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Não somos escravas: rainhas quilombolas, guerreiras armadas e grevistas decididas – relatos de mulheres negras na luta por liberdade
Letícia Parks

Neste mês de março, as Edições Iskra lançam o livro "Nós mulheres, o proletariado", de Josefina Martínez, originalmente publicado em castelhano no Estado Espanhol, com o título "No somos esclavas!" O livro da historiadora e jornalista recupera os fios de resistência e das lutas pela emancipação das mulheres junto a todos os oprimidos. Um livro sobre greves femininas, cruzadas por gênero, classe e migrações. A edição brasileira contará com um artigo inédito que publicamos aqui. “Não somos escravas: rainhas quilombolas, guerreiras armadas e grevistas decididas – relatos de mulheres negras na luta por liberdade”, que foi escrito por Letícia Parks uma das organizadoras do livro Mulheres negras e marxismo e A revolução e o negro, das Edições Iskra.

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O título original desta publicação no Estado Espanhol é No somos esclavas, em português “Não somos escravas”, uma frase que, no contexto europeu e brasileiro, tem sentidos um tanto diferentes. Aqui, na luta por liberdade, apesar de incansável e corajosa – como as linhas a seguir buscarão mostrar –, o desejo de não ser escrava se concretizou como verdade para negras e indígenas quilombolas, mobilizou enormes processos de luta, mas infelizmente não se tornou realidade para as grandes massas por cerca de três séculos. [1]

O grito de “não somos escravas”, saído da boca de mulheres negras e indígenas nas Américas, evocava a rebeldia contra a situação estabelecida e inspirou a luta corajosa contra os senhores – e senhoras. Na Europa, a escravidão era uma assombração. Quando se olha a história do presente, pode ser difícil perceber que nada estava pré-determinado e que o embate entre um capitalismo escravocrata ou assalariado só se resolveu pela luta de classes. Enquanto nas Américas as massas negras e indígenas exigiam que a cor da pele não simbolizasse um regime de trabalho pior que a morte, as massas na Europa se assombravam com a possibilidade de que seu trabalho fosse eternamente remunerado e os direitos calculados em comparação com a vida escrava. Jornadas de 18 horas, salários corroídos por dívidas, alimentação racionada e individualidade ausente nos cortiços compartilhados por 10 famílias. Enquanto a régua do que se considerava um trabalho com direitos se deu em comparação com a vida da mulher escravizada, a ausência da chibata era suficiente para um patrão se orgulhar de sua “humanidade”.

Não à toa, portanto, que quando os revolucionários haitianos – dentre eles uma linha destacada de mulheres rebeldes – começam, em 1791, sua luta heróica por liberdade, tenham contado por um lado com a solidariedade das massas proletárias e empobrecidas da França revolucionária e, por outro, com a repressão decidida de Bonaparte. Sem cansaço, as massas haitianas seguiram sua luta na colônia de São Domingos até derrotar, em 1804, o exército até então infalível de Napoleão.

Pouco depois, em 1861, quando a guerra civil estadunidense opõe as burguesias do Norte e do Sul, divididas também de acordo com seu posicionamento sobre a escravidão, é sem nenhuma dúvida que Marx e Engels escrevem, sem trégua, expressando solidariedade ao movimento do Norte contra a escravidão. Para eles estava em jogo ali os rumos do sistema capitalista, já que “o trabalho de pele branca não pode ser livre onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro” [2]. Na luta pela construção de uma solidariedade internacional ativa à luta de escravizados pela liberdade, Marx e Engels fundem-se com a vanguarda operária que, contra qualquer nacionalismo, percebe que a luta negra é parte da luta da classe trabalhadora e fundam, a partir dessa experiência, a Associação Internacional de Trabalhadores, em 1864, no calor da luta negra por liberdade nos EUA. A conexão entre luta negra e proletária para Marx era óbvia. “Da morte da escravidão”, como ele mesmo diz no Livro 1 d’O Capital, vão emergir outros movimentos que dizem respeito a uma classe que passa a se ver de outra forma a partir da conquista dessa emancipação, dentre os quais, aquele que parecia para ele o mais importante, o da jornada de 8 horas de trabalho.

“Não somos escravas”, para negras e indígenas, significava contestar uma realidade. Para mulheres brancas europeias e americanas, indianas e irlandesas, significava superar uma assombração que mantinha seu trabalho precário. Para todas elas significava o sonho da liberdade, da vida plena, do direito ao lazer, ao amor, que segue vivo nas nossas lutas até hoje, e através daí, seus gritos se unificaram em demonstrações de solidariedade internacionais que, desde suas primeiras formas, criaram uma tradição que separa reformistas de revolucionários, e que aponta o caminho posterior à “morte da escravidão”.

Dessa introdução, que fique dito: da luta negra e indígena por liberdade são herdeiros por direito toda a classe trabalhadora – de todas as cores e etnias – que mantém seu combate contra o capitalismo, racista desde o seu nascimento. E se a luta contra a escravidão e o racismo era a luta contra um sistema patriarcal, a origem da história de luta da nossa classe contra o capitalismo precisa ser contada também a partir dos olhos das que entraram nesse combate para dizer no gênero feminino que “não somos escravas”, dentro de cada forma que assumiu a luta por liberdade, seja nos quilombos que buscavam clandestinidade para se proteger da violência escravista e colonial, seja nas revoltas urbanas, que unificaram escravos e libertos na luta contra o colonialismo e a chibata. Vamos a elas.

Os quilombos e mocambos; as rebeldes e as rainhas

Quando se conta a história da fundação do capitalismo, é preciso dizer que parte da sua acumulação primitiva foi garantida pelo trabalho escravo e o enorme comércio transatlântico derivado dele. Sobre o trabalho escravo, houve na história os que buscaram contar todo o ocorrido durante esses três séculos de barbárie como uma violência sem resistência ou sem luta. Não foi assim. Como explicam Flávio Gomes e João José Reis,

Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. Aqui também a lista é longa e conhecida. Houve, no entanto, um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como a mais típica da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e a formação de grupos de escravos fugidos. [...] A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais frequentemente se associavam outras personagens sociais, aconteceu nas Américas onde vicejou a escravidão. Tinha nomes diferentes: na América espanhola, palenques, cumbes etc; na inglesa, maroons, na francesa, grand marronage [...] No Brasil esses grupos eram chamados principalmente quilombos e mocambos e seus membros, quilombolas, calhambolas ou mocambeiros. [3]

A fuga não esteve restrita, portanto, nem a um período de tempo, muito menos a apenas um gênero dentro do universo de escravizados. Angela Davis, em seu livro Mulheres, raça e classe, busca apontar o papel contraditório do patriarcado sobre as costas das mulheres negras. Antes dela, Beatriz Nascimento fez o mesmo com olhares voltados ao papel das mulheres negras brasileiras e afro-latinas na luta por liberdade. Em ambos os casos, seria impossível afirmar que a fragilidade atribuída às mulheres brancas e proprietárias de escravos se fazia valer na vida das escravizadas. Mulheres negras tiveram que trabalhar na lavoura, na colheita e na casa grande com o mesmo vigor e força que todos os homens. O relato de Davis, ainda que referente aos Estados Unidos, certamente encontra seu eco no Brasil em diálogo com vozes como as de Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro:

Embora nos estados localizados na fronteira entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos uma quantidade significativa de escravas realizasse trabalhos domésticos, as escravas do extremo Sul – o verdadeiro núcleo do escravismo – eram predominantemente trabalhadoras agrícolas. Por volta do século XIX, sete em cada oito pessoas escravizadas, tanto mulheres como homens, trabalhavam na lavoura.

Da mesma forma que os meninos eram enviados para o campo ao atingir certa idade, as meninas eram designadas para trabalhar o solo, coletar algodão, cortar cana, colher tabaco. [4]

Qualquer tipo de tratamento diferente faria com que uma parte considerável da força escrava não tivesse lucratividade ou funcionalidade na produção economicamente mais importante. “No que dizia respeito ao trabalho, a força e a produtividade sob a ameaça do açoite eram mais relevantes do que questões relativas ao sexo” [5], segue Davis, demonstrando que a lucratividade esteve acima do discurso do sexo frágil. Entretanto, parte da produtividade do trabalho da mulher escrava não poderia ser realizada pelo homem escravizado, já que apenas elas poderiam garantir a reprodução natural de mercadoria humana, tendo seus filhos e filhas roubados como mercadoria pelas mãos de senhores e senhoras. Considerando a presença dessa característica, associada à existência de um pensamento patriarcal que criativamente piorava os tipos de castigos que se podiam infringir às mulheres negras, é possível dizer que, enquanto no âmbito da exploração do trabalho, mulheres e homens eram iguais, do ponto de vista do castigo e da reprodução, definitivamente as mulheres eram as mais exploradas entre os trabalhadores escravizados.

Contudo, mulheres e homens inseridos no mundo do trabalho sob as piores condições de tratamento se irmanaram no terreno da luta de classes contra seus senhores e em torno do sonho de liberdade. A presença de um força inalienável da mulher negra escravizada a colocou, provavelmente, dentro de todas as ações de fuga e de organização de quilombos, mais até do que se é possível encontrar nas pesquisas históricas pioneiras:

Fora da Bahia há notícia de que os crioulos, apesar de minoritários e alijados da liderança, se uniram a africanos na conspiração de Campinas, em 1832, e na revolta de Paty do Alferes (ou de Manoel Congo), em Vassouras, 1838. Neste último episódio foram levados ao banco dos réus 21 escravos, dos cerca de duzentos de uma fazenda em Paty do Alferes. Após matarem o feitor de uma fazenda vizinha do mesmo proprietário, eles fugiram sob a liderança de Manoel Congo para formar um quilombo. Desses 21, quinze eram africanos e seis crioulos, mas de fato a maioria mulheres que se defenderam dizendo terem sido forçadas a participar da fuga em massa. [6]

É possível imaginar que, dado o nível de opressão a que estavam submetidas, características como a do relato acima, na fuga de Vassouras, onde uma maioria de mulheres foi capturada, tenham sido mais comuns do que os registros da repressão informam. Entretanto, seria idealização afirmar que a força da opressão contra elas cumpriu apenas um papel explosivo.

É conhecido o fato de que através das manifestações culturais – em especial, as religiosas – escravizados de distintas origens da África encontraram suas formas de manter uma existência insurreta e, por vezes, de forma clandestina. Faziam rituais proibidos, recusando-se a se submeter à religiosidade e aos símbolos da Igreja. Não foi uma coincidência que houvesse um cruzamento entre esses recantos de resistência e a organização de fugas e de quilombos. Líderes religiosos se confundiam com líderes políticos e assumiam por vezes a chefia dos quilombos já formados, simbolizando seu papel dirigente na preparação anterior à fuga:

Muitos dos reis e rainhas africanos podem ter se desdobrado em sacerdotes africanos. O quilombo do Urubu baiano, esmagado em 1826, tinha um rei e uma rainha – tinha também um candomblé. Manoel Congo, chamado rei, era também chamado “pai”, talvez com alguma conotação religiosa. [7]

A proporção de mulheres nas fugas acompanhava sua proporção nas religiões. Via de regra, terreiros eram comandados por mulheres. É o caso tanto de Luiza Mahin como da africana Maria Júlia [8], do Terreiro de Gantois. Luiza Mahin aparece na carta autobiográfica de Luiz Gama, advogado negro abolicionista que afirma que ela, sua mãe, teria participado de uma série de revoltas e que foi “pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Maria Júlia fundou o Terreiro do Gantois ainda jovem, antes de em 1896, Nina Rodrigues escrever sobre ele, como uma das primeiras iniciativas de investigação etnológica sobre negras e negros, em seu caso, com intuitos abertamente racistas e eugenistas. Quando Rodrigues descreve o Terreiro de Maria Júlia, essa já o teria fundado há décadas – antes da abolição – e já era uma senhora de idade.

Os quilombos se formavam apenas através de uma relação estreita entre desejo de fuga, organização de fuga coletiva e formação de um conglomerado de fugidos em outra região. Os terreiros eram locais privilegiados para que o segundo “ingrediente” (o quilombo) pudesse ser adicionado. Relata-se em diversos testemunhos da repressão da época – e nota-se pela enorme perseguição a esses espaços – que era ali que se organizavam desde as datas da fuga – em geral ocorridas em dias de festa dos senhores brancos, como Natal e Páscoa [9] – até os métodos que seriam empregados e o local de destino.

Não se sabe de rei na conspiração de Campinas, em 1832, mas é um dos levantes escravos em cuja devassa mais se mencionam feitiços. Perguntado sobre o assunto, o escravo Felizardo disse que “estas meizinhas era para amansar aos brancos para as armas dos mesmos não ofenderem a elles pretos e se levantarem afoitamente com os mesmos brancos, matá-los, e ficarem elles pretos todos forros”. As “meizinhas” eram raízes em geral feitas e vendidas pelos escravos congos da região. Um dos cabeças dessa conspiração, encarregado de distribuir as raízes protetoras, era o escravo de nação rebolo Diogo, ou “Pai Diogo”, provavelmente significando, como no caso de Manoel Congo, o que depois veio a ser pai-de-santo [...]. Também de candomblé era a escrava nagô Zeferina, “rainha” do quilombo do Urubu, que se levantou em 1826. Durante a luta, empunhando arco e flecha, ela se destacou como líder e, segundo uma testemunha, “custou muito a entregar-se, antes fazia muita diligência para se reunir os pretos dispersados”. Mulheres participaram pelo menos da fase conspiratória dos movimentos haussás. Em 1814 cinco escravas foram acusadas: Ludovina, Teresa, Felicidade, Germana e Ana. A liberta Francisca, que percorrera o Recôncavo com o companheiro Francisco pregando a rebelião, foi condenada ao açoite e degredo para Angola. Em 1835 nenhuma mulher foi às ruas lutar, e não há indício de que alguma tenha participado do seu núcleo dirigente na fase conspiratória. Mas muitas eram muçulmanas, sabiam e apoiavam o levante de seus homens, 31 das quais foram posteriormente investigadas e a maioria punida. [10]

As “meizinhas” mostram que haviam técnicas aprendidas nos subterrâneos da religiosidade e que, nesse estágio de preparação, e mesmo que apenas neste estágio, as mulheres cumpriam seu papel, junto ou separadamente aos homens. Não é de estranhar que nas páginas dos processos de mobilização muitas delas desapareceram dos registros. No cenário da violência patriarcal executada contra as rebeldes, não se pode construir qualquer imaginário idealista de uma participação na luta proporcional ao papel das mulheres no mundo do trabalho. O fato de que o funcionamento da economia estivesse apoiado de igual maneira sobre os ombros de homens e mulheres, não fez com que sobre os ombros delas não pesasse de forma distinta pela força do patriarcado. De outra forma, essa opressão também atingia suas vidas familiares e de convivência com seus companheiros.

Ainda assim, dessas lutas surgem nomes que se destacam com a potencialidade de talvez simbolizar as centenas de milhares de mulheres anônimas que também lutaram. Algumas dessas foram rainhas de seus quilombos, ocupando o mais alto posto em comunidades que se formavam com o intuito de reviver as formas políticas da África de que se lembravam. Marianna Crioula foi rainha do quilombo Paty do Alferes, na região onde hoje é Vassouras-RJ. Sobre ela, um contemporâneo, em depoimento à polícia, diz que, frente à possibilidade de repressão, Marianna “não se entregou senão a cacete e gritava: morrer sim, entregar não!!!” [11]. Foi rainha também Tereza de Benguela, que esteve à frente do Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso. Tereza teve seu nome replicado até os dias de hoje na história oral, onde figura como valente protetora e defensora da liberdade dos que viviam no território que liderava, e ganhou em sua homenagem o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, que em todo 25 de julho rememora não só o seu papel mas o de outras mulheres negras na luta por liberdade. Vale recuperar também a história da rainha Aqualtune de Palmares, mãe de Ganga Zumba, primeiro líder do Quilombo dos Palmares. A história guerreira de Aqualtune, entretanto, não se inicia no quilombo, mas na resistência liderada por ela de 10 mil homens e mulheres do reino do Congo contra a escravidão. Com a derrota do povo nativo, o império lusitano estendeu seu poder sobre mais esse território e enviou os sobreviventes da batalha de Mbwila – na qual Aqualtune foi líder – para o Brasil como escravos [12].

As mulheres foram, sem dúvida, importantes guerreiras armadas em defesa dos quilombos. Talvez por isso surjam símbolos míticos como o de Dandara de Palmares [13], que segundo se conta, após a morte de Aqualtune, teria assumido junto de Zumbi a liderança do quilombo de Palmares com o objetivo de não ceder a nenhuma conciliação com os escravocratas e colonialistas. Conta a história que Dandara teria liderado a última tropa quilombola que sobreviveu aos ataques do exército em missão de destruição a Palmares e de captura a Zumbi. Quando percebeu que sua tropa também estava derrotada, Dandara se suicidou para não voltar à condição de escrava.

As revoltas urbanas, as ganhadeiras e a primeira greve brasileira

Apesar dos quilombos e mocambos terem sido a forma principal da luta por liberdade durante dois dos três séculos de escravidão, o último deles é marcado pelo avanço gradativo de outra forma de luta, marcada pelo desenvolvimento das grandes cidades coloniais e suas populações negras, mestiças e de brancos empobrecidos e revoltosos com a realidade colonial, que impunha impostos altos sobre mercadorias nacionais e importadas e que, via de regra, fazia dos grandes centros urbanos um conglomerado de pobreza e miséria social.

A convergência entre as dores da vida escrava e a pobreza da população livre – africana e mestiça em especial – impulsionou as revoltas urbanas. Essas revoltas adquiriam um caráter absolutamente ameaçador. Isso porque o trabalho que mantinha de pé os grandes centros urbanos nos quais elas aconteceram era essencialmente negro – fosse esse trabalho escravizado ou livre. As revoltas urbanas foram de vários tipos, tamanhos e níveis de organização, mas em geral se diferenciavam dos quilombos e mocambos pela ausência de uma fuga coletiva e a presença de uma disputa política no interior da própria cidade. Destaca-se a participação feminina em algumas delas, conforme apresentaremos a seguir.

A primeira delas foi a Revolta dos Malês, ocorrida na Salvador de 1835. Apesar de uma liderança marcadamente masculina [14], as mulheres fizeram parte da rebelião que ambicionou a possibilidade de tomar o controle do poder na cidade de Salvador, abolindo localmente a escravidão e garantindo a liberdade religiosa [15]. Apesar de não haver registro historiográfico de Luiza Mahin [16] – que figura como líder malê na carta autobiográfica de Luiz Gama – há registros de outras mulheres que participaram da revolta. Emerenciana foi vista distribuindo anéis da sociedade malê. “Edum forneceu os inhames para o banquete malê na noite do levante e pelo menos mais duas libertas africanas, Maria das Chagas e Maria da Conceição, foram acusadas de fornecer comida aos rebeldes reunidos na ladeira da Praça” [17]. Outros exemplos de mulheres aparecem nos documentos da repressão e no relato oral, mas dessa vez não como rainhas, papéis que exerceram nos quilombos e mocambos.

Houve também revoltas com objetivos separatistas, como foi a revolta federalista do Forte do Mar, ocorrida também na Bahia, em 1833, com a participação emblemática de uma mulher registrada pela repressão, a preta Ursulina, uma entre 166 rebeldes, cuja profissão figura “ganhadeira”, e que “segundo uma testemunha da revolta federalista do Forte do Mar, ‘estava no dito forte onde ia vender comestíveis [...] e no dia da mencionada sublevação prestou com grande gosto o serviço a favor da Federação e daqueles sublevados’ [18]" [19]. Destaquem-se sua profissão e a colaboração com a luta, que serão abordadas mais longamente dentro da temática da greve.

Outro episódio interessante e, nesse caso, de maioria feminina, foi a Cemiterada, ocorrida também na Salvador de 1836. Diante da proibição de enterrar seus mortos nas igrejas, as mulheres – negras e brancas pobres – participaram da organização e da marcha: “forneceram pedras para os homens lançarem contra janelas do escritório da empresa do cemitério, e engrossaram a multidão que marchou até a recém inaugurada necrópole.” [20]

Assim, a meados do século XIX, na principal capital do país, a Salvador de mais de 70 mil habitantes, aconteciam uma série de demonstrações de revolta por parte da população negra escravizada e livre. O grau de mobilização e a radicalidade de negras e negros preocupava a classe dominante local, não apenas pelos eventos mais avançados no grau de conspiração – como os Malês – ou os que “tomaram o céu de assalto” – como a Revolução haitiana de 1791, mas também pela característica da economia local, que configurava em Salvador uma dependência absoluta do trabalho negro:

no final da década de 1830, o reverendo norte-americano Daniel Kidder observou que as ruas estreitas, irregulares e mal pavimentadas da Cidade Baixa eram “cheias de ambulantes e carregadores”, e sobre estes últimos detalhou: “Grandes números de negros altos, atléticos, são vistos se movimentando em pares ou gangues de quatro, seis ou oito, com suas cargas suspensas entre eles por pesadas varas”. Em 1847, o barão de Forth-Rouen teve impressão semelhante: os negros formavam “a maior parte da população da Bahia, e a única que se percebe nas ruas, espécie de bestas que se empregam em todos os transportes, e que circulam carregados de pesados fardos”. Não se viam mestiços, muito menos brancos, a desempenhar esse papel. “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”, observou dez anos depois o alemão Robert Avé-Lallemant. Para os habitantes de Salvador, essa paisagem humana já se havia naturalizado [21].

O crescimento da população escravizada que comprava sua liberdade ou a ganhava de seus senhores fazia também com que parte importante desses negros fossem livres ou libertos, impedindo que o Estado pudesse contar com a chibata do senhor para castigar a rebeldia. As leis que impediam a circulação de escravos e libertos, fundamentais para afogar possibilidades de revolta, já que conhecer a cidade e seus fios invisíveis de mobilização havia sido decisivo para os malês, não podiam se aplicar da mesma forma aos livres e libertos. Não à toa, nesse contexto, negros e negras libertos e livres eram rapidamente enquadrados nos mesmos crimes e perseguidos sob as mesmas diretrizes que orientavam a repressão contra os negros escravizados. Vagar pela noite era uma das principais. Entretanto, o fato de serem escravizados fazia com que a pena e a perseguição contra alguns rebeldes pudessem assumir formas mais duras, em especial porque a origem dessa repressão era dupla: Estado e senhor adquiriam igual poder de repressão e castigo.

É assim que chegamos às vésperas da eclosão da Greve Negra de 1857, a primeira greve brasileira de todo um setor fundamental da economia urbana, com uma teia organizada em torno do trabalhador negro, dotados de heranças rebeldes das revoltas urbanas anteriores. Esses trabalhadores que circulavam pela cidade, os ganhadores e ganhadeiras possuíam um dado relevante: uma importante presença feminina. Nessa Salvador onde “tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”, recriando nas ruas de Salvador uma tradição que marcava também a vida na África [22]. Sobre seu papel na produção urbana, Reis destaca que

Os negros também circulavam pelas ruas em demanda a seus empregos como oficiais mecânicos (pedreiro, ferreiro, tanoeiro, sapateiro, alfaiate etc.), e as mulheres cobriam alargado território urbano na condição de ambulantes. Muitas escravas e escravos dividiam sua jornada de trabalho entre a casa e a rua: compravam o alimento nos mercados e nas feiras para depois prepará-lo na cozinha senhorial e, em seguida, retornavam às ruas para vender comida pronta e outros produtos. [...] uma típica dupla jornada escravista. [23]

Esse termo por mim destacado, tão caro à luta das mulheres contra o patriarcado, não deixa de ganhar um novo e profundo sentido nesse contexto. Isso porque o trabalho de ganhadeira tornava possível para uma massa de mulheres negras comprar a tão sonhada liberdade. Não foi à toa que no censo de Santana de 1849 se verificou que as negras eram 60% dos africanos libertos [24], fruto da lucratividade e do domínio do mercado urbano com seu trabalho. A assim chamada “dupla jornada” era a forma pela qual várias delas, após a rotina de trabalho nas ruas, garantiam uma renda que fosse exclusivamente sua, uma forma silenciosa de revolta contra a vida escrava. Certamente a essa dupla jornada se somavam ainda os cuidados domésticos com filhos e com a reprodução da vida familiar, como era há séculos e ainda é responsabilidade das mulheres.

As mulheres vendiam todo tipo de alimentos e outros produtos, inclusive vestuário, que levavam sobre suas cabeças em “caixinhas”, pra cima e pra baixo pelas ruas de Salvador, garantindo o acesso da elite da Cidade Alta às comidas vendidas nas feiras da Cidade Baixa. “As cabeças das negras [...] [têm] um lugar fundamental na geografia econômica de Salvador”, explica o historiador após apresentar os dados [25].

Essa posição de destaque na cidade separava as mulheres negras das mulheres brancas, em especial as da classe dominante local:

A reclusão das mulheres, hábito verdadeiro na Bahia oitocentista, já não era tão verificada no século XIX. Embora ainda se escondessem dos olhos do povo em geral, quando saíam em cadeiras de arruar e eram transportadas de cortinas fechadas, recomendadas para que não abrissem nem uma nesga delas, para não serem vislumbradas, as representantes do sexo, então, realmente frágil, já tinham liberdade de, acompanhadas, freqüentar as igrejas, as festas religiosas, as procissões, as reuniões familiares, os teatros, as festas cívicas, sem falar nas raras vezes, em que o Presidente da Província recebia, ou um cônsul de um país amigo oferecia uma festiva recepção. [26]

Nota-se que na época em debate – entenda-se meados do séc. XIX – as mulheres brancas da classe dominante, ainda que adquirindo o direito a alguns espaços públicos, tinham uma presença social limitada à autorização de seus maridos e familiares. Enquanto as ruas eram tomadas pelos corpos de negras e as suas “caixinhas” perambulavam em busca de compradores, a mulher branca ainda estava restrita, basicamente, ao ambiente doméstico.

Sabe-se, por tradição, que as senhoras não iam às ruas desacompanhadas de elemento masculino. As viúvas ou solteironas, que precisavam sair, usavam um traje de aspecto severo, com firme intenção de serem respeitadas. “Era uma capa de fazenda preta, guarnecida de pelúcia que descia até os pés. Um capuz cobria a cabeça e deste descia uma aba larga que lhe cobria os ombros”. As caponas subsistiram durante muito tempo, depois começaram a cair no ridículo. [27]

Longe de uma apreensão separatista entre negras e brancas – que em distintos episódios das lutas antipatriarcais brasileiras e pelo mundo vão se unir em busca de direitos arrancados igualmente de todas nós – a apresentação dessa distinção tem o objetivo de traçar uma hipótese importante para se compreender o papel das mulheres negras nas rebeliões escravas e negras e, em especial, na greve negra de 1857, tema de nosso próximo tópico. O patriarcado e as ideias e violências que compõem essa opressão circulavam pela vida social das mulheres negras escravizadas, livres e libertas, mesmo que tomando contornos muito distintos dos empregados contra as senhoras. Às últimas estava garantido - assim como a burguesa contemporânea à nós - o direito de explorar, castigar e violentar outras mulheres. Mas é de se imaginar que o conteúdo do patriarcado usado contra elas servia de ferramenta também para a perseguição e repressão do Estado e dos senhores contra as negras escravizadas, libertas ou livres. Em muitas das obras lidas para este artigo estão presentes palavras que se repetem nos jornais e relatórios policiais da época dedicadas exclusivamente às mulheres: endemoniada, alvoroçada, escandalosa, possessa. Quanto aos seus rituais de trabalho, o que as autoridades lhes tinham a oferecer era “chicote!” [28].

O peso do patriarcado estava expresso de várias formas, desde a relação do Estado com as ganhadeiras até os efeitos dele na sua organização trabalhista e política. Ainda que fossem maioria no comércio urbano, as ganhadeiras apenas por pouco tempo fizeram parte dos cantos, organizações trabalhistas que existiam entre os ganhadores com o objetivo de estabelecer custos básicos por serviço ou produto e dividir o trabalho disponível entre os trabalhadores. Quando participaram dos cantos, as mulheres tinham seus trabalhos pautados sempre no valor mais baixo, até que buscaram organizar seus próprios grupos trabalhistas, separadas dos homens.

As ganhadeiras e seu papel na greve negra de 1857

A presença negra em serviços tão essenciais preocupava setores da classe dominante, aterrorizados pela possibilidade de novas revoltas, mas também camadas mais empobrecidas da população branca, que almejavam ocupar parte desse comércio. Por parte do Estado, as mulheres foram as primeiras vítimas alguns anos antes dos homens, de restrições e impostos sobre o seu trabalho de ganhadeira, provavelmente para satisfazer o desejo de que os africanos e negros saíssem de Salvador. Quando, em 1857, anunciam-se restrições e impostos sobre o trabalho dos homens ganhadores – como o uso de placas de registro no pescoço, atreladas à licenças pagas pelos próprios trabalhadores e a declarações de boas intenções de um dono ou de um comerciante rico – as mulheres ganhadeiras já acumulavam uma série de obrigações exclusivas sobre o seu trabalho.

Porém, quando recebem a notícia de que terão obrigações financeiras absurdas, além de ter de carregar uma vergonhosa placa, os negros ganhadores decidem paralisar seu trabalho, no dia primeiro de junho de 1857. A cidade inteira mobilizada pela força negra se viu, do dia para a noite, vazia dos barulhos e das pernas negras que subiam e desciam pela cidade. Após uma semana de paralisação, o governo começa com suas tentativas de desmobilização, buscando separar escravizados e livres, retirando o pagamento pela licença do trabalho e facilitando assim o cadastro de ganhadores em massa pelos seus senhores. A divisão entre escravizados e livres golpeou o movimento, mas foi rapidamente respondida pelos grevistas, que roubavam as placas dos que caminhavam pelas ruas com seus registros pendurados no pescoço. Assim, com o movimento resistindo às tentativas de desmobilização,

os baianos terminavam aquela semana com pesadelo de branco: andar a pé, por falta de carregador de cadeira; levar eles próprios cartas ao correio, por falta de ganhador de cesto; pegar água na fonte, por falta de aguadeiros; além do desabastecimento geral da cidade, por falta de cangueiros para transportar as mercadorias encalhadas no porto. Como era bom ter africano para prover tudo isso! E ainda tinha gente querendo-os expulsar da Bahia. [29]

O fato de já contarem com uma série de mecanismos de controle não fez com que as ganhadeiras se ausentassem da luta levada adiante pelos seus companheiros ganhadores. Resgatando suas formas de participação anteriores, as mulheres garantiram alimento para os grevistas, já que muito do que se comia na cidade era feito pelas mãos delas. É possível inclusive que tenha havido dias da greve em que elas próprias deixaram de circular as suas mercadorias para apoiar seus companheiros, ainda que a vitória conquistada pela greve aos 12 de junho de 1857, quando esta se encerrou, não tenha se estendido para elas. Elas também eram as que usavam da chacota para ridicularizar os escravizados ou livres que furavam a greve e carregavam as plaquinhas no pescoço. Poderiam dizer que seu papel foi inferior ou menor frente ao papel que cumpriram nas revoltas ou na formação dos quilombos, mas ao se considerar a ausência de um ataque direto contra elas e a realização de uma luta através de mecanismos de organização política – os “cantos” – que elas já não participavam mais, é impressionante ver o papel de solidariedade e unidade que essas mulheres cumpriram, duas palavras absolutamente atuais para os dilemas da classe trabalhadora que ainda carrega os contornos da divisão e da estratificação, utilizados pela burguesia para nos enfraquecer.

O papel das mulheres certamente serviu para fortalecer a luta. Como explica o historiador, o governo se viu forçado a negociar, já que “a polícia dificilmente poderia controlar toda a cidade. Inclusive porque os ganhadores atraíram aliados para o movimento: parte da comunidade africana viera a campo apoiá-los, nomeadamente seus rapazes e suas mulheres”. [30]

O final contraditoriamente vitorioso – já que a taxa caiu, o imposto foi mantido e a placa mudou de lugar, podendo estar visível mas não necessariamente no pescoço – indica o grau de pavor que atingiu a classe dominante. Um dos pavores era o da possibilidade de que greve virasse moda. Entre os que acompanhavam a luta e buscavam uma rápida solução, o historiador percebe que “temia-se que os africanos da Bahia estivessem fundando uma tradição” [31]. Ainda sem nome de greve, a imprensa local e nacional tentava descrever e entender o que acontecia no solo soteropolitano:

O mundo se tornava cada vez mais complexo naquela altura do século. Ficava mais fácil entender uma revolta como a dos malês – mas o que era aquilo?! [...] em 1857, os vereadores definiram o movimento como “conluio ou parede entre africanos libertos e os escravos”. [...] “parede” é registrado para significar insubordinação de estudantes que se recusam a entrar na sala de aula para escutar suas lições, acepção que adentrará o século seguinte. Só mais tarde o vocábulo evoluiria para representar a suspensão coletiva do trabalho como repertório de protesto. [32]

À definição de parede, já distinta do que chamamos as revoltas urbanas, seguem definições ainda mais exaltadas:

Num longo balanço do movimento, o Jornal da Bahia de 5 de junho de 1857, uma sexta-feira, tentou entendê-lo por meio de uma nova configuração conceitual e o classificou como “ameaçadora crise, uma revolução”, a “revolução dos ganhadores”; e estes seriam “novos revolucionários”, que tinham “entendido dever impor seus interesses” [...] A carta de um residente em Salvador, testemunha dos acontecimentos, publicada no Correio Mercantil carioca, afirmou estar em curso na província nortista – o Nordeste ainda não tinha sido inventado como região – uma “revolução pacífica dos africanos ganhadores: é uma novidade nova que tem feito aqui seu barulho”. [33]

Ainda que “revolução” seja um exagero para definir a paralisação de uma categoria de trabalhadores exigindo o atendimento de uma reivindicação, o que se viu em curso na Salvador de 1857 foi uma verdadeira subversão semiproletária do sentido da revolta urbana que caracterizou o movimento dos malês, dos haussás, dos sabinos, entre tantos outros radicais que buscavam intervir contra a presença portuguesa ou pelo direito ao seu território. Esse movimento que hoje chamamos de greve negra foi a primeira demonstração de organização de trabalhadores através de seus mecanismos de colaboração – naquela época os cantos – buscando disputar o apoio de setores sociais aliados – as ganhadeiras, o principal deles – e se conectando a uma tradição que vai marcar um dos principais métodos de luta e organização da nossa classe no enfrentamento ao sistema capitalista.

O embate entre as classes se deu durante toda a história entre explorados e exploradores, senhores e escravos. A forma atual desse embate, entre classe trabalhadora e burguesia, coloca-nos do mesmo lado da trincheira na qual estiveram cada um dos rebeldes, quilombolas e mocambeiros. A forma atual da luta de classes não se construiu por assalto. A burguesia brasileira e mundial herdou aspectos metodológicos e ideológicos dos senhores de escravos dos séculos passados. A nossa classe trabalhadora se constitui gradativamente tanto como assalariado, tanto em seus métodos de luta e de resistência. Não chegamos, portanto, aos métodos de nossa luta contra o capital nos dias de hoje sem ter passado por ensaios gerais como o da greve de 1857; assim como os ganhadores grevistas chegam até ali precedidos por experimentações moleculares da “parede” como no caso da Rebelião do Engenho de Sant’Anna, na qual os rebeldes apresentam um tratado para negociar o fim da revolta no qual exigem, entre outras demandas, a redução da jornada de trabalho [34]. Que se faça lembrar que a primeira greve brasileira, ainda antes das grandes fábricas, foi negra, e que dela participamos aos montes, nós mulheres, as ganhadeiras de ontem e o proletariado de hoje.

 
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