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Silvia Viana (FGV): “O reality show é o mundo do trabalho transposto para o espetáculo”

Vitória Camargo

Silvia Viana (FGV): “O reality show é o mundo do trabalho transposto para o espetáculo”

Vitória Camargo

Sílvia Viana é professora de Sociologia da FGV e doutora pela USP. Escreveu o livro "Rituais de Sofrimento", publicado pela Boitempo, em que trata do tema dos realities shows como uma via que revela sobre o mundo do trabalho. Esta entrevista ao Ideias de Esquerda foi concedida a Vitória Camargo, mestranda em Sociologia na Unicamp.

Créditos da imagem: @garatuja.isa

Ideias de Esquerda: Seu livro, que realiza uma análise dos reality shows, tem como nome "Rituais de sofrimento". Por que você escolheu esse nome?

Esse livro foi escrito há uns dez anos e muitos ainda estranham que eu não tenha usado o termo “reality shows” no título, afinal, seria esse meu objeto de estudo. Acontece que é e não é: os realities foram uma espécie de atalho que tomei para tratar de formas sociais que esses programas reproduzem e, em tal reprodução, reforçam. A necessidade do atalho já é uma questão em si, pois, de fato, eu trato da lógica do mundo do trabalho contemporâneo em sua configuração flexível, privatizada, que, como tal, tornou-se uma esfera subterrânea, recentemente nomeada em sua invisibilidade. Mas um subterfúgio nunca é coisa à toa. Bem mais que um descortinamento, pensar a tela da TV como um espelho permite, por um lado, olhar o espetáculo sinistro como norma e, por outro, enxergar a norma em sua bizarrice. Eis o verdadeiro objeto do livro, essa bizarrice que eu chamo rituais de sofrimento.

Então comecemos pelo sofrimento que, nesses programas, não é algo a ser desvelado, pelo contrário, trata-se de propaganda escancarada. Uma novidade em termos de indústria cultural, que sempre usou como justificativa para sua própria existência o entretenimento, o prazer, o descanso, a distração etc. Os reality shows se valem dessa duplicidade. Quando a situação parece muito séria, por exemplo, quando se chega a praticar formas amenizadas de tortura, os produtores aplicam a desculpa de que se trata de mero entretenimento usando sua justificativa-chave: “é só um jogo”. Ao mesmo tempo, são programas que nunca esconderam que sua matéria é o sofrimento. Isso mesmo naqueles que apresentam algum conteúdo em tese prazeroso, como os realities que levam os participantes às compras ou viagens e até mesmo os eróticos: quaisquer atividades são aí postas como penosas. Mas penosas em que sentido? A injunção que organiza esses “experimentos” é sempre a capacidade das pessoas de “se superar”, o que significa que devem, inevitavelmente, passar por cima de sua própria dor e da dor que eventualmente geram aos outros – coisa que fica clara, por exemplo, na música-tema do Big Brother. No caso de um programa de recauchutagem de guarda-roupas, por exemplo, os apresentadores sempre reiteram tratar-se de um trabalho, afirmam que “é cansativo”, que o participante deve “se esforçar” etc. Há ainda uma segunda rodada, em que aqueles que os próprios apresentadores por vezes nomeiam “vitimas”, devem ser humilhados, têm suas roupas jogadas no lixo, são chamados de cafonas etc. Então esses programas cumprem sua função de justificadores do mundo e deles próprios nessa inversão ideológica que acaba por levar a sério o que não passa da mais pura estupidez – o sofrimento sem sentido dos participantes tornado matéria de entretenimento – e escamoteiam o que deveria ser verdadeiramente levado a sério: o fato de que todo esse mais-sofrer não é a exceção, coisa de masoquistas, sádicos, exibicionistas etc, mas a forma de funcionamento do mundo fora da telinha. Cabe notar que tal perspectiva não se restringe aos discursos da própria indústria, a coisa não funcionaria tão bem se os espectadores não tivessem seu olhar desviado por esse golpe de mão. O caso da Carol Konká, por exemplo, foi tratado em termos da maldade ou não da personagem, como se se tratasse de um problema de desvio moral ou psíquico, coisa fora do comum, como se o assédio moral não fosse parte constitutiva do formato dos realities e, mais que isso, como se não fosse elemento estrutural do mundo do trabalho contemporâneo. O que deve ser levado a sério nesses programas é, portanto, sua própria possibilidade histórica de existência. Apenas de trinta anos para cá foi possível que se pudesse televisionar, por exemplo, cenas de tortura como parte do cardápio do entretenimento. E é essa a pergunta que as pessoas têm que fazer: Qual é a lógica que organiza esses programas? Por que eles existem hoje? O que eles nos dizem a respeito do nosso mundo? E essas questões não são feitas. Por outro lado, as pessoas começam a levar a sério o que não deve ser levado a sério, ou seja, o intragável “jogar o jogo”, como algo crucial em conversas de bar, e agora também – inacreditável! – em debates pseudo-políticos relativos à identidade e coisas tais. Como se as tretas veiculadas fossem relevantes para a vida das pessoas, como se fossem algo mais que pecinhas de mercadorias culturais, e mercadorias bem porcaria, diga-se de passagem. Então essa é a malandragem da ambiguidade do discurso: por um lado é só entretenimento, é diversão e, por outro, há que se cumprir a árdua missão proposta: ser capaz de fazer mal a si e aos outros. Nesse discurso, os realities realizam o seu papel na ideologia contemporânea, que é fazer as pessoas participarem daquilo que não faz sentido e não pararem para pensar no sentido real de sua participação. A pergunta não feita, ao fim e ao cabo, é simples: como é possível haver programas que espetacularizam o sofrimento?

IdE: Você desenvolveu a questão do sofrimento. Mas qual seria a dimensão ritualística? Por que entendê-los como rituais de sofrimento?

O primeiro ponto é a compreensão do que chamo de ideologia. Costumamos pensar que se trata de um conjunto de formulações que de alguma forma distorcem a realidade atuando, desse modo, naquilo o que os sujeitos sabem ou deixam de saber. A questão é que ainda que os participantes desses programas saibam que tudo não passa de discurseira – “batalhe”, “sobreviva”, “não desista”, enfim, toda essa parolagem de origem empresarial, com seus “empowerments” e “improvements” –, eles ainda assim fazem o que lhes é ordenado. Mais que isso, levam a cabo as provas das mais cretinas ou violentas com um zelo maníaco. Não são poucos os participantes do BBB que afirmam que quando se encontram no “paredão” a ideia do “jogo” se esfarela e eles passam a agir como se estivessem diante de um batalhão de fuzilamento. A “enganação” funciona porque organiza na prática a vida das pessoas, e é na prática que elas passam a acreditar, independentemente da racionalização que encontrem, ou que lhes seja oferecida, para o absurdo ao qual se sujeitam.

Olhemos mais de perto para esse absurdo. A novidade dos reality shows não está no sofrimento propriamente dito, mas no fato dele não ser dotado de sentido. Nos programas mais antigos da indústria cultural, em novelas ou shows de calouros, o sofrimento estabelece o nexo entre as desventuras dos personagens retratados e o inevitável (e, para o público contemporâneo, nauseabundo) happy end, o calvário justifica a vitória – da heroína casadoira ou do cantor de ocasião. Note-se que esses produtos “clássicos” reiteravam à exaustão o horizonte de ascensão social típico do falecido estado de bem-estar social. Longe do que assistimos em reality shows, que têm em seu núcleo a eliminação e, na conduta correspondente, nada além da “luta pela sobrevivência”, o avesso de qualquer horizonte. Mas a maluquice desses programas se desdobra pelo fato de que qualquer que seja a conduta adotada pelo participante, ela não tem nenhuma relação com a esquálida finalidade da sobrevivência. Nas mercadorias culturais anteriores o desfecho estava ligado às escolhas do protagonista, a recompensa seria devida, portanto, à sua “bondade” ou mérito. Os novos personagens estão em terreno bem mais pantanoso: seu destino não cabe a eles, ao que fazem ou deixam de fazer, mas ao inescrutável gosto da audiência, a alguma prova de regras gelatinosas, à boa ou má vontade de outros participantes, ao arbítrio da produção, ao azar ante alguma roleta ou a tudo isso junto. Trata-se de um melê bastante parecido com a organização do trabalho realizada através dos aplicativos de entrega, que determinam remuneração, rotas ou mesmo a desconexão de motoristas sem que esses consigam ter acesso a um miserável porquê. Eis o paradoxo: quanto mais tênue a relação causal entre esforço e conquista maior o afinco no girar em falso da sobrevida. É precisamente o retrato pintado por Gunther Anders s respeito dos personagens kafkianos que, segundo ele, levam a cabo um ritualismo desprovido de conteúdo no qual, sem saber exatamente o que deles é exigido, cumprem seus deveres ansiosa e meticulosamente. Não deixa de ter lá sua graça observarmos todos os participantes de realities, à beira de suas confortáveis piscinas, passarem todo o tempo montando o quebra cabeça das hipóteses paranoicas a respeito das mais grandiosas traições ou de beijos mesquinhos tendo por base nada mais que suas próprias hipóteses. Nada que um leitor atento de Kafka não perceba na linguagem que sobrepõe infinitamente o “se eu isso” ao “se eu aquilo” ao “se eu não isso” ao “se eu também aquilo”. A coisa fica mais sem graça se lembrarmos do que ocorre a cada rodada da “avaliação de desempenho” na empresa ou quando precisamos prestar algum concurso. Independentemente da seriedade com a qual lidemos com a situação, na hora H lá estamos nós lidando com nosso paredão de cada dia e girando no vazio.

IdE: Sua tese central é de que há uma relação importante entre a narrativa do programa, a ficção e a realidade no mundo do trabalho. Você pode desenvolver isso?

Já tangenciamos a resposta, vamos a seu núcleo. Os reality shows não seriam sequer pensáveis no regime de acumulação anterior pois são produto típico do capitalismo flexível, que já em seu nascedouro tem uma ideia fixa: o mundo já não comporta grande parte dos humanos. A última revolução tecnológica gerou um estado de desemprego irremissível, fixado por essas bandas na imagem dos “inempregáveis”. O estreitamento se amplia a cada rodada. Dado não haver outra forma de existência senão aquela voltada para a acumulação de capital pela via do trabalho, a existência se converte em uma disputa por espaços escassos. Para que não sejamos descartados ou, nos termos de uma esquerda que também assumiu a queda do projeto de uma sociedade salarial como uma realidade inescapável, para que não sejamos excluídos, devemos encarar a guerra de um contra todos e de todos contra um. Apesar de ser evidente que não foi o trabalho que diminuiu, e sim o emprego formal – ou indo além: que, de fato, o desenvolvimento das forças produtivas abriu as portas para crise terminal do valor e o mundo já dispensaria por completo a vida submetida ao trabalho alienado – agimos como se humanos fossem realmente descartáveis. Mais uma vez, independentemente da crença que tenhamos em parte ou na totalidade dessa fantasia, agimos inteiramente de acordo, não mais para “subir na vida”, mas simplesmente para não sermos eliminados. A indústria cultural em sua vocação para a assimilação não fez mais que reproduzir essa lógica, reorganizando-a didaticamente caso haja recalcitrantes pelo caminho. O paredão não apenas ilustra, mas realiza na prática a seleção negativa inventada do lado de cá da tela, seja na multiplicação de processos seletivos, seja nas avaliações permanentes, que são a mesma peneira, mas “de dentro para fora”, rotinizada. Ao redor da seleção, o ritual basilar, desenvolve-se a guerra da concorrência. Guerra de tudo ou nada, na qual os outros são objetivamente os inimigos visto que o mundo foi reconvertido em um imenso jogo de “resta um”. Já o eu, “capital humano”, deve submeter a totalidade de sua existência à produção, sacrifício sem garantia alguma de sucesso, ao qual denominamos “investimento em si”. Sacrifício de corpo e alma que os reality shows reproduzem na forma das provas, mais ou menos brutais, todas elas inescapáveis. Desde que finalizei minha pesquisa não acompanho esses programas por me suscitarem ânsia. Nesse começo de ano, contudo, assisti ao processo seletivo do “Porta dos fundos” e vi a mesmíssima coisa que me obriguei há dez anos: a injunção à eliminação da qual decorrem modalidades diversas de sacrifícios e sofrimentos. Vi o juiz, no caso um comediante, que se compadece e quase chega a chorar por ter que eliminar uma aspirante ao cargo, o outro, mais “realista” encara com virilidade a missão afirmando que as coisas são assim mesmo, só há uma vaga e blábláblá. O mecanismo da eliminação precede a qualidade eventualmente aferida, daí o sofrimento verdadeiro do apresentador que apesar dos pesares não deixa de cumprir sua missão. Não obstante a atmosfera mais amena, sem algumas “sacanagens” e truquezinhos que deixem os participantes minimamente desnorteados, não haveria a “realidade” que se quer, pela milionésima vez, ratificar. E lá vamos nós assistir à pequena bem humorada humilhação de um participante ao qual se disse estar eliminado por não ter cumprido uma prescrição burocrática qualquer. Uma mentirinha boba, uma gracinha que mantém a lógica universal. Se observarmos as greves de motoboys que explodiram nos anos pandêmicos veremos que uma das principais aflições, feita reivindicação, é a ausência de transparência nos critérios para a desconexão do aplicativo que, do dia para a noite, pode arrancar-lhes a única, parca e suada geração de renda. Se para o motorista é crucial saber se foi eliminado por ter mudado de rota, por não ter trabalhado em dia de enchente ou por ter recebido poucas estrelinhas do cliente que não curtiu a música do rádio, para a empresa basta o fantasma do paredão.


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