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COLUNA | Xadrez artístico

terça-feira 9 de fevereiro de 2021 | Edição do dia

Ontem soube que um dos principais canais de xadrez no Youtube, Agadmator, atingiu 1 milhão de inscritos. Lembrei que o youtuber do canal em questão, Antonio Radić, havia feito uma promessa que gostaria comentar com vocês, cito as palavras dele: “Se eu alcançar 1 milhão de assinantes, gostaria de enviar uma petição formal à Fide [Federação Internacional de Xadrez] sobre conceder a Rashid Nezhmetdinov o título de Grande Mestre. Acima de tudo, ele merece. Eu não acho que vai realmente funcionar, mas muito mais pessoas vão ouvir sobre ele”.

Para mim funcionou, pois foi por indicação de um amigo e através do canal conheci mais sobre a história de Rashid Nezhmetidinov. Dizem que o xadrez é um jogo que reúne as qualidades de ser uma ciência, uma arte e um esporte. No caso de Nezhmetidinov, foi um enxadrista sui generis, teve uma vida pobre e difícil, aderiu ao xadrez já mais velho, não se tornou Grandmaster, mas na arte do xadrez seu nome ficou gravado na história. Talvez não seja um consenso, mas também não é exatamente um dissenso quando se diz que o sacrifício de rainha mais bonito da história ocorreu em uma partida dele contra Chenikov em 1962: diz a narrativa que num jogo ainda em seu começo, numa posição claramente empatada, o adversário de Rashid teria se levantado e ido observar outros jogos, quando Rashid depois de quarenta minutos analisando o jogo faz o lance fabuloso, momento no qual um jovem teria corrido e avisado Chernikov: “ele sacrificou a rainha”.

Os brasileiros conhecem bem esse aspecto em se tratando de futebol. Quem aguenta ver aqueles jogos da seleção que terminam no 1x0, 0x0? jogo parado, jogo pragmático. Ganhar é bom, é ótimo, mas existem lances memoráveis, partidas bem jogadas, que ficam gravadas na história. Pois bem, no xadrez é parecido, existe um ponto de vista sobre o jogo, que o xadrez artístico de Nezhmetidinov representava, que era de buscar a beleza do lance e da partida. Ganhar ou perder estão subordinados a obra de arte. Os jogadores buscam ganhar, o lado esportivo, mas o prisma não é pragmático.

Meu jogador predileto, chamado Mikhail Tal, certa vez depois de um jogo contra Rashid, que era um grande amigo, foi perguntado por um jornalista como ele tinha se sentido após ser derrotado. Vocês conseguem imaginar a expectativa do jornalista, aproveitar aquela melancolia da derrota para extrair aquela manchete que satisfaz o público sedento pelos heróis e derrotados. Pois bem, depois dessa pergunta de como se sentia ao perder para Rashid a resposta de Tal foi: “creio ter sido um dos dias mais felizes da minha vida”. Sem dúvida, uma resposta desconcertante para o jornalista, mas nada inesperada para os que olham para o esporte como arte, afinal, quando observada a partida narrada, Tal buscou se defender de todas as formas contra o belo ataque de Rashid e o resultado foi uma partida memorável de dois grandes gênios do xadrez, não é motivo de alegria?

Talvez seja por isso que Mikhail Tal tenha escrito essas belíssimas palavras sobre Rashid Nezhmetidinov quando ele faleceu, em 1974: “Eu estou ao mesmo tempo triste e agradecido que em seu último torneio, Rashid Gibiatovich, veio a minha terra, Latvia. Ele não ganhou o primeiro lugar no torneio, mas o prêmio de beleza [nos jogos], como sempre, ficou com ele. Jogadores morrem, torneios são esquecidos, mas as obras de grandes artistas permanecem para além deles e vivem para sempre".

Voltando a petição formal a federação internacional de xadrez, estou mais ou menos seguro que Rashid não estaria se importando muito com o título em si. Mas não deixa de despertar interesse, e talvez ele mesmo apreciaria, que algumas pessoas valorizem mais as obras de arte do que os ratings.

Histórias como essa creio que valem a pena ser relembradas em um momento difícil na situação política que estamos vivendo, em meio ao reacionário governo Bolsonaro e num regime pós-golpe se assentando, em que se afloram as pressões individualistas, pragmáticas, de desumanização. Creio que os socialistas devem entrar nos debates ideológicos que estão nas massas, a partir do que veem, ouvem etc., mas não queria deixar de comentar que não é um acaso, que justamente agora, o “jogo” nacional da superficialidade, o Big Brother Brasil, atinja tanta audiência e desperte tanto interesse, com a Rede Globo pautando o debate nacional a partir desse "espetáculo".




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