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Trótski, revolucionário e filósofo

Resgate: José Carlos Mariátegui

Ilustração: Juan Atacho

Trótski, revolucionário e filósofo

Resgate: José Carlos Mariátegui

Esse artigo de José Carlos Mariátegui foi publicado pela primeira vez na revista Variedades em 19 abril de 1924. Posteriormente, Mariátegui o incluiu em seu livro A cena contemporânea, em 1925. Constitui uma reivindicação do papel de Trótski como intelectual teórico-prático. Para Mariátegui, a Revolução Russa havia gerado um novo tipo de intelectualidade, que sintetizava o conceito de “ideólogo realizador”, do qual Trótski era expressão, unindo as práticas políticas, militantes, teóricas e culturais.

Trótski não é só um protagonista, é também um filósofo, um historiador e um crítico da Revolução. A nenhum líder da Revolução pode carecer, naturalmente, uma visão panorâmica e certeira de suas raízes e de sua gênese. Lênin, por exemplo, distinguiu-se por uma singular faculdade de perceber e entender a direção da história contemporânea e o sentido de seus acontecimentos. Porém, os penetrantes estudos de Lênin abarcavam apenas questões políticas e econômicas. Trótski, por sua vez, interessou-se também pelas consequências da Revolução na filosofia e na arte.

Trótski polemiza com escritores e artistas que anunciam o advento de uma arte nova, a aparição de uma arte proletária. A Revolução tem uma arte própria? Trótski balança a cabeça. “A cultura – escreve – não é a primeira fase do bem-estar: é um resultado final”. O proletariado, atualmente, gasta suas energias na luta para abater a burguesia e no trabalho de resolver seus problemas econômicos, políticos e educacionais. A nova ordem é muito embrionária e incipiente. Está em período de formação. Uma arte do proletariado não pode surgir ainda. Trótski define o desenvolvimento da arte como o mais alto testemunho da vitalidade e do valor de uma época. A arte do proletariado não será aquela que descreve os episódios da luta revolucionária; será, antes, aquela que descreve a vida emanada de uma revolução, de suas criações e seus frutos. Não é, pois, o caso de falar de uma arte nova. A arte, como a nova ordem social, atravessa um período de tentativas e erros. “A revolução encontrará na arte sua imagem quando cessar de ser para o artista um cataclisma estranho a ele”. A arte nova será produzida por homens de uma nova espécie. O conflito entre a realidade moribunda e a realidade nascente durará longos anos. Esses anos serão de combate e de mal-estar. Apenas depois que esses anos transcorrerem, quando a nova organização humana estiver acimentada e assegurada, existirá as condições necessárias para o desenvolvimento de uma arte do proletariado. Qual serão os traços essenciais desta arte do futuro? Trótski formulou algumas previsões. A arte futura será, a seu juízo, “inconciliável com o pessimismo, com o ceticismo e com todas as outras formas de prostração intelectual. Estará cheia de fé criadora, cheia de uma fé sem limites no porvir”. Não é essa, certamente, uma tese arbitrária. A desesperança, o niilismo, a morosidade que a literatura contemporânea contém em diversas doses são sinais característicos de uma sociedade fatigada, esgotada, decadente. A juventude é otimista, afirmativa, divertida; a velhice é cética, negativa e irritante. A filosofia e a arte de uma sociedade jovem terão, consequentemente, um traço distinto da filosofia e da arte de uma sociedade senil.

O pensamento de Trótski penetra, através desses caminhos, em outras conjecturas e em outras interpretações. Os esforços da cultura e da inteligência burguesas estão dirigidos principalmente ao progresso da técnica e dos mecanismos de produção. A ciência é aplicada, sobretudo, à criação de um maquinário cada dia mais perfeito. Os interesses da classe dominante são adversos à racionalização dos costumes. As preocupações da humanidade resultam, sobretudo, utilitárias. O ideal de nossa época é o lucro e a economia. A acumulação de riquezas aparece como a maior finalidade da vida humana. E bem, a nova ordem, a ordem revolucionária, racionalizará e humanizará os costumes. Resolverá os problemas que, por causa de sua estrutura e de sua função, a ordem burguesa é impotente para solucionar. Consentirá a libertação da mulher da servidão doméstica, assegurará a educação social das crianças, libertará o matrimônio das preocupações econômicas. O socialismo, difamado e acusado de materialista, é, em suma, deste ponto de vista, uma reivindicação, um renascimento de valores espirituais e morais, oprimidos pela organização e pelos métodos capitalistas. Se na época capitalista prevaleceu ambições e interesses materiais, na época proletária, suas modalidades e suas instituições se inspirarão em interesses e ideais éticos.

A dialética de Trótski nos conduz a uma previsão otimista do porvir do Ocidente e da Humanidade. Spengler anuncia a decadência total do Ocidente. O socialismo, segundo sua teoria, é apenas uma etapa da trajetória de uma civilização. Trótski constata unicamente a crise da cultura burguesa, a decadência da sociedade capitalista. Essa cultura, essa sociedade, envelhecida, cansada, desaparece; uma nova cultura, uma nova sociedade emerge de sua entranha. A ascensão de uma nova classe dominante, muito mais extensa em suas raízes, mais vital em seu conteúdo que a anterior, renovará e alimentará as energias mentais e morais da humanidade. O progresso da humanidade aparecerá então dividido nas seguintes etapas principais: antiguidade (regime escravista); idade média (regime de servidão); capitalismo (regime do salário); socialismo (regime de igualdade social). Os vinte, os trinta, os cinquenta anos que durará a revolução proletária, diz Trótski, marcarão uma época de transição.

O homem que teorizava de forma tão sutil e profunda, é o mesmo que interpelava e alistava o Exército Vermelho? Algumas pessoas podem não conhecer nada além do Trótski com traços marciais de tantos retratos e tantas caricaturas, do Trótski do trem blindado, do Trótski Ministro da Guerra e Generalíssimo, do Trótski que ameaça a Europa com uma invasão napoleônica. Esse Trótski na verdade não existe. É quase unicamente uma invenção da imprensa. O Trótski real, o Trótski verdadeiro é aquele que seus escritos nos revelam. Um livro sempre dá uma imagem de um homem mais exata e mais verídica do que um uniforme. Um generalíssimo, sobretudo, não pode filosofar tão humana e tão humanitariamente. Pode imaginar Foch, Ludendorff, Douglas Haig na atitude mental de Trótski?

A ficção do Trótski marcial, napoleônico, procede de apenas um aspecto do papel do célebre revolucionário da Rússia dos sovietes: o comando do Exército Vermelho. Trótski, como é notório, ocupou primeiramente o Comissariado das Relações Exteriores. Porém, a reviravolta final das negociações de Brest-Litowsk [1] obrigou-o a abandonar esse ministério. Trótski quis que a Rússia se opusesse ao militarismo alemão com uma atitude tolstoiana: rejeitar a paz que lhe foi imposta e cruzar os braços, indefesa, ante o adversário. Lênin, com maior senso político, preferiu a capitulação. Transferido ao Comissariado de Guerra, Trótski recebeu o encargo de organizar o Exército Vermelho. Nessa obra, Trótski mostrou sua capacidade de organizador e de realizador. O exército russo estava dissolvido. A queda do tsarismo, o processo da revolução, a liquidação da guerra, produziram seu aniquilamento. Os sovietes careciam de elementos para reconstituí-los. Havia poucos, e dispersos, materiais bélicos. Os chefes e oficiais monarquistas, por causa de seu evidente humor reacionário, não podiam ser utilizados. Por um momento, Trótski tentou valer-se do auxílio técnico das missões militares aliadas, explorando o interesse da Entente de recuperar a ajuda russa contra a Alemanha. Mas as missões aliadas desejavam, acima de tudo, a queda dos bolcheviques. Se fingiam pactuar com eles, era para prejudicá-los melhor. Nas missões aliadas Trótski encontrou apenas um colaborador leal: o capitão Jacques Sadoul, membro da embaixada francesa que acabou aderindo à revolução, seduzido por seu ideário e por seus homens. Os sovietes, finalmente, tiveram que expulsar da Rússia os diplomatas e militares da Entente. Dominando todas as dificuldades, Trótski criou um poderoso exército que defendeu vitoriosamente a Revolução dos ataques de todos os seus inimigos externos e internos. O núcleo inicial desse exército foi composto por duzentos mil voluntários da vanguarda e da juventude comunista. Porém, no período de maior risco para os sovietes, Trótski comandou um exército de cinco milhões de soldados.

Assim como seu ex-generalíssimo, o Exército Vermelho é um caso novo na história militar do mundo. É um exército que sente seu papel de exército revolucionário e que não esquece que seu fim é a defesa da revolução. Portanto, qualquer sentimento específico e marcialmente imperialista está excluído de seu espírito. Sua disciplina, sua organização e sua estrutura são revolucionárias. Talvez, enquanto o generalíssimo escrevia um artigo sobre Romain Rolland, os soldados evocavam Tolstói ou liam Kropotkin.

Lima, 1924


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FOOTNOTES

[1O tratado de Brest-Litovsk foi firmado no dia 3 de março de 1918 em Brest-Litvosk entre a Rússia e as potências centrais. Colocava fim à participação russa na Primeira Guerra Mundial. Era uma paz desejada por Lênin e seus partidários, pois era uma das exigências por “paz e terra” que o povo russo reivindicava. A guerra foi um dos principais motivos da Revolução Russa de 1917. No entanto, o tratado foi prejudicial para a Rússia, que perdeu importantes territórios que representavam um terço de sua população. Mas a derrota da Alemanha na guerra e a vitória dos bolcheviques na guerra civil posterior mitigaram os efeitos de Brest-Litovsk [NdE].
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