www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
Ideias de Esquerda
Revolta e revolução no Chile. Um balanço sobre o triunfo do Rechaço à nova Constituição
Pablo Torres
Fabián Puelma
Ver online

O resultado do plebiscito constitucional no Chile foi um terremoto político. O que imediatamente chama a atenção dos comentaristas é como passamos de um apoio massivo da “aprovação de entrada” (que beirava os 80% no plebiscito de 2020) e uma derrota da direita e da velha Concertación nas eleições convencionais constituintes, a um triunfo esmagador da rejeição ao projeto constitucional por 62% dos votos.

Durante essa semana houve muitas análises eleitorais. Está relativamente claro que o voto massivo pela rejeição (no contexto da inauguração do sufrágio obrigatório com inscrição automática) se explica por diversos fatores. O “rechaço” constituiu, para amplos setores, um voto contra a situação econômica (em um momento em que a inflação chega aos 13%, cifra não vista em 30 anos) e a consequente crise social. Como o governo não tomou nenhuma medida séria para enfrentar os efeitos da crise econômica e da inflação e, no sentido contrário, assumiu zelosamente o mandato do ajuste, não surpreende que Gabriel Boric tenha se transformado no símbolo da deterioração econômica. E isso se transferiu para a aprovação, que muitos eleitores identificaram com o governo. É preciso acrescentar que a própria Convenção Constitucional se manteve totalmente afastada das urgências populares. A direita aproveitou esse cenário para promover uma campanha demagógica e odiosa. Seus argumentos penetraram em setores amplos.

É preciso dizer que a campanha da aprovação, dirigida pelo governo de Gabriel Boric, Apruebo Dignidad (Frente Ampla e Partido Comunista) e a ex-Concertación, teve uma aposta claríssima: ceder os principais argumentos à direita e apostar no centro. Diziam que era para ampliar o arco de apoio, mas sucedeu exatamente o contrário. Ajudou a que o eixo discursivo da direita tivesse mais legitimidade. Hoje o Governo assume plenamente o balanço da direita e faz seu o ataque ao que eles chamam de “maximalismo” ou “outubrismo”. O progressismo frente-amplista e os reformismos impõe essa tese, buscando transformar a desmoralização dos votantes da aprovação em resignação ao novo rumo das coisas.

Entretanto, todas essas explicações ao voto da rejeição seguem sendo parciais e não explicam seu triunfo eleitoral esmagador. Se o ciclo político em que se enquadra o plebiscito foi aberto por enormes mobilizações de massas, as mudanças e oscilações da psicologia de massas só podem ter explicação nos resultados de sua experiência na luta de classes e na resposta da classe dominante para tentar neutralizá-la. O resultado não caiu do céu, foi fruto de combates e orientações políticas concretas.

O impacto da derrota levou alguns a desempoeirar a clássica tese, válida para todos tempos e lugares, de que a vitória do neoliberalismo foi insuperável nos setores populares. Passaram de um otimismo e êxtase constitucional ao pessimismo social. Resta supor uma longa disputa pelo senso comum e uma gradual acumulação de forças. É claro que o descontentamento expresso pela votação foi canalizado pela direita através de um voto conservador, mas isso de forma alguma significa conformidade com o Chile herdado da ditadura. Ainda menos hoje, em um momento de crise econômica. De fato, segundo mostram todas as pesquisas, a grande maioria não quer manter a constituição atual. A direita e os velhos dinossauros da Concertación comemoram, mas a derrota da aprovação não significa um respaldo a esses políticos que, há menos de um ano, nem sequer passaram ao segundo turno. A crise política está longe de se resolver, como mostram as divisões existentes entre os partidos sobre como administrar a situação pós plebiscito. O momento político marcado pelo “Acordo pela Paz e pela Nova Constituição” está se encerrando, mas a crise não foi resolvida.

A utopia de acabar com o Chile da transição de maneira pacífica e alegre, que muitos abraçaram, se estatelou contra a parede. Dentro de setores da esquerda que promoveram essa orientação destacam-se o Movimientos Sociales Constituyentes e a Coordinadora Plurinacional (da qual fazem parte o setor de Jorge Sharp e os membros convencionais da ex-Lista del Pubelo), que apostaram todas as suas fichas em uma reforma progressista do regime herdado da ditadura, entrando com tudo nas negociações de corredor para conseguir o quórum de dois terços e enterrando qualquer perspectiva de “transbordar” a Convenção desde as ruas.

Mas a estratégia de “revolta permanente” mostrou todos os seus limites, não só porque ajudou a isolar os setores combativos das grandes massas, mas também por carecer de um programa que pudesse enfrentar as operações da burguesia para neutralizar a luta de classes.

Diante dessas apostas, é preciso construir uma alternativa a partir da classe trabalhadora. Diante do fatalismo pessimista que culpa o povo (“não estavam preparados para uma Constituição de vanguarda internacional”) e contra o conjunturalismo (“faltou uma campanha melhor”), defendemos que é impossível entender o resultado do plebiscito sem ver os efeitos desmobilizadores do “Acordo pela Paz e pela Nova Constituição”. O resultado não estava definido de antemão. Pelo contrário, a rebelião de outubro abriu a possibilidade que as principais demandas de outubro como saúde, aposentadorias, educação e acabar com a herança da ditadura (que seguem pendentes), fossem conquistadas por uma via revolucionária, apostando que a revolta abriu caminho para um processo revolucionário.

Qual foi a aposta do Acordo pela Paz e pela Nova Constituição e o desvio constitucional?

Um dos dados fundamentais da eleição é que existiu um divórcio entre amplos setores de massas, que votaram na rejeição, e a base social da aprovação, dirigida e hegemonizada pelo governo, Apruebo Dignidad e as diversas burocracias dos sindicatos e dos movimentos sociais (incluindo o Movimientos Sociales Constituyentes, que tem sua origem na Mesa de Unidad Social), com forte peso nos setores médios progressistas com um programa de direitos sociais (mas sujeita à restauração progressista do Estado capitalista).

Um dos objetivos declarados do Acordo do 15N foi dividir a aliança de classe “de fato” (nas ruas) que se forjou durante a rebelião entre setores precários, trabalhadoras e trabalhadores que atuaram de maneira diluída nos protestos, as camadas médias e setores importantes do povo mapuche. A paralisação nacional do dia 12 de novembro de 2019 – a mais importante desde a ditadura – foi o momento onde se mostrou a potencialidade dessa aliança e a possibilidade de que a classe trabalhadora entrasse em cena. Esse foi o “ponto de inflexão”, como disse Piñera. Apenas alguns dias depois firmou-se o Acordo pela Paz para dar início ao processo constituinte.

Essa greve paralisou 25 dos 27 principais portos, 90% do setor público, 80% das e dos docentes, paralisação da saúde e de importantes obras da construção civil, entre outros; deu “liberdade de ação” para que se desenrolasse não apenas mobilizações de massas, mas também permitiu a ampliação dos cortes de rua nas principais rodovias do país e o violento enfrentamento com as forças repressivas nas cidades e praças. A intersecção entre a paralisação de setores estratégicos e os métodos de ação direta forçaram a paralisação de grande parte do transporte e do comércio nacionalmente. Houve dezenas de ataques a delegacias de polícia por manifestantes, inclusive quartéis militares. “Pedimos o controle da rua, presidente”, é o que o ministro do Interior, Gozalo Blumel, disse a Piñera.

Tratou-se de uma verdadeira “jornada revolucionária” que deixou Piñera por um fio. Se a queda do presidente, que se discutia como possibilidade nos círculos de poder e que era uma das demandas dos amplos setores que se mobilizaram em outubro, tivesse sido uma conquista da luta de classes, teria aberto um processo revolucionário, a possibilidade de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana e de impor de imediato as demandas mais urgentes que guiaram a rebelião de outubro.

Para isso era necessário a continuidade da greve geral e o desenvolvimento de organismos de auto-organização. Entretanto, esse não era o objetivo do Bloco Sindical de Unidade Social (convocantes da greve): exigiam uma “negociação sem exclusões” com Piñera para apresentar as “demandas” (entre as quais não havia nem Fora Piñera nem Assembleia Constituinte). De fato, uma vez que o “Acordo de Paz” foi assinado, não convocaram nenhuma ação de características similares ao 12 de novembro.

O objetivo estratégico do Acordo de Paz era canalizar institucionalmente a luta de classes para neutralizá-la. A classe dominante preferiu ir em direção a uma nova Constituição como moeda de troca, considerando que desde os anos 80 é anacrônica, inviável e não gerava a governabilidade necessária. Mas também tinha objetivos táticos muito precisos: além de salvar a pele de Piñera,o foco era trazer plenamente os setores médios ao itinerário constitucional com a ilusão de uma mudança pacífica do regime herdado da ditadura. Separar os setores populares das classes médias, que foi o que se expressou na eleição do último 4 de setembro.

Esse esforço orquestrado por todos os partidos (aos quais se somou o Partido Comunista) e apoiado pelos poderes econômicos, foi bem-sucedido. A classe trabalhadora, não intervindo nas revoltas como sujeito e não existindo instâncias de auto-organização para a luta que pudessem se opor ao desvio, não tinha um programa alternativo nem a força material para impô-lo. Nesse quadro, a juventude combativa ficou isolada e a linha de “revolta permanente” só podia aumentar o desgaste e o isolamento diante da maioria da população.

A decepção diante da Convenção e o do governo de Boric gerou esse resultado

O divórcio e a decepção entre amplas camadas de massas e o processo constituinte se aprofundou com a instalação da Convenção Constitucional e com o aprofundamento da crise econômica e social decorrente da pandemia.

Com uma Convenção subordinada aos poderes constituídos, falando a linguagem de uma “refundação progressista” do Estado longe das urgências populares, com gestos de “outubrismo” totalmente vazios, com negociações de corredor entre as bancadas para alcançar os dois terços; milhões viram a Convenção como uma instituição a mais dentro de um regime questionado. Muitos setores que votaram na aprovação ficaram decepcionados com o processo constituinte.

As principais direções dos sindicatos e dos movimentos sociais entraram no jogo parlamentar em vez de mobilizar pelas demandas urgentes e ligá-las a um programa de conjunto para extirpar todo o legado da ditadura. O resultado? Longe de dar sustentação social ao processo, aumentou a separação entre a classe trabalhadora e os setores populares com a própria Convenção. Isso não se reduz à burocracia sindical tradicional ligada à CUT, mas também aos “novos dirigentes sociais” dos Movimientos Sociales Constituyentes, a Coordinadora Plurinacional que formou o Comando de los Movimientos Sociales. Sua campanha não teve nenhuma delimitação com o governo (pelo contrário, fizeram campanha conjunta nas últimas semanas) e estava baseada em assegurar que a nova Constituição resolveria todos os problemas sociais e nossas demandas históricas.

Por sua vez, a LIT-CI de María Rivera concluiu após o fracasso da aprovação que, agora sim, “devemos voltar às bases”. Uma verdadeira confissão da parte. Inclusive hoje, depois da esmagadora derrota da aprovação, continuam sustentando que o processo constituinte foi uma vitória do 18 de outubro. O problema seria que a maioria da Convenção foi conquistada pelo reformismo. Seu balanço, então, é que deveríamos ter conquistado a maioria da Convenção? Um balanço totalmente parlamentário e alheio à luta de classes.

A decepção e as expectativas frustradas não são inócuas para a correlação de forças e a consciência das massas. Essa decepção lamentavelmente foi capitalizada pela direita ao não existir uma alternativa independente. O que o fracasso da Convenção Constitucional e do progressismo pequeno-burguês mostram é que não basta uma rebelião e um processo constituinte nos limites do regime para resolver as questões profundas que estão por trás da luta para acabar com todo o legado da ditadura. Não será com um lápis e um papel que conseguiremos derrotar a resistência dos capitalistas que se agarram com unhas e dentes aos pilares do Chile neoliberal herdado da ditadura.

Havia um curso alternativo ao “Acordo pela Paz e pela Nova Constituição”?

Não foi por acaso ou por adaptação às circunstâncias que essas organizações fizeram uma aposta estratégica pela Convenção Constitucional. Durante o próprio curso da rebelião de outubro, elas apontaram para que as mobilizações fossem uma força de pressão sobre o regime para conquistar uma nova Constituição nascida da democracia, dos direitos sociais, plurinacional, paritária, ecológica, etc.

Para os que convocaram o 12 de novembro de 2019 (Mesa de Unidad Social), a jornada deveria ser enquadrada em uma “greve de protesto” o mais controlada possível, para pressionar por algumas concessões do regime. A única forma de evitar a armadilha do “Acordo pela Paz” (que muitos dos mesmos dirigentes catalogaram como de “cúpula”), exigia não um movimento de retirada e trégua com de fato aconteceu, mas a conquista de novas posições no âmbito de um plano estratégico cujo objetivo fosse acabar com o governo de Piñera e todo o velho regime. Essa seria a única via para instalar uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana e tomar medidas urgentes como acabar com as AFPs, aumentar as aposentadorias, conquistar uma educação gratuita e de qualidade realmente para todas e todos, acabar com as listas de espera nos hospitais e conquistar o direito à saúde pública e gratuita, responder às demandas do movimento de mulheres, devolver as terras ancestrais ao povo mapuche, entre muitas outras. Com essa experiência, se imporia a necessidade de fortalecer a constituição de organismos de auto-organização e poder da classe trabalhadora e dos setores populares, que permite levantar como objetivo a conquista de um governo dos trabalhadores e do povo.

Ao contrário, para aprofundar o curso que apontava a greve geral, era necessário conseguir a entrada do conjunto dos setores estratégicos como a mineração, o transporte, os aeroportos, os trens, os metrôs e as indústrias. Isso significaria a entrada dos setores que não tinham entrado em greve, motivo do porquê teve um caráter parcial. Uma greve geral política desenvolvida envolve a extensão do movimento a setores estratégicos, única forma de quebrar a resistência dos grandes capitalistas, pois, sem afetar seus lucros e sua propriedade, é impossível tomar medidas profundas para resolver integralmente as demandas de outubro. Por sua vez, durante a rebelião, houve enfrentamentos frontais com os Carabineros, mas o método da revolta sem greve geral demonstrou-se incapaz de derrotar e desorganizar a força repressiva do Estado, devido a que os trabalhadores associados a essas tarefas estratégicas são os que sustentam materialmente o desenvolvimento das forças repressivas.

A entrada de setores estratégicos permitiria ampliar a aliança entre os setores organizados, que paralisaram no dia 12, os setores não organizados e os setores pobres da classe trabalhadora. Estrategicamente, não apenas implicaria onde golpear o grande capital, mas unificar os trabalhadores e o povo. Por exemplo, em Antofagasta, a dinâmica foi de maior divisão entre os mineiros e as populações. O dia 12 de novembro foi um ensaio dessa unidade que, entretanto, não teve continuidade nem se desenvolveu.

Outro aspecto fundamental foi desenvolver a auto-organização da classe trabalhadora. Por que o Comitê de Greve organizado pela Mesa de Unidade Social não se organizou ampla e massivamente a partir de baixo? Por que não criar centenas de comitês em todos os lugares de trabalho e em todas as áreas da economia? Por que não propor coordenar as diversas instâncias que surgiram de baixo como as assembleias territoriais e os comitês de emergência?

Não era o objetivo da burocracia formar um verdadeiro “comitê de greve”, mas acordos “por cima” sem comitês na base e uma manifestação controlada dos setores estatais e docentes sem envolver as engrenagens mais importantes da classe trabalhadora. Sem aprofundar a luta de classes, as demandas que eles diziam defender não poderiam se resolver, pois ficavam sujeitas à vontade dos capitalistas e seus partidos.

Isso é fundamental: como organizar a classe que lutou, mas não se organizou? Talvez aqui estivesse um dos centros do “inorgânico” do movimento. A rebelião desdobrou a criatividade de amplos setores: criaram assembleias territoriais, brigadas de saúde para atender os feridos, surgiu a Primeira Linha, coletivos artísticos e diversas iniciativas de mobilização quase diárias em diversos pontos do país. Entretanto, todos esses setores atuaram de maneira dividida e muitas trabalhadoras e trabalhadores que participaram das mobilizações não encontraram um lugar onde se organizar. Isso mostra como as diversas organizações dividiram essa força e não se propuseram seriamente impulsionar instâncias de auto-organização ligadas à luta e não meros “conselhos”. Esses organismos de auto-organização teriam permitido a deliberação em assembleias para decidir o plano e os passos da luta, eleger delegados para coordenar setores, comissões que executem os planos e possam ser de diversos tipos: territoriais, por unidades produtivas ou mistas.

Mas a imposição dessa política da burocracia não é um destino incontornável nem tampouco é a consequência natural de uma debilidade histórica dos sindicatos e do “tecido social”. Um dos aprendizados da jornada da greve geral é que a fragilização relativa dos grandes aparatos sindicais e dos partidos reformistas tradicionais permitem que em momentos de ascenso seja mais fácil impor a frente única, desenvolver instâncias de auto-organização e transbordar o controle da burocracia.

Um exemplo ilustrativo dessa dinâmica ocorreu na cidade de Antofagasta, onde o Comité de Emergencia y Resguardo convocou uma reunião no dia 9 de novembro, na qual reuniu organizações sindicais da indústria, do porto, do Colégio de professores, dirigentes mineiros, organizações estudantis e culturais, e também delegações das principais populações da cidade. No encontro, que teve mais de 500 participantes, definiu-se organizar detalhadamente a jornada de greve, acordando com a população cortar as rotas da mineração para assegurar a paralisação, um pronunciamento comum com as demandas de Fora Piñera e por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana e uma mobilização no período da tarde. Esses setores conseguiram impor uma mobilização unificada e um ato à CUT e à Mesa de Unidade Social que reuniu 25 mil pessoas. Antofagasta foi um lugar avançado porque conseguiu expressar organizativa e programaticamente a luta pela Frente Única, mas lamentavelmente não foi isso que deu o tom.

Por último, frente ao problema da autodefesa, colocava-se um problema de coordenação similar ao anterior, partido do amplo arco de iniciativas que se deram ao calor do enfrentamento com a política: primeira linha, brigadas de saúde, comitês de defesa jurídica nas universidades, meios de comunicação independentes, entre outros. No auge da mobilização em Antofagasta, a sede do Colégio de Professores funcionou como um verdadeiro centro de mobilização de rua. Se exemplos como esses, ainda pequenos para o conjunto do processo, fossem promovidos em nível nacional, provavelmente a luta poderia ter passado a níveis superiores.

Em vez disso, a CUT tentou garantir um caráter pacífico e controlado, separando as organizações operárias da juventude combativa, que continuou à tarde com ações de luta de rua. Poderia ter se desenvolvido coordenando as primeiras linhas com comitês dos sindicatos, dos operários e da construção e da indústria, planificando táticas para derrotar a política, o que marca um contraste com aqueles que apostaram em uma via meramente revoltista ou de grupos desorganizados como propõe os anarquistas mediante ações de combate individual. Os próprios comitês de autodefesa, junto à primeira linha, poderiam organizar esses combates de forma ordenada, concentrar forças, bloquear os saques de bandos lumpem. Eventualmente, em caso de agudização dos combates em que seja o exército e as forças armadas que reprimam, poderia organizar comitês armados exigindo o armamento popular, bloqueando qualquer tentativa de revoltas desesperadas e isoladas onde o poder do Estado aproveite para atacar.

A relação entre revolta e revolução

A passagem de uma revolta para um processo revolucionário não cai do céu. Como vimos, é mediado por uma forte luta política entre diversas orientações que se desenrolam no decorrer dos acontecimentos.

Para passar da revolta à revolução é necessário romper essas “cúpulas” que impedem o desenvolvimento das tendências revolucionárias; é necessário o desenvolvimento da frente única, que sela a aliança de classe junto aos oprimidos e ao povo; formar organismos de auto-organização para o combate e unificar a luta mediante um programa que unifique a classe trabalhadora e o povo na perspectiva da conquista do poder.

Para isso, para pôr fim ao regime burguês e iniciar um caminho de ruptura com o capitalismo, a estratégia da “revolta permanente” das pedras puras e dos incêndios, são completamente insuficientes, pois se tratam, por mais violência que contenha, de uma luta limitada a pressão ao regime burguês, não pela sua derrubada revolucionária e sua substituição por uma nova ordem dirigida pelos trabalhadores. Correm até o risco de, ao ficarem isolados em explosões esporádicas, ou serem absorvidos pelo velho regime mediante seus pactos e conciliações para desviá-los, como ocorreu no Chile com o Acordo pela Paz em diante; ou serem explosões isoladas violentas que abram espaço para fenômenos bonapartistas e autoritários que, com a bandeira da “ordem”, esmaguem os levantes.

Para passar da revolta para a revolução é necessário o papel dirigente da classe trabalhadora e de um partido revolucionário que se proponha a levar adiante seu triunfo. Leon Trótski, diante dos primeiros movimentos revolucionários na Espanha de 1931, defendia que o desenvolvimento semi-espontâneo das lutas constituía muitas vezes um momento necessário no despertar de massas. Mas nada substitui os fatores subjetivos – partido revolucionários, programa, organizações de massas:

…o que, na etapa atual, constitui a força do movimento – seu caráter espontâneo – pode se converter amanhã em sua debilidade. Admitir que o movimento segue doravante entregue a si mesmo, sem um programa claro, sem uma direção própria, significa admitir uma perspectiva sem esperanças. Não se pode esquecer que se trata de nada menos que da conquista do poder. Mesmo as greves mais turbulentas, e por esse motivo mais esporádicas, não podem resolver esse problema. Se no processo de luta o proletariado não tivesse a sensação nos meses próximos de claridade dos objetivos e dos métodos, de que suas fileiras se tornaram coesas e fortalecidas, se iniciaria inevitavelmente a desmoralização. Os amplos setores, impulsionados pela primeira vez pelo movimento atual, cairiam na passividade. Na vanguarda, a medida que sentisse vacilar o terreno sob seus pés, começariam a ressuscitar as tendências de ação de grupos e de aventureirismo em geral. Neste caso, nem os camponeses nem os elementos pobres das cidades encontrariam uma direção de prestígio. As esperanças suscitadas se converteriam rapidamente em decepção e exasperação.

Em termos gerais, as revoltas são ações de massas que estouram com um enorme grau de violência, que frente a uma situação desesperada ou por tensões acumuladas durante anos, tendem a golpear os regimes burgueses. Apesar de sua radicalidade nos métodos, são movimentos de pressão extrema para conseguir certas concessões, diferentemente de uma revolução que tem por objetivo destruir a ordem existente para erigir uma nova.

No caso chileno foi uma combinação de uma enorme espontaneidade de massas, que protagonizaram jornadas revolucionárias, com setores que durante duas décadas fizeram experiências de luta: a juventude, os estudantes secundaristas e universitários, o movimento feminista, setores do movimento sindical, comunidades empobrecidas e de sacrifício e o povo Mapuche. O conteúdo mais violento veio das periferias, do Chile profundo, o mesmo que deu a maior quantidade de votos novos ao Rechaço.

Ou seja, prevalecem mais os traços espontâneos e violentos do que os conscientes e organizados. As revoltas não conseguem desenvolver a centralidade operária crucial para a revolução, porque golpeia o capitalismo a partir em “posições estratégicas”; não constituem organismos ou organizações firmes que expressem a frente única operária e de massas, no sentido do desenvolvimento da auto-organização em direção ao poder.

A revolução, diferente da revolta, é um combate fundamentalmente de caráter ofensivo , em que a existência e destruição do regime estão em jogo, onde a luta se dá pela liquidação dos poderes dominantes e onde o poder da burguesia é diretamente posto em questão, mediante a ação da classe operária organizada e do combate de seus batalhões estratégicos, do desenvolvimento da auto-organização e da tendência ao duplo poder, que exige uma direção consciente e planificada para sua resolução, um partido revolucionário. Os métodos da classe operária são a greve geral política, a constituição de organismos de poder operário e popular, a insurreição e a guerra civil.

No entanto, não existe um muro entre a revolta e a revolução, no sentido de que a revolta constitui uma etapa necessária separada da revolução. As revoltas podem ser ou meras revoltas, ficando em uma luta fundamentalmente de pressão extrema sobre o regime que entrega algo para não perder tudo e conseguir detê-las (ou aniquilá-las pela força); ou passar para um estado ofensivo, que de início a um processo revolucionário aberto que, como defendemos, não é o que ocorreu no Chile.

Mas entre essa interação de fatores objetivos e subjetivos estão os partidos, os programas, as lideranças, as direções. Sempre que as massas se dispõem a realizar ações históricas independentes, são freadas e desviadas pelas direções traidoras dos partidos reformistas e das burocracias, e pela ausência de uma direção revolucionária que possa levar o processo à revolução.

E agora? De que organização precisamos?

Uma das conclusões que alguns e algumas companheiras estão tirando depois da derrota da aprovação é que “é preciso se organizar”. De que organização precisamos? Com que programa? É suficiente voltar às ruas e gritar fora os partidos? Essas são algumas perguntas fundamentais que se abrem. Por sua vez, o atual cenário impõe novas disjuntivas. Como evitar que a exigência por um “novo processo constituinte” não seja instrumentalizada pelo governo para pressionar a direita em sua intenção de um novo acordo de unidade nacional? Como evitar, por sua vez, que a direita utilize as mobilizações das e dos secundaristas para fortalecer um discurso de ordem e segurança e uma escalada repressiva contra os setores combativos e a esquerda?

Para enfrentar esses desafios do presente necessitamos ter lições estratégicas claras para não cometer os mesmos erros, nem tirar conclusões que levem ao ceticismo, à resignação nem ao desespero por uma saída individual que não se conecte com a classe trabalhadora e os setores populares.

O percurso que fizemos desde a rebelião de outubro até o triunfo do rechaço mostra que existia um caminho alternativo diante do “Acordo pela Paz e pela Nova Constituição”, mas que a orientação que terminou se impondo e carimbou a rebelião foi a de buscar uma reforma progressista do regime herdado da ditadura, com a ilusão de acabar com sua herança econômica, política e social com uma nova Constituição escrita por uma Convenção Constitucional subordinada aos poderes estabelecidos. As organizações que se reivindicam de esquerda e os movimentos sociais se subordinaram a essa via de restauração da governabilidade, enquanto a orientação da revolta permanece sem programa nem estratégia definida que caracteriza os diversos grupos e coletivos da revolta, mostrou-se totalmente impotente para enfrentar essa operação e terminou fortalecendo o auto-isolamento dos setores combativos.

Como vimos, a possibilidade de um curso alternativo e de passar da revolta a um processo revolucionário aberto estava colocada pelo próprio desenvolvimento dos acontecimentos. Mas, para se impor, era necessário uma forte organização política, um partido revolucionário da classe trabalhadora que apostasse na auto-organização operária e popular, na greve geral, na derrubada de Piñera, na imposição de uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana para conquistar todas as demandas da rebelião, na perspectiva de um governo da classe trabalhadora e dos setores populares contra esse sistema capitalista que só nos oferece mais crise social, econômica, guerras, destruição do planeta e misérias.

Desde o Partido de Trabalhadores Revolucionários estamos comprometidos com esse caminho e conseguimos dar alguns exemplos pequenos, porém valiosos na cidade de Antofagasta, mas sem que pudesse ser uma alternativa de direção. É por isso que uma das lições que se impõe é que devemos fortalecer uma poderosa corrente de lutadoras e lutadores socialistas, da classe trabalhadora, da juventude e da intelectualidade, que em momentos decisivos possam oferecer essa alternativa frente as tentativas de derrotas e desvios.

O resultado do plebiscito abre um novo momento político, mas as contradições profundas da etapa que se abriu desde 2019 permanecem sem solução, porém cedo ou tarde a classe trabalhadora e os setores populares lutarão e exigirão o que tem sido promessas não cumpridas até agora. Para isso devemos nos preparar, preparar as condições para retomar a luta pelas demandas de outubro, por um programa para que a crise seja paga pelos grandes empresários e batalhar por um programa de independência de classe, revolucionário e socialista, para acabar com esse sistema de exploração e opressão.

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui