www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
[Trótski 80 anos]
A emancipação das mulheres na obra de Leon Trótski
Andrea D’Atri
@andreadatri

[Trótski 80 anos] Leon Trótski não tem nenhuma obra dedicada, especificadamente, a análise da histórica opressão patriarcal. Então, por que existem tantas edições –há mais de cinco décadas- que compilam discursos, breves artigos ou capítulos de suas obras nos quais abordam a questão das mulheres?

Ver online

A primeira compilação que aparece com o nome de Women and the Family [A mulher e a família], de Pathfinder Press, é de 1970. Com uma introdução de Caroline Lund [1], a edição inclui: “De la vieja a la nueva familia” [Da velha à nova família], que é o capítulo VI de Problemas de la vida cotidiana [Problemas da vida cotidiana] (1923); “Carta a una asamblea de mujeres obreras en Moscú” [Carta a uma assembleia de mulheres operárias em Moscou] (1923); “La protección de la maternidad y la lucha por la cultura” [A proteção da maternidade e a luta pela cultura] e “Construir el socialismo significa emancipar a las mujeres y proteger a las madres” [Construir o socialismo significa emancipar as mulheres e proteger as mães] (1925), ambas as intervenções dirigidas à III Conferência sobre proteção da maternidade e a infância realizada na União Soviética [2]; “Las relaciones familiares bajo los soviets” [As relações familiares sob os soviets] (1932), que são as respostas a catorze perguntas formuladas pelo semanário Liberty nos Estados Unidos e “El termidor en el hogar” [O termidor no lar] (1936), que é uma das seções do capítulo VII de A revolução traída [3]. Depois, houveram outras reimpressões.

Em 1974, aparece em castelhano, no México, como o tomo 20 das Obras de Leon Trótski publicadas por Juan Pablos Editor. Com o título La Mujer y la Familia [A mulher e a família], os mesmos textos são compilados mas com traduções do russo que haviam sido realizadas por Andreu Nin [4] quando Trótski ainda estava vivo e, agora compilado por uma jovem Verónica Volkow [5]. Em 1977, é publicada na coleção Cuadernos de Anagrama, de Barcelona, com o título Escritos sobre la cuestión feminina [Escritos sobre a questão feminina]. Essa edição inclui, também, o extenso artigo “La revolución socialista y la lucha por la liberación de la mujer” [A revolução socialista e a luta pela libertação da mulher] de 1973, de Mary Alice Waters [6]. Ambas publicações são sucedidas por outras de diferentes editoriais; inclusive, versões mimeografadas por grupos políticos trotskistas, em diferentes idiomas.

Não é casual que esses textos compilados em um mesmo volume, circularam quando se desenvolvia a segunda onda do feminismo nos países centrais. No marco das mobilizações juvenis contra a guerra do Vietnan, os processos de libertação nacional na África, as greves de massas nos países centrais e o questionamento aos regimes burocráticos do Leste Europeu, surge uma “nova esquerda” preocupada pelos temas da opressão social e a cultura, que mostrou maior interesse por aqueles discursos e artigos. Não só porque Trótski havia sido, no passado, o grande dirigente da oposição de esquerda à ala encabeçada por Stalin no Partido Bolchevique e ao curso de degeneração do estado operário; mas também porque tinha – de várias décadas anteriores – uma leitura sobre a questão das mulheres que opunha pelo vértice ao discurso oficial dos Partidos Comunistas que ainda nos anos 70, sustentavam um marxismo dogmático tergiversado à sua medida e uma visão embelezada dos chamados “socialismos reais”, em confrontamento com o emergente feminismo liberal.

É provável que com a derrota das massas e o avanço da restauração capitalista a nível mundial, nas décadas seguintes, esses concisos mas agudos artigos e discursos de Leon Trótski perderam interesse para um movimento de mulheres que – por distintas vias – se afastou até posições diametralmente opostas às de um feminismp socialista revolucionário. Nos atrevemos a afirmar – quase sem temor a nos equivocarmos – que, nos anos 90, apenas um punhado de marxistas se apegou a eles, buscando alguns fundamentos que nos permitiram separarmos radicalmente da versão barata na qual o estalinismo, havia transformado as posições do marxismo sobre a questão das mulheres, para justificar sua política conservadora, dando argumentos ao liberalismo para atacar a esquerda.

Pelas mais esquecidas e oprimidas da classe trabalhadora

O primeiro texto conhecido sobre a questão feminina, que não costuma aparecer nas compilações, é o discursos pronunciado na II Conferência Mundial de Mulheres Comunistas (1922), realizado simultaneamente com o III Congresso da Internacional Comunista, que ficou conhecido como uma “escola de estratégia revolucionária” [7].

Foi um difícil congresso da Internacional, no qual Lênin e Trótski, no início, eram minoria frente a uma tendência ultra esquerdista encabeçada pelos delegados da seção alemã. Os ultra esquerdistas sustentavam que a crise econômica do capitalismo determinava um ascenso sem refluxos da mobilização das massas que levantaria, permanentemente, a possibilidade da tomada do poder. A partir dessa avaliação se desprendia que a estratégia dos partidos comunistas deveria consistir em uma “ofensiva permanente”. Uma caracterização que era contraditória com a situação de refluxo da luta de classes e uma política que conduzia, perigosamente ao isolamento dos Partidos Comunistas e os setores mais avançados do movimento operário, em relação às massas [8].

Essa tendência também se expressou na II Conferência Mundial de Mulheres Comunistas, questionando o esboço das “Teses para a propaganda entre as mulheres” que mais tarde seria aprovado, em primeiro lugar pelas delegadas e, alguns dias depois, no Congresso da Internacional. No seu debate, as delegadas da tendência ultra esquerdista minimizaram a importância de lutar pelo direito ao voto e consideraram que a participação dos comunistas nos parlamentos era, por si só, um desvio reformista.

A dirigente mais respeitada das mulheres comunistas era a alemã Clara Zetkin. Próxima as posições políticas de Lênin, foi objeto de ataques por parte da delegação do Partido Comunista alemão, antes e durante o mesmo Congresso. Além disso, a tendência ultra esquerdista, também aproveitou o prestígio ganhado pela revolucionária russa Alexandra Kollontai – que era próxima às suas posições políticas – para tentar afastar Zetkin da direção do movimento de mulheres comunistas, algo que foi advertido por Lênin. Que Clara Zetkin escrevera o rascunho das Teses, havia sido ideia dele, como ela mesma relembra afetuosamente, em suas Recordações sobre Lênin [9]. Ali, em consonância com a posição defendida por Lênin e Trótski contra a ala ultra esquerdista, surge a necessidade de fortalecer o trabalho político dos Partidos Comunistas entre as trabalhadoras, seguindo a linha traçada por Inessa Armand no ano anterior sobre a importância de mobilizar as “camadas mais atrasadas”, mais esquecidas e oprimidas e maus humilhadas da classe operária e os trabalhadores pobres [10].

No seu discurso, frente as delegadas da II Conferência Mundial de Mulheres Comunistas, Trótski afirma, na mesma sintonia, que “no progresso do movimento operário mundial, as mulheres proletárias desempenham um papel colossal. Digo isso, não porque estou me dirigindo a uma conferência feminina, mas porque bastam os números para demonstrar que papel importante exercem as trabalhadoras no mecanismo do mundo capitalista [...]. E, falando em termos gerais, no movimento operário mundial a trabalhadora está no nível, precisamente, do setor do proletariado [...] mais atrasado, mais oprimido, o mais humilde dos humildes. E justamente por isso, nos anos da colossal revolução mundial, este setor do proletariado pode e deve converter-se na parte mais ativa, mais revolucionária e de maior iniciativa da classe trabalhadora. Naturalmente, apenas a energia e a disposição ao ataque não bastam. Mas ao mesmo tempo a história está cheia de fatos como esse que apontamos, que durante uma etapa mais ou menos prolongada prévia à revolução, no setor masculino da classe trabalhadora, especialmente entre suas camadas mais privilegiadas, se acumula uma excessiva cautela, excessivo conservadorismo, muito oportunismo e demasiada adaptabilidade. E a maneira com que as mulheres reagem contra seu próprio atraso e degradação, essa reação, repito, pode desempenhar um papel colossal no movimento revolucionário de conjunto [11].

Este debate crucial na história da Internacional Comunista se reflete no discurso de Trótski na II Conferência Mundial de Mulheres Comunistas e também ficou plasmado na síntese na qual se chegou com as “Teses para a propaganda entre as mulheres” [12], escrita por Clara Zetkin em consonância com a posição de Lênin e Trótski, mas alterada por outras dirigentes comunistas mais próximas à corrente ultra esquerdista, como Alexandra Kollontai.

Romper o silêncio que rodeia os problemas da vida cotidiana

Os textos mais conhecidos de 1923 são, em sua maioria, capítulos de Problemas da vida cotidiana. Segundo o próprio Trótski relata na introdução desse livro parecia-lhe que “na biblioteca do partido faltava um pequeno folheto que, de maneira bastante popular, mostra ao trabalhador e ao camponês médio o vínculo que une alguns feitos e certos fenômenos da nossa época de transição e que, ao indicar uma perspectiva adequada, serviria como arma para a educação comunista”. Para intercambiar sobre isso, organizou uma assembleia de propagandistas do partido de Moscou, colocou um questionamento e abriu debates. Assim, alertou que “os problemas relativos à família e ao modo de vida fascinaram todos os participantes”. É através dessa base que surge o folheto que, finalmente, não considera que serviria como leitura de divulgação; mas a troa propõe destiná-lo “em primeiro lugar aos membros do partido, aos dirigentes dos sindicatos, das cooperativas e dos organismos culturais” [13].

Em apenas dois meses, escreve um prefácio da segunda edição onde conta as críticas recebidas por um setor do partido: “Algumas mentes privilegiadas tentaram se opor, pelo que eu sei, as tarefas relativas a cultura do modo de vida com as tarefas revolucionárias. Tal abordagem não pode ser definida senão como um grosseiro erro político e teórico” [14]. Não é difícil advertir de onde vem essas críticas, de marcado conteúdo mecanicista.

Em 1923, com Lênin fora de cena por sua grave situação de saúde, o processo de burocratização do partido e do estado operário, se acelera [15]. Stalin, Zinoviev e Kamenev chamam a seguir um “Novo Curso”, frente ao descontentamento que se espalhava no partido e desencadearam uma campanha de calúnias contra Trótski e outros dirigentes opositores [16]. Os artigos publicados em Pravda por Trótski contra esse “novo curso”, serão compilados mais tarde nessa obra que analisa o burocratismo e antecipa os perigos políticos gerados pela relação do partido com o aparato do estado operário. Mas antes disso, Trótski antecipa sua batalha contra o burocratismo e, Problemas de la vida cotidiana [Problemas da vida cotidiana] que, habitualmente é publicado junto com artigos compilados sob o título de El nuevo Curso [O Novo Curso]

Sua preocupação está centrada em combater o atraso social e cultural em que estão somadas as massas operárias e camponesas, porque dele dependerá, e além disso, sua capacidade para enfrentar a burocracia. Superar a ignorância e os embrutecedores costumes ancestrais se converte em um fator decisivo para elevar o nível cultural das massas e romper com a herança e a submissão aos poderes estabelecidos, para construir o socialismo conscientemente. O pesquisador russo Aleksandr Reznik afirma em “León Trotsky, la política y la cultura en los años ‘20” [Leon Trótski, a política, e a cultura nos anos 20] que “o debate sobre Problemas da vida cotidiana foi uma forma de debate político indireto sobre as formas de construir o socialismo em condições de paz, durante, no qual se revelou a ‘opinião pública’ e a atividade das ‘bases’ que poderiam reformar o ‘regime interno’ que gravitava até a burocracia”.

Do regime czarista, a Rússia havia herdado quase 90% de mulheres analfabetas. A guerra mundial e a guerra civil as levaram a trabalhar nas fábricas; mas a revolução deveria trabalhar intensamente para eliminar esta diferença brutal com os trabalhadores masculinos. Para Trótski, assim como para outras e outros dirigentes bolcheviques, as leis não eram suficientes se não se libertava a mulher da “escravidão doméstica”. E, no entanto, só tendo em conta o statu jurídico das mulheres na revolução, pode constatar que seus direitos civis, sociais e políticos são amplamente superiores aos das massas femininas nas democracias capitalistas mais avançadas na Europa. Direito a votar e ser votada, ao divórcio, ao aborto, direito a ter um documento e a trabalhar em troca de um salário sem pedir permissão ao pai ou ao marido, A revolução descriminalizou a homossexualidade e alfabetizou em grande escala. No entanto, Trótski pensava que só com a incorporação crescente das mulheres na vida social –e não só na produção- poderia combater, aceleradamente, contra os séculos de atrasado e obscurantismo impostos pela ordem patriarcal sob influência da igreja ortodoxa.

Para conseguir essa participação das mulheres na vida política, social e cultural, era necessário avançar corajosamente na socialização do trabalho doméstico e de cuidados. “Um dos problemas, o mais simples, foi o de instituir no estado soviético a igualdade política de homens e mulheres [...]. Mas alcançar uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres no seio da família é um problema infinitamente mais árduo [...]. Enquanto as mulheres estiverem atadas aos trabalhos da casa, do cuidado e da família, da cozinha e da costura, permanecerão totalmente fechadas suas possibilidades de participação na vida política e social.” [17].

Inscrito na tradição que remonta aos socialistas utópicos franceses do século XIX - como Marx, Engels, Lenin e outros clássicos do socialismo revolucionário - Trotsky também compartilhou aquela máxima de Charles Fourier de que “o grau de emancipação da mulher em uma sociedade é a medida da emancipação geral” [18]. Por isso, ele considerou que a revolução socialista não merecia ser chamada como tal, se as mulheres continuassem sujeitas à "escravidão doméstica" do trabalho do lar. "É claro que, até que não exista uma verdadeira igualdade entre marido e mulher no seio familiar, não podemos falar seriamente sobre sua igualdade no trabalho social ou na política" [19].

Em meio a uma situação econômica e política difícil para o estado operário, em pleno curso de burocratização, Trótski chama as mulheres a lutarem para alcançar a maior socialização do trabalho doméstico que fosse possível. Apela, em primeiro lugar às mulheres, a combater, conscientemente, contra a inercia e os hábitos cegos, e como escreve em sua “Carta a uma assembleia de mulheres operárias em Moscou” as convida a “pressionar com a opinião pública de todas as mulheres, para que tudo que se possa fazer com nossos recursos atuais se leve a cabo [20]. Porque está convencido de que “a primeira tarefa, a mais profunda e urgente, é a de romper o silencio que rodeia os problemas da vida cotidiana” [21].

A frente da luta pelo novo, quem mais sofreu com o velho

Longe da visão caricatural que brindou ao mundo o chamado “socialismo real”, onde o estado se convertia em um provedor de serviços e direitos para as massas convertidas em meras receptoras “passivas” das bondosas concessões do líder, Trótski propõe avançar mediante um amplo e dialético processo democrático, onde a iniciativa das massas cobra um valor fundamental e o estado operário deve assessorar e assistir para que seus propósitos cheguem a um bom termino; “Para a transformação da vida cotidiana se abrem duas vias: a de cima e a de baixo. A via ‘de baixo’ é a que une os recursos e esforços das famílias individuais. É o caminho para criar unidades familiares amplas, com cozinhas compartilhadas, lavanderias, etc. A via ‘de cima’ é a via da iniciativa estatal ou dos soviets locais para a construção de habitações operárias agrupadas e restaurantes, lavanderias e creches comunitárias. Em um estado operário e camponês não pode haver contradição entre essas vias; uma deve complementar a outra. Os esforços do estado não iriam a nenhuma parte sem luta independente das famílias operarias por uma nova forma de vida. Mas sem o assessoramento e a assistência dos soviets locais e as autoridades estatais, nem sequer as iniciativas mais enérgicas das famílias operárias individuais poderiam dar lugar a um êxito significativo.” [22].

Oposto pelo vértice à atitude da burocracia que repele a participação ativa das massas na administração do estado operário e seu autogoverno: “O caminho até a nova família é duplo: a) a elevação do nível de cultura e educação da classe trabalhadora e dos indivíduos que compõe; b) um melhoramento das condições materiais da referida classe organizado e levando a cabo pelo estado. Ambos processos estão intimamente conectados um com o outro” [23] E também escreve Trótski: “não deve existir nenhum tipo de compulsões que venham de cima, seja por exemplo, a burocratização dos novos modos de vida. Apenas mediante a criatividade das grandes massas do povo, assistidas pela iniciativa artística e a imaginação criadora, podemos no curso de anos e talvez de décadas, descobrirmos o caminho para o alcance de formas de vida mais nobre e elevadas” [24].

Além disso, a visão de Trótski nada tem a ver com a tosca posição economicista, segundo a qual, a revolução deveria atravessar um período de desenvolvimento econômico e tecnológico sem pôr no centro as necessidades das mulheres, para chegar, mais tarde e automaticamente, a emancipação feminina.

O dirigente revolucionário penetra na psicologia das massas, esgotada pelos esforços da insurreição, a guerra civil, a fome e as doenças. Analisa as profundas contradições de um período criativo e transformador que choca, permanentemente, contra as forças contrarias do passado, os costumes arreigados e os limites materiais. Examina que essas trocas não serão autenticas, se não partem do desejo das massas de elevar seu nível cultural para abandonar os embrutecedores costumes do passado, que o incipiente curso de burocratização reproduz, em sua tentativa de silenciar as iniciativas mais audazes das massas.
Considerava que uma reforma radical de toda a ordem de vida familiar “necessita de um grande esforço consciente de toda a massa do proletariado e pressupõe a existência, na própria classe, de uma poderosa força molecular de desejo de cultura e progresso” [25]. Sem esta participação consciente das massas na edificação de seu próprio destino, sem que exista esse “desejo de cultura e progresso”, é impossível imaginar a traformação radical dos costumes ancestrais, da instituição familiar e da situação das mulheres. O socialismo é um projeto que se constitui conscientemente e não se torna por si só, de nenhum automatismo econômico, nem tampouco culmina na tomada do poder por parte da classe trabalhadora. Daí, é recém começada a gigantesca tarefa de transformação que concerne, principalmente, na liquidação dos velhos vínculos e instituições que submetem as mulheres à degradação e a subordinação aos homens.

Não exime a todos os militantes conscientes de trabalhar para a transformação da vida familiar; mas também espera que as mulheres revolucionárias encabecem esta batalha. Escreve que “desafortunadamente, a inercia e os costumes são forças poderosas. Os costumes cegos e estúpidos são mais fortes na escura e oculta vida interior da família que em nenhuma outra parte. E quem é a primeira a ser chamada contra a bárbara situação da família senão é a mulher revolucionária?” [26]. O mesmo que apontou no último capítulo de Problemas da vida cotidiana: “Assim como temos nossos agitadores das massas, nossos agitadores dos industriais, nossos propagandistas antirreligiosos, devemos formar nossos propagandistas e agutadores em questões de costumes. Como as mulheres são as mais despossuídas devido as suas presentes limitações, e o costume pesa mais sobre seus ombros, podemos pressupor que este aspecto os melhores agitadores sairão de suas fileiras” [27]. E em sua carta à assembleia de operárias de Moscou, explica que “aquelas que lutam com mais energia e constantemente pelo novo são as que maus sofrem a causa do velho” [28].

Enxergar a vida com o olhar das mulheres

A abordagem particular que Trótski traz sobre a questão da mulher, está profundamente vinculado com seu pensamento –longe de todo dogmatismo e economicismo-, sobre o caráter permanentista da revolução. Uma reflexão que inicia em 1906, mas que se expressa cabalmente na generalização que faz em 1928, em Teoria da Revolução Permanente [29]. Assim formula Trótski, o segundo aspecto permanentista da revolução: “A sociedade sofre um processo de metamorfose. E nesse processo conserva forasmente um caráter político, ou o que é o mesmo, se desenvolve através do choque dos distintos grupos da sociedade em transformação. As explosões da guerra civil e das guerras exteriores sucedem os períodos de reformas ‘pacíficas’. As revoluções da economia, da técnica, da ciência, da família, dos costumes, se desenvolvem em uma complexa ação recíproca que não permite a sociedade alcançar o equilíbrio” [30]

Uma boa síntese da intensa atividade de transformação, em todos os âmbitos, que se viveu durante os primeiro anos da revolução de 1917; um processo que rapidamente foi bloqueado e, logo, sofreu uma profunda reversão durante a burocratização estalinista. Sob essa perspectiva, entende-se sua proposta de lançar as bases materiais para uma autentica emancipação feminina, era uma tarefa de primeira ordem da Revolução Russa de 1917.

Mas também, esse ângulo de análise vai ser fundamental, anos mais tarde, para traçar sua crítica ao retrocesso em direitos e cultural, imposto por Stalin nas massas femininas e que mereceriam outra extensa análise. Os artigos, discursos, fragmentos, podem ser reunidos segundo esses dois eixos: a emancipação das mulheres como uma tarefa fundamental da revolução proletária (econômica, política e cultural) e a reação conservadora do estalinismo, na vida cotidiana e a família como uma demonstração cabal da degeneração do estado operário.

Se os socialistas utópicos legaram ao marxismo revolucionário aquela máxima que assinalava que o grau de emancipação feminina em uma sociedade é a prova do desenvolvimento da emancipação geral, Trótski foi quem revelou –sob essa perspectiva-quanto devia fazer a revolução proletária para liquidar as arcaicas ataduras das mulheres russas que, mesmo no processo social maus convulsivo vivido até então, se encontravam em desvantagem em comparação aos homens.

Mas, além disso, com esse mesmo critério examinou mais adiante a subordinação das mulheres na família e a perda de seus direitos na União Soviética dos anos 30, em sua análise documentada sobre a burocratização do estado operário sob a liderança de Stalin [31]. Também, na análise de outros países do mundo capitalista, esteve atento especialmente ao ânimo das mulheres para medir a radicalidade e profundidade de situações e processos revolucionários. Ganhar a adesão das trabalhadoras ao partido revolucionário e seu programa, será de crucial importância: os setores mais oprimidos da classe trabalhadora –como as mulheres- e aqueles que não carregam sob seus ombros as derrotas do passado –como a juventude- serão, para Trótski aqueles que poderão renovar as forças do proletariado revolucionário, cujas organizações, no fim da década de 1930, considera que estão minadas de “burocratas e carreiristas decepcionados” [32]. Essas elaborações dos anos 30, até seu vil assassinato pelas mãos de um agente estalinista em agosto de 1940, mereceriam outro extenso artigo.

Essas preocupações teóricas, políticas e programáticas de Trótski é suficiente motivo para considerar que, para além de que não haja uma obra acabada sobre as origens e alcances da opressão patriarcal, suas reflexões sobre a questão das mulheres traçam algumas pistas sugestivas –com quase um século de experiências políticas e desenvolvimentos teóricos mediante- para um feminismo anticapitalista, socialista e revolucionário [33]. Ainda mais, em uma época em que as esquerdas dos regimes tentam limitar os alcances do movimento feminista a um horizonte de reformas; enquanto diversas teorias pós-modernas –por desconhecimento ou mal intencionadamente- se busca identificar ao marxismo com um economicismo reducionista e simplificar sua longa história de combates teóricos, políticos e programáticos à vulgata estalinista [34].

Suas palavras, entretanto encontraram eco no presente onde as mulheres constituem mais de 40% da classe assalariada a nível mundial, mas são a imensa maioria no setor mais precarizado, superxplotado e oprimido dessa classe, enquanto seguem sendo objeto de inusitada violência machista, discriminações e desigualdades em todos os âmbitos da vida. Todas as pessoas, sem distinção de gênero, que reivindicamos na luta contra a opressão como um feminismo anticapitalista, socialista e revolucionário não podemos mais que subscrever as palavras de Trótski, de um século atrás: “É bastante certo, que na esfera da vida cotidiana o egoísmo dos homens não tem limites. Se na realidade, queremos transformar as condições de vida devemos aprender a enxerga-las através dos olhar das mulheres” [35] Trata-se de construir “esse olhar” o suficientemente radical como para não determos na conquista provisória de direitos elementares que, em grande parte do mundo – mais de um século depois de que escreveram esses textos- seguem saltando; senão para avançar decididamente na libertação de todas as opressões, ao tempo que liquidamos a irracionalidade da exploração capitalista que, para milhões de seres humanos converteu o plane em uma suja prisão.

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui