demonstração da vida sendo vivida no presente em meio a todas as contradições impostas pelo capital, se ligando ao passado e com a vontade de sonhar alto para mudar o futuro é algo que Don L, com todas sua equipe e participações especiais, conseguiu fazer, de forma poética e motivadora.

"A volta da vitória": luta, guerrilha e a Revolução Brasileira:

O futuro, como em todo o álbum, dialoga com o passado e o presente. O sonho de uma sociedade diferente que foi expresso no presente se concretizou com a revolução, permeando 6 músicas.

Duas delas, enquanto recomeça (05.) e primavera (06.), são uma ponte direta das músicas do presente para o futuro. A primeira mostra como o casal que curtia pela cidade seguiu unido durante a revolução, agora desfrutando e se amando nessa nova sociedade que recomeça:

nós derrubamos status
​implodimos estátuas
​invadimos mansões
​lá pela quinta, eu fiz um quarto
​ela comanda a trincheira
​ eu sou do time dos assaltos
​hoje nós temos a noite inteira
​conjunto São Pedro style
​ninguém invade

A segunda, se coloca como uma continuação dos sonhos de a todo vapor, é a visão do eu-lírico em ver e participar de seus sonhos que florescem como a primavera, um florescimento de forma coletiva. Junto a isso, levanta a necessidade de não abandonar a luta e, parafraseando Don L que parafraseou Che Guevara, “hay que endurecer pero sin perder la ternura, jamás!”. Essa realização do sonho, do florescimento e da luta fica notório no refrão:

eu que sou de onde a miséria seca as еstações
​vi a primavera
​florescеr entre os canhões
​e não recuar

​eu que sou de guerra
​dei o sangue na missão
​ de regar a terra
​s​e eu tombar vão ser milhões pra multiplicar

E continua:

a única luta que se perde é a que se abandona e nós nunca
​nunca abandonamos luta

​nunca nunca
​hay que endurecer sem nunca sem nunca perder a ternura
​meu swagg, meu estilo, eles não vão ter
​nunca, nunca

Nas outras quatro músicas, pânico de nada (04.), pela boca (07.), volta da vitória (08.) e favela venceu (09.), é colocado mais concretamente o processo da revolução. Na primeira, já começa direto e reto: “vejo uma viatura em chamas”, e vai narrando o processo de tomada da cidade, tomada de quartéis, rendição de guardas e libertação dos presos, sem “pânico de nada”! É interessante notar nessa, também, que se retoma o diálogo com a religião já expressa em vila rica; aqui, o refrão diz:

Pânico de nada
​Eles sangram como eu sangro
​Pânico de nada
Vai ser como quiser Xangô

Xangô é o orixá presente em algumas religiões de matriz africana que representa a justiça, com raios, trovões e fogo.

Na segunda, é colocado bastante um sentimento de vingança a todos os colonizadores, exploradores e capitalistas que construíram toda essa miséria:

e dizem que somos perigosos
​eles que mataram, escravizaram, torturaram na cela
​e confinaram na favela (milhões nossos)
​dеpois querem recontar a história
​е me negar os fatos
​eu prefiro recontar os corpos
​pra gente medir o estrago
​se quiseram me negar os fatos
​imagina se iriam dividir os pratos
​imagina se iriam dividir a plata
​eu prefiro recontar os corpos
​pra gente medir o estrago
​pode até contar com o seu antecipado

Hoje, com a revolução, são eles que morrem pela boca. Essa expressão pode ter tanto um sentido literal, em que esses torturadores literalmente morrem; quanto um sentido metafórico, em que a história de massacre e de colonização que era contada pelos vencedores, hoje morre pela boca (por onde se contam as histórias) e é contada uma nova história; aqui se coloca, novamente, a necessidade de ser sujeito da própria história.

Na volta da vitória, "us manos e as minas" estão com "as armas pro ar". Essa faixa retrata o desfile da vitória após a revolução, e como diz a música, nós, que fizemos a revolução "descendemos desses sonhos", aqueles que havíamos sonhado em a todo vapor, primavera e outros. Duas questões marcantes nessa música, que chamam atenção e que mostram uma estratégia correta, são: 1. a reivindicação da independência de classe, que ainda mais em momentos mais agudos da luta de classes tal como é em uma revolução (retratada na música), ou com um aprofundamento de uma crise, como a que vivemos hoje, são imprescindíveis. Nesses versos, se mostra que nos momentos assim não há como conciliar as classes ou ficar em cima do muro:

​lutar do lado errado é já perder a guerra
​do lado certo a gente vence mesmo quando perde
​e quando vence, vence duas vezes

2. o papel cumprido pela polícia na sociedade capitalista, que serve como cão de guarda da burguesia desde sua formação até os dias de hoje, um órgão repressor à juventude negra e periférica e à qualquer mobilização social, e não cumpre papel de aliado em momento algum quando se refere à luta da classe trabalhadora, do movimento negro, feminista e LGBTQIA+, ao contrário do que dizem algumas organizações que se reivindicam de esquerda. Na música, Don L diz “nós prendemos a polícia”, e pede para repetir mais duas vezes, sendo uma delas em coro; e continua: ​”vão dividir celas com os financiadores delas, investidores da miséria”.

Sobre o debate da polícia, duas recomendações:
A luta para acabar com a polícia é a luta para acabar com o capitalismo

Nos últimos tempos, um “slogan” que tem se tornado bastante recorrente e que, inclusive, setores liberais têm se apropriado para esvaziar pautas de lutas e tentar exemplificar o mito da meritocracia, é o “favela venceu”. Don L traz esse nome para sua 9° música, contrariando todos esses setores liberais e mostrando que a favela venceu, justamente, com uma revolução, e não com uma ascensão individual que na maioria das vezes é até impossível, ainda mais com o aprofundamento da crise em que vivemos. Essa música também simboliza outro slogan, “é nós por nós”, quando diz no refrão:

favela venceu
​a gente num enterra, a gente planta
​a gente num ganha, a gente vence
​a gente num pede, a gente manda
​favela venceu
​a gente num curte, a gente ama
​a gente num quer, a gente tem que
​a gente merеce, a gente banca
​favеla venceu

Agora, com uma abordagem um pouco diferente. Um elemento que, principalmente nessa parte da revolução é retratado, é a guerrilha como estratégia para a revolução brasileira. Isso fica explícito quando cita diretamente “guerrilha urbana” em pânico de nada, ou outros guerrilheiros e experiências guerrilheiras como Marighella, Rojava, revolução coreana, Mao e Ho Chi Minh (ainda que as últimas duas não sejam propriamente guerrilhas no sentido foquista desenvolvido na revolução cubana e outros lugares, mas sim partidos exércitos que atuaram com a estratégia da Guerra Popular Prolongada); assim como nos próprios vídeo clipes das músicas, a guerrilha é aparente. Antes de mais nada, é importante ressaltar que “pegar em armas” não condiz necessariamente em uma estratégia revolucionária correta, como assinala o livro “Estratégia Socialista e Arte Militar” [5] em debate com a estratégia guerrilheira foquista desenvolvida pro che Guevara:

Mas ainda que o pacifismo e o reformismo caminhem lado a lado, isso não significa que não haja também um reformismo armado, ou que a luta armada não possa se opor à estratégia revolucionária. Em outras palavras, a política que dá origem à luta armada não necessariamente é uma política revolucionária.

Principalmente após o processo da Revolução Cubana, em 1959, vários grupos e partidos, majoritariamente na América Latina, começaram a olhar para a estratégia foquista e aderir a diversas guerrilhas, sejam elas rurais ou urbanas. Esse processo se intensificou mais ainda com a operação Condor, em que o imperialismo ianque financiou e patrocinou diversas ditaduras sanguinárias pelo continente americano, pois, frente ao imobilismo e pacifismo da maioria dos PCs stalinizados, houveram diversos rachas de grupos que aderiram à guerrilha, inclusive o próprio Marighella que é citado no álbum, em 1968.

Brevemente falando, da estratégia guerrilheira decorrem três principais problemas: o primeiro, visto que a maioria das guerrilhas se deu em países coloniais ou semi-coloniais, passa pela incompreensão do caráter da revolução e de seu sujeito revolucionário. A teoria da revolução democrático popular para os países atrasados, diga-se de passagem, um debate que já havia sido encerrado pelo próprio Lenin na revolução russa e que depois é reabilitado pelo stalinismo e generalizado para a III Internacional burocratizada, passa pela compreensão de que a revolução em tais países seria de caráter anti-imperialista e anti-feudal, mas não anti-capitalista; desse modo, o sujeito revolucionário seria os setores “progressistas” da burguesia e a pequena-burguesia agrária, e não o proletariado. Essa estratégia levou, na prática, a uma conciliação de classes e a um “reformismo armado”, e que, por isso, impedia uma luta consequente tanto contra a burguesia nacional, quanto contra o imperialismo [6]; isso se afasta de qualquer tipo de independência de classe. O próprio Marighella, ao caracterizar a situação do Brasil no momento do golpe, e em seu racha com o PCB em 1968, coloca tais elementos programáticos da “revolução democrático popular” aliado aos setores da burguesia “progressista”.

O segundo, é que a guerrilha não é um partido que se dispõe a criar frações revolucionárias dentro da classe trabalhadora e da juventude, a fim de impulsionar sua auto organização para esmagar os capitalistas [7]. Ao contrário, a guerrilha é um grupo da vanguarda de revolucionários que se destaca dos processos orgânicos da luta de classes para fazer ações a fim de desestabilizar (e em última instância, derrubar) o regime (não à toa, essa estratégia foi adotada, principalmente, nos períodos das ditaduras militares). Sendo assim, se isola dos trabalhadores e de suas estruturas/locais de trabalho, não organizando-os como classe que com um só punho é capaz de derrubar a burguesia. Um exemplo sintomático disso é no próprio Brasil, nos chamados “anos de chumbo”, em 1968, onde houve um processo de luta de classes muito intenso a nível internacional, com o Maio de 68 na França, e a Primavera de Praga na Tchecoslováquia; aqui, houve a ocupação dos estudantes na USP e diversos conflitos com policiais, greves, e a chamada “marcha dos 100 mil”, que se mobilizou contra a ditadura. Nesse momento, a vanguarda revolucionária, corajosa e disposta a dar o sangue pela luta, estava isolada desse processo, pois se concentrava na formação das guerrilhas, ao invés de trabalhar nesses processos para criar frações revolucionárias e impulsionar o movimento com potencial de barrar a ditadura [8]; ao invés disso, os militares capachos do imperialismo reprimiram, decretaram o AI-5 e a vanguarda guerrilheira foi torturada e assassinada, levando à derrota do movimento.

Recomendações sobre a estratégia e atuação de Marighella:
Marighella: um debate de estratégia sobre a guerrilha e a revolução no Brasil (Parte 1) e (Parte 2)

O terceiro problema decorre, justamente, desse isolamento da guerrilha em relação às massas trabalhadoras, pois, ainda que triunfe um processo revolucionário que exproprie a burguesia por condições excepcionais que empurrem a direção pequeno-burguesa (pois tem seu centro de gravidade baseado em uma pequena burguesia agrária para realizar a “revolução democrático popular”, aliada a burguesia “progressista”, anti-feudal e anti-imperialista) [9], esse triunfo passa por fora da auto organização dos trabalhadores em seus organismos democráticos, como os sovietes, que são base para a construção do socialismo. A tomada do poder por fora desses organismos faz com que o novo Estado surja como um Estado Operário, sem burguesia, porém deformado e burocratizado, visto que não têm esses elementos orgânicos da democracia operária; assim, possibilitando uma gradual restauração do capitalismo pela própria burocracia, impedindo o avanço rumo ao comunismo e a uma sociedade sem classes. Isso é visível na Chinae Vietnã, em que o capitalismo e o mercado já foi praticamente todo restaurado (ainda que, evidentemente, diferem do capitalismo liberal), ou em Cuba e Coréia, em que ainda existem bases do Estado Operário deformado, porém que se veem obrigados (muito pela própria pressão imperialista, também), a se abrir cada vez mais ao capital externo e a realizar ajustes econômicos contra a própria classe trabalhadora.

Para se aprofundar nos debates sobre guerrilha e a revolução cubana:
Quatro Estratégias para o Socialismo
ALBAMONTE, Emílio; MAIELLO, Matías. Estratégia socialista e arte militar. Edições Iskra, janeiro de 2020. Capítulo 6: Estratégia militar e objetivos políticos.

Breves comentários sobre a musicalidade do álbum:

O processo de criação das letras e dos feats, segundo o próprio Don L, contou com o estudo de história para que os convidados, Mateus Fazeno Rock, Rael, Giovani Cidreira, Fabriccio, mcs junior e leonardo, Djonga, Terra Preta, Tasha & Tracie, Alt Niss, Luiza de Alexandre, pudessem saber sobre o que estavam cantando e sentir o canto e as emoções dessa história com mais profundidade. Para a composição do álbum, Don primeiro experimentou e realizou seus próprios beats, como conta em entrevista para o Rap Falando (1h20min), novamente. Após isso, Nave e Luiz Café dão aquele arranjo no beat, mix e master que faz com que você pareça estar dentro da música, demais. Nas batidas, mesclando faixas de boom bap e de trap, Don L canta com um flow diferente do comum,que inclusive os próprios convidados tiveram certa dificuldade em se adaptar (1h58min).

Além de ser um álbum que cada som tem uma continuação no próximo som, com cada música se interligando e dando um sentido de um “álbum corrido”, a musicalidade desse álbum dialoga bastante com as letras e expressa seu sentido de resgatar a história, sonhar, e reescrevê-la. As músicas que tem o intuito de propor uma imaginação a um futuro diferente, um sonho que voa alto, são em uma batida mais lenta e marcada, com um boom bap que nos deixa reflexivo. As que mostram a revolução, já tem uma batida mais animada, em trap, com um 808 batendo forte, mostrando a agitação e o calor do momento de uma revolução. Nas faixas que retratam o “justiceiro” que cavalga pela colônia saqueando engenhos, se mesclam os dois, uma batida em trap (e às vezes boom bap) que dão um sentimento tanto de continuidade e perseverança, como se o beat estivesse cavalgando pelas florestas, mas com elementos que trazem a agitação dos conflitos presentes.

Outro elemento interessante de se notar é que, em praticamente todas as músicas, há um coro ou no refrão, ou em uma melodia de fundo, ou nos próprios versos. Esse coro traz um ambiente de grandeza às músicas, e também de coletividade. Um dos coros, da música enquanto recomeça, é um sample de um canto guarani-kaiowá.

Considerações finais:

Podemos pensar nessa obra artística, abertamente comunista e revolucionária, mas sem ser de forma propagandística, e sim de forma autêntica, metafórica e poética, como um elemento de inspiração de luta contra toda a miséria que Bolsonaro, Mourão, os capitalistas e imperialistas impõe à população e à classe trabalhadora. Para isso, trazer um resgate da história à luz do materialismo histórico dialético para nos orientar como responder a essa situação, é fundamental!

Para essa questão, convido o leitor a assistir a mesa 1 do Encontro Nacional da Juventude Faísca, “A crise capitalista: Reforma ou Revolução?”, com Iuri Tonelo e Odete Assis, para pensarmos em como desenvolver uma juventude revolucionária que esteja ligada aos trabalhadores contra toda a miséria que esse sistema impõe, e utilizando, também, a arte e a cultura como forma de nos reviver e batalhar!


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FOOTNOTES

[1Sertanistas: espécie de bandeirantes portugueses que adentravam as matas, escravizando e saqueando indígenas e aldeias.

[2Quinto: imposto de 20% cobrado pela coroa portuguesa sobre a exploração do ouro na colônia. Na música vila rica, Don L diz, após de matar bandeirantes, que é isso que ele chama de “cobrar o quinto”.

[3Na música bingo, Don L canta: “minha pele clara deixa eles puto, por não querer ser um deles, sabendo ser filho de um estupro”. Aqui, se refere ao processo de mestiçagem e “embranquecimento” que os colonizadores tentaram realizar para, em sua visão racista e misógina, “purificar” os africanos escravizados; nesse processo, senhores de escravos estupravam suas escravas para “embranquecer” seus filhos. O eu-lírico se coloca como fruto de um estupro assim, mas sem estar do lado dos colonizadores.

[4contigo pro que for: música 14 do álbum.

[5ALBAMONTE, Emílio; MAIELLO, Matías. Estratégia socialista e arte militar. Edições Iskra, janeiro de 2020. op. cit., pg. 412.

[6Aqui, vale ressaltar que, em Cuba, houve uma exceção, onde a própria dinâmica da luta de classes obrigou a direção pequeno burguesa a expropriar sua burguesia nacional.

[7Diga se, não é um partido leninista

[8Neste caso, nem vale dizer do outro setor da vanguarda PCBista que não havia partido para a guerrilha, mas sim se dissolvido no MDB junto à “burguesia democrática”.

[9Nos processos da China e Coréia, se estava em um momento revolucionário do pós-guerra (uma época de crises, guerras e revoluções, como caracteriza Lênin) e uma decadência do Império Japonês, que havia perdido a guerra. No Vietnã, se passava por um momento de crise do Império Americano, com processos intensos da luta de classes dentro de seu próprio país, fazendo com que camponeses vietnamitas expulsassem bravamente as tropas ianques de seu território.
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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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