www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
Ideias de Esquerda
Marxismo, interseccionalidade e política de coalizão
Josefina L. Martínez
Madrid | @josefinamar14

Reflexões sobre marxismo e interseccionalidade, a propósito do livro de Ashley J. Bohrer. Como articular as lutas contra as opressões e a exploração?

Ver online

Em Marxism and Intersectionality [1], Ashley J. Bohrer procura colocar em diálogo as teorias da interseccionalidade e do marxismo. A tese da autora é que, nos debates entre ambas as tradições, geralmente se polemiza com “a pior versão” de cada uma delas em vez levar em conta suas elaborações mais ricas. Considera que é preciso diferenciar as múltiplas formas de interseccionalidade e diferentes correntes do marxismo, e que, na realidade, se pode encontrar uma afinidade entre o melhor de ambas as tradições, assim como entre o pior de ambas, expresso em suas caricaturas. Sustenta que, ao menos em suas melhores versões, essas teorias refletem sobre a relação não mecânica entre raça, gênero, classe e sexualidade, assim como a relação que se estabelece entre exploração e opressões. Ao mesmo tempo, sustenta que ambas estão orientadas para “práticas de ativismo, agitação e transformação”. Isso significa, para a autora, "que as questões de estratégia são sempre centrais”.

Em uma entrevista sobre a publicação de seu livro, Bohrer resume sua proposta:

Colocando isso nos termos mais claros que posso, diria que o livro apresenta um argumento muito simples: uma análise exaustiva do capitalismo requer ideias e ferramentas tanto da tradição marxista como da interseccional.

Nesse artigo revisamos as principais teses de Bohrer. O contraponto realizado pela autora entre ambas as teorias sistematiza muitos debates, resultando em uma interessante contribuição. São também acertadas várias definições, em especial, sobre as críticas errôneas que costumam ser feitas da interseccionalidade ao marxismo, visando uma versão economicista e mecanicista dele. Entretanto, não compartilhamos suas conclusões sobre a “complementaridade necessária” entre marxismo e interseccionalidade em vários aspectos centrais. Essa ideia, pelo menos da forma como está exposta no livro, tende a diluir importantes diferenças teóricas, políticas e, sobretudo, estratégicas entre ambas as tradições.

Em diversos artigos viemos abordando o debate sobre interseccionalidade e marxismo, sobre a relação entre capitalismo, patriarcado e racismo, assim como alguns debates recentes sobre esses temas no feminismo anticapitalista. A partir de nosso ponto de vista, trata-se de aprofundar os fundamentos teóricos para uma prática política revolucionária que se proponha a articular as lutas contra a exploração e todas as opressões em uma perspectiva emancipatória. Com esse objetivo, compartilhamos essa leitura crítica do livro de Bohrer.

História e debates entre marxismo e interseccionalidade.

Na primeira parte do livro, Bohrer revisa o que considera “uma história compartilhada” entre marxismo e interseccionalidade, ou seus antecedentes no século XIX e XX. Na segunda parte, sintetiza algumas das críticas que, desde o marxismo, se faz à tradição interseccional, assim como aquelas que se fazem dessa ao marxismo. Por fim, levanta o que considera que são caminhos para confluência, analisando temas como a relação entre opressão e exploração, a dialética e as contradições. Bohrer considera que é preciso “repensar o capitalismo” como um sistema que é “essencial, lógico e historicamente constituído tanto pela exploração como pela opressão”. Seu livro pretende mostrar que “a maioria dos teóricos reduzem o capitalismo à opressão ou à exploração”. Ao final, aborda o que considera a principal contribuição estratégica das teorias da interseccionalidade, o que define como uma “política de coalizão”. Voltaremos a essa questão mais adiante.

Como dissemos, no capítulo inicial, Bohrer desenvolve a tese de uma história compartilhada entre ambas as tradições. No século XIX, destaca como precursoras a professora Maria Stewart, Sojourner Truth ou Ida B. Wells-Barnet. Essas foram lutadoras afro-americanas que combinaram a luta abolicionista contra a escravidão com a luta pelos direitos das mulheres, em especial das mulheres trabalhadoras. Para o início do século XX, Bohrer tomou como referência as elaborações de algumas militantes negras do Partido Comunista dos Estados Unidos, assim como uma tradição mais ampla da esquerda do movimento negro a nível mundial. Menciona as experiências que foram feitas para organizar espaços de mulheres negras trabalhadoras, como a Harlem Women Day Workers League (trabalhadoras domésticas) ou a Harlem Tenants League (inquilinas contra despejos, greves de aluguel etc.). Destaca a figura de Louise Thompson, que em um texto de 1936 denunciou que o Bronx havia se transformado em um “mercado escravo” para as trabalhadoras domésticas negras. [2] Bohrer recupera também a figura de Claudia Jones, outra militante comunista que na década de 1930 introduz a ideia de “tripla opressão” e o conceito de “superexploração” das mulheres negras.

No entanto, cabe observar nesta seção uma importante limitação. Bohrer afirma que, segundo vários autores, a política dos PCs para as opressões nesses anos era “contraditória ou oscilante”, mas não se detém a analisar o tema. Não dá conta, portanto, do que significou o stalinismo como enorme bloqueio contrarrevolucionário para uma perspectiva que se propusesse acabar radicalmente com a exploração e todas as formas de opressão. Essa ausência na análise não é de nenhuma forma secundária, pois não permite compreender grande parte dos debates e também os “mal-entendidos” que se desenvolverão entre as perspectivas interseccionais e o marxismo nas décadas seguintes.

Dando continuidade ao percurso histórico, Bohrer recupera a figura de Francis Beal [3], membro da Third World Women’s Alliance que publicou o periódico Triple Jeopardy no final dos anos 60. Para Bohrer, essas elaborações poderiam ser consideradas antecedentes da interseccionalidade, mesmo que várias autoras tenham apontado que se tratou de um modelo “aditivo” (como soma de opressões). Bohrer também faz referência às teorias do “ponto de vista”, que se concentram na ideia de que os grupos oprimidos têm uma vantagem epistemológica privilegiada para compreender sua opressão. Explica que o risco desse tipo de posição é homogeneizar excessivamente o grupo oprimido, como se não houvesse importantes diferenças internas. Por fim, dedica uma seção às autoras que costumam ser consideradas como referências relacionadas à interseccionalidade, desde as posições do Combahee River Collective no final dos anos 70, até a obra de Angela Davis, Audre Lorde e Betita Martínez.

Depois dessa retomada, Bohrer se debruça nas elaborações das feministas negras estadunidenses que a partir da década de 80, teorizaram sobre a interseccionalidade utilizando esse conceito. Costumeiramente consideram Kimberlé Crenshaw, Patricia Hill Collins e outras fundadoras dessa corrente. Em sua maioria, são trabalhos que tiveram grande difusão na academia, em um período marcado pelo retrocesso da atividade e radicalidade dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, que tiveram peso nas décadas anteriores. Algo que, sem dúvida, também explica alguns limites dessas propostas.

Agora, Bohrer levanta várias perguntas centrais que surgem sobre a interseccionalidade: trata-se de uma ontologia ou de uma questão epistemológica? Uma forma de descrever a experiência de múltiplas opressões, um conceito ou uma teoria? É um campo de estudos ou uma metodologia para aplicar em diversas áreas? A única coisa clara, ao que parece, é que existem diferentes posturas em cada uma dessas questões. Bohrer sugere então que a interseccionalidade é um conjunto ou constelação de teorias, que põe em foco a relação entre diferentes opressões. Apesar de sua heterogeneidade, essas teorias poderiam ser agrupadas em uma tradição comum, porque respondem a um princípio geral: a ideia de equivalência entre opressões, de uma relação não hierárquica entre elas.

Concordamos que essa é uma questão central para definir os contornos das teorias interseccionais, por isso é fundamental aprofundar o tema. O que significa para a interseccionalidade a ideia de equivalência entre opressões? Qual é a diferença com a explicação marxista sobre a relação entre exploração e opressões? Que consequências políticas decorrem disso? Antes de abordar essas questões, vamos rever os seis postulados que para Bohrer definem as teorias da interseccionalidade.

I) A inseparabilidade das opressões. Desse ângulo, as teorias da interseccionalidade questionam as teorias de eixo único. Um exemplo são as críticas das feministas negras ao feminismo radical e, de forma mais geral, a todas as correntes feministas essencialistas que tendem ao “separatismo”. As teorias interseccionais sustentam que as opressões estão inter-relacionadas e mutuamente construídas. Esse é sem dúvida o ponto forte da interseccionalidade e o que faz com que essa perspectiva seja atrativa na atualidade para aqueles que não se sentem interpelados por correntes separatistas que estrategicamente dividem os oprimidos entre si. De fato, muitos ativistas dos movimentos sociais atuais se consideram “interseccionais” no sentido progressista de buscar a unidade nas lutas. Essa é uma sensibilidade muito presente em amplos setores de jovens que se consideram anticapitalistas, transfeministas ou antirracistas, independentemente de conhecerem ou não o conjunto das formulações teóricas que foram feitas a partir das teorias da interseccionalidade ou do marxismo.

II) A ideia de que não se pode fazer um ranking ou estabelecer uma hierarquia entre as opressões. A tradição interseccional rechaça situar algumas opressões como primárias, mais importantes que outras etc. Isso em dois sentidos: por um lado, a ideia de que nenhuma opressão é mais importante do que outras (ontologicamente, politicamente etc.); e por outro lado, o postulado de que nenhuma é causa unilateral das outras. Para Bohrer, isso significa que nenhum tipo de opressão pode se situar como prioritária, no sentido de que, ao resolvê-la, todas as outras serão resolvidas “automaticamente”.

Essa tese é levantada, sobretudo, como advertência para não subordinar a luta contra as opressões a outras motivações. Esses tipos de posições, que defendiam “postergar” as demandas do povo negro contra o racismo, ou das mulheres por seus direitos, em função de determinadas alianças políticas com forças burguesas, foram defendidas pelos Partidos Comunistas stalinistas desde os anos 30. Como o marxista CLR James denunciou, o Partido Comunista dos Estados Unidos se vinculou completamente à política imperialista e à máquina de guerra de Roosevelt para a Segunda Guerra Mundial, pondo de lado qualquer indício de luta de classes, de luta pelos direitos civis ou contra as opressões. Isso levou a um desencanto generalizado de muitos ativistas negros com o Partido Comunista. [4] Por sua vez, o stalinismo na URSS impôs uma reação em toda a linha contra grande parte dos direitos conquistados pelas mulheres nos anos revolucionários. Isso contrasta com as enormes conquistas que a Revolução significou para as mulheres. Desde a aprovação da igualdade jurídica perante a lei, o divórcio incondicional, o direito ao aborto livre e gratuito, a descriminalização da homossexualidade e da prostituição, a uma série de medidas para avançar na socialização do trabalho doméstico. Com esse objetivo se criou o Zhenotdel, uma comissão especial para o trabalho entre as mulheres operárias e camponesas. A partir daí, promoveu-se a criação de creches, refeitórios, lavanderias, berçários e escolas públicas para a alfabetização das mulheres. Delegadas foram eleitas em todo o território, para que as mulheres fossem protagonistas desses desafios na luta pelo socialismo. Em vez disso, a partir de 1936, com a aprovação da nova constituição soviética, o curso foi para o sentido contrário. Direitos como o aborto foram anulados e o Zhenotdel foi dissolvido, enquanto o Estado promovia uma ideologia voltada para posicionar as mulheres no espaço privado, como “guardiãs do lar” e da maternidade.

Da mesma forma, os partidos comunistas ocidentais no pós-guerra também defendiam a “suspensão” das lutas das mulheres e dos setores mais oprimidos da classe operária. O exemplo do Partido Comunista Italiano no pós-guerra (que chegou a ser o maior PC do ocidente) é paradigmático. Durante um período todo abandonou a luta pelo direito ao divórcio em função de conseguir uma aliança com a Democracia Cristã. Compreende-se, então, que parte dos movimentos sociais que emergiram nos anos 60 e 70 tiveram uma importante desconfiança do marxismo “oficial”, a partir dessa experiência com o stalinismo. Entretanto, como apontamos anteriormente, o livro de Bohrer não examina a trajetória do stalinismo, o que debilita a análise de conjunto.

Os outros postulados das teorias da interseccionalidade seriam:

III) A necessidade de pensar simultaneamente as diferentes opressões, em vez de fazê-lo separadamente. Isso está relacionado aos postulados anteriores e remarca a ideia de que não deve haver primazia de um sobre o outro.

IV) Para Bohrer, as teorias da interseccionalidade dão importância à questão da identidade e como os sujeitos, indivíduos ou grupos experimentam as opressões. Segundo a autora, isso não seria um fundamento para priorizar uma tendência à “separação, mas uma base para poder construir uma “coalizão”.

V) Considera que a interseccionalidade não é apenas uma teoria com peso em espaços acadêmicos, mas que se orienta para o ativismo.

VI) Por último, considera que a interseccionalidade é também uma ontologia de poder, que permite explicar como ele opera ao mesmo tempo que é uma crítica a ele.

Sobre as críticas cruzadas entre interseccionalidade e marxismo

Bohrer defende que, em sua maioria, as críticas do marxismo à interseccionalidade não visam o alvo, mas às “piores versões” dela. Nesse sentido, considera equivocadas as críticas da interseccionalidade como teorias individualistas e pós-modernas, reformistas/liberais, que não dão atenção às questões de classe e que não conseguem explicar as causas das opressões. Sobre a afinidade entre interseccionalidade e pós-modernismo [5], Bohrer contra-argumenta que nem todas as teorias interseccionais se limitam a experiências individuais e que algumas conceitualizam a um nível mais estrutural ou de grupo. Tampouco concorda que o foco seja apenas em questões de discurso ou linguagem, para as quais cita autoras interseccionais que explicitamente se distanciam do pós-estruturalismo. Entretanto, também reconhece que uma das autoras “fundadoras” da interseccionalidade, Kimberlé Crenshaw, argumentou que essa teoria estava vinculada à teoria pós-moderna. Em suma, infere-se que existem elaborações interseccionais mais próximas ao pós-estruturalismo, enquanto outras se distanciam explicitamente. Sobre o argumento de que se trataria de uma teoria multicultural ou reformista, Bohrer responde do mesmo modo: a existência de uma reapropriação desse tipo não invalida o corpo central da interseccionalidade, pois muitas autoras são críticas da multiculturalidade liberal.

Parece-nos mais relevante nos deter nas duas últimas críticas. A que aponta que as teorias da interseccionalidade diminuem a importância da questão de classe e a que sustenta que não conseguem explicar as causas subjacentes aos mecanismos de opressão e exploração. Neste artigo, desenvolvemos nossa visão no mesmo sentido. As teorias da interseccionalidade tendem a enfatizar a multiplicação dos eixos da opressão, mas ao mesmo tempo tendem a diluir a análise de classe, que consideram como uma “opressão a mais”, seja equiparando a classe com uma categoria estatística de baixa renda, ou reduzindo-a ao “classismo”, ou seja, a atitudes de discriminação política ou cultural por parte de grupos dominantes. Também argumentamos que apontar as diferenças entre exploração de classe e as opressões não implica hierarquizar as queixas, nem determinar qual é mais importante para a experiência subjetiva das pessoas. Pelo contrário, se trata de ter uma compreensão maior do modo como elas operam na sociedade capitalista.

Isso está relacionado com a questão da causalidade. Vários autores apontam que as teorias da interseccionalidade falham justamente aí, porque não podem dar uma explicação das causas das opressões, nem de sua articulação com a exploração. Analisam ou descrevem suas interações, mas tratando-as como algo “dado”. Assim o colocam, por exemplo, David McNally e Sue Ferguson, contrapondo a interseccionalidade ao enfoque da teoria da reprodução social:

Embora a teoria da interseccionalidade tenha levantado importantes questões e gerado importantes conhecimentos, tende a fracassar na hora explicar por que existem e se reproduzem essas múltiplas opressões no capitalismo tardio, e em explicar sua interação. Dado que seu enfoque é holístico e unitário, a teoria da reprodução social está, em nossa opinião, potencialmente mais bem equipada nessas áreas”. [6]

Diante dessas críticas, a resposta de Bohrer é pouco convincente. Sustenta, por um lado, que a maior parte dos objetos de estudo da interseccionalidade estão no século XX e XXI e por isso não se ocupam das origens históricas ou das causas das opressões. Argumenta também que, se as teorias interseccionais não dão uma explicação mais sistemática do funcionamento do capitalismo, é porque não é seu objetivo. Inclusive faz uma refutação absurda, dizendo que nada exige que a interseccionalidade explique como construir uma ponte, ou confirmar se César atravessou ou não o Rubicão, e que, da mesma forma, não se deve exigir nem do marxismo nem da interseccionalidade que expliquem “todo o universo e cada micro acontecimento em seu interior” [7]. O argumento não se sustenta. É claro que ninguém pretende que a interseccionalidade e o marxismo expliquem cada contingência da história, muito menos “todo o universo”. Mas, para uma teoria social que enfoca as múltiplas opressões, é fundamental explicar as causas profundas que levam a sua reprodução sustentada. Isso é algo elementar caso se trate de ir além de uma descrição dos fenômenos para tentar transformá-los desde a raiz.

Por exemplo, se considerarmos as relações patriarcais, elas surgiram há milhares de anos atrás, mas foram reconfiguradas pelo capitalismo da mesma forma que o racismo e a homofobia. O feminismo socialista leva em conta essas relações sistêmicas entre opressão e exploração, assim como a relação entre reprodução social e produção. No capitalismo, grande parte dos trabalhos de reprodução social (não todos) destinados a reproduzir diariamente ou geracionalmente a força de trabalho é realizado no lar. É um trabalho não remunerado e generalizado, realizado em sua maioria pelas mulheres, mas que não é reconhecido. A ideologia da domesticidade e do cuidado, assim como o conjunto das ideologias familiaristas velam o funcionamento dessas “oficinas ocultas” do capital, conforme definido por Nancy Fraser. Ao mesmo tempo, como várias feministas negras colocaram, essa ideologia da domesticidade nunca incluiu totalmente as trabalhadoras negras, que trabalharam fora de seus lares como escravas, servas ou trabalhadoras assalariadas, desde o começo do capitalismo. Ou seja, os mecanismos de opressão não são entidades a-históricas, mas adquiriram um conteúdo social específico no âmbito das relações sociais capitalistas.

Retomando os argumentos de Bohrer, em outro capítulo realiza a operação inversa e aborda as críticas mais frequentes da interseccionalidade ao marxismo. A ideia é que o marxismo seria um reducionismo economicista, que impõe uma primazia de classe sobre o resto das opressões - o que levaria a “postergar” suas demandas. O argumento, semelhante à crítica pós-colonial, é que o marxismo é eurocêntrico e dá muita prioridade à produção em detrimento da reprodução. Em outros artigos fizemos polêmica com esse tipo de posição. Não podemos retomá-la agora, ainda que seja importante apontar que a maior parte dessas críticas partem de um descomunal desconhecimento das elaborações do marxismo, ou, como indicamos, do amálgama direto entre stalinismo e marxismo. De sua parte, Bohrer sustenta que em muitos casos se trata de preconceitos que se apoiam na pior versão do marxismo. Por exemplo, perante aqueles que apresentam o marxismo como reducionismo economicista, Bohrer faz referência a alguns escritos de Engels em que ele polemiza com aqueles que reduziam as contradições sociais ao puro aspecto econômico.

Bohrer conclui que a maior parte das críticas cruzadas entre marxismo e a interseccionalidade se devem a uma “falha de comunicação”. Como exemplo de que seria possível uma aproximação maior, dedica outro capítulo ao que chama de um “marxismo queer, antirracista e antimperialista” [8].

Sobre a intersecção da exploração e das opressões: política de coalizão ou hegemonia?

Bohrer analisa diferentes aproximações na relação entre opressões e exploração. Das correntes mais economicistas, para as quais o único eixo é a noção de exploração, àquelas que, a partir da interseccionalidade, consideram a exploração como uma forma a mais de opressão. Diante dessas polarizações, e com o objetivo de conseguir um marxismo mais interseccional, ou uma interseccionalidade mais anticapitalista, Bohrer propõe a noção de “equiprimordialidade” [9]. Isso, afirma a autora, permitiria manter as diferenças explicativas entre exploração e opressões, mas postularia uma equivalência de prioridades no plano estratégico. Como essa ideia seria expressa? Mediante uma “política de coalizão” e de solidariedade entre os movimentos.

Voltemos ao debate sobre a relação entre opressão e exploração. No que implica reduzir uma à outra? Em primeiro lugar, digamos que as opressões atravessam a classe operária (que na atualidade está mais feminina e negra do que nunca), mas ao mesmo tempo constituem eixos ou polos de articulação próprios (movimento feminista, antirracista, LGBTQIA+ etc.), integrados por diferentes e contraditórios setores de classe. A ideia de que a exploração inclui todas as opressões, e que, portanto, as lutas que as tomam seriam secundárias, não permite dar uma resposta às enormes fragmentações da própria classe operária, com o objetivo de conseguir sua unidade. Porém, uma concepção economicista desse tipo tampouco permite a emergência da classe trabalhadora como classe hegemônica de uma aliança com o resto dos oprimidos. Algo que só pode realizar tomando como próprias as demandas de todos esses setores, contra o Estado e os capitalistas. Ou seja, se consegue superar o estágio das lutas econômicas, sindicais ou coorporativas para constituir-se como classe independente e hegemônica.

Agora, se abordamos essa questão a partir do ângulo oposto, para as teorias interseccionais a exploração tende a ser uma opressão a mais. No caso de Bohrer, ainda que mantenha uma diferença no plano teórico, tende a diminuí-la quando passa ao plano estratégico. É justamente nesse ponto que defendemos que se encontra a maior fragilidade das propostas interseccionais, mesmo em suas “melhores versões”. Porque essa “equiprimordialidade” ou equivalência como princípio geral na estratégia dilui o papel que a classe trabalhadora pode ter na articulação da aliança entre explorados e oprimidos. Estrategicamente, é isso que pode superar um sistema baseado na exploração de classe e nas múltiplas opressões. A ideia de uma “política de coalizão” parece implicar que essas alianças seriam aleatórias, sem que a classe trabalhadora tenha nelas um papel preponderante. Um papel que, para o marxismo revolucionário, não se baseia em nenhum essencialismo ou reducionismo de classe, mas no fato de que essa classe trabalhadora feminina e diversa ocupa posições estratégicas na produção e na reprodução. É, portanto, a única classe que pode deslocar o conjunto da produção capitalista, mas que também tem a potencialidade de reorganizar toda a produção e a reprodução sobre novas bases, para forjar uma sociedade de novo tipo.

A política de coalizão, conforme formulada no livro de Bohrer, tem vários problemas. Em primeiro lugar, não parece levar suficientemente em consideração a questão de que as opressões também atravessam a classe operária, como defendemos anteriormente. É paradoxal, pois, embora a interseccionalidade defenda isso em análise, parece que, ao passar ao plano político, retorna a uma espécie de estratégia “aditiva”.

Para colocar mais claramente: a classe operária precisa assumir a luta contra a opressão das mulheres, contra o racismo e a homofobia de acordo com o princípio de que “nada é livre se não somos todes livres”. Mas não se trata apenas de estabelecer uma “política de coalizão” com os movimentos, mas também do fato de que são demandas próprias de uma classe operária mais feminina e diversa. Ou seja, em grande parte dos casos, não se trata de demandas “externas” à classe operária. As mulheres trabalhadoras (em torno de 40% ou 50% da classe) precisam enfrentar o machismo, o assédio sexual, a violência de gênero, ou lutar pela socialização dos trabalhos domésticos. Vejamos o caso dos direitos reprodutivos. As organizações da classe operária como os sindicatos não defendem a luta ativa pelo direito ao aborto livre e gratuito apenas para “se aliar” ao movimento de mulheres (como se fosse uma total exterioridade). É também porque milhões de mulheres trabalhadoras enfrentam o dilema de ter que abortar em condições insalubres e clandestinas, enquanto as ricas podem fazê-lo em clínicas privadas. Ou seja, trata-se da classe trabalhadora assumir as demandas mais sentidas de seus setores mais oprimidos, como as mulheres, as pessoas racializadas, a juventude, etc. Claro que, junto às demandas que são mais específicas das mulheres trabalhadoras, como a luta pela igualdade salarial ou contra o assédio sexual dos chefes, existem outras que são reivindicações democráticas mais amplas, como os direitos reprodutivos ou a separação da igreja do Estado, que afetam também setores das classes médias. Por fim, existe outro plano em que a política hegemônica adquira mais a forma de uma política de “alianças”, como no caso da unidade entre a classe trabalhadora e os movimentos camponeses ou povos originários ou quando se levanta a unidade entre o movimento operário e o movimento estudantil ou ecológico etc.

Por sua vez, a ideia de uma política de coalizão não problematiza o fato de que no interior dos movimentos existem interesses diferentes e inclusive opostos. No movimento feminista ou no movimento LGBTQIA+, por exemplo, isso se vê claramente quando grandes empresas capitalistas, como o Banco Santander ou a Coca-Cola, implementam políticas de Pinkwashing ou de feminismo liberal, financiando iniciativas, conferências e ONGs de todo tipo para dar sua própria orientação ao movimento. Alguns anos atrás, durante a jornada do 8M, as trabalhadoras do Banco Santander fizeram um piquete para garantir a greve de mulheres, mas a direção do banco chamou a polícia. O movimento de mulheres também está atravessado por contradições de classe. Por outro lado, movimentos sociais muito massivos como o Black Lives Matter nos Estados Unidos ou o movimento de mulheres no Estado espanhol, foram em grande parte desativados por trás da ideia de apoiar eleitoralmente o “mal menor” contra a direita. A ação do Partido Democrata, assim como a coalizão “progressista” entre o Podemos e o PSOE no interior desses movimentos, mostra que não é suficiente defender uma política de coalizão sem defender uma estratégia de independência de classe e de auto-organização.

Por último, a política de coalizão, se é considerada apenas como somatória de movimentos, se torna insuficiente para derrotar o capitalismo. Como apontamos, esse tipo de coalizão pode levar adiante ações comuns de protesto e mobilizações, inclusive lutas radicais. Mas se os métodos de luta da classe trabalhadora, como a greve geral, não forem colocados em primeiro plano, se não forem construídos organismos de auto-organização, nem for defendido um programa de independência política, articulado em torno de uma estratégia socialista revolucionária, dificilmente podem ir além de lutas de pontuais. Se a tarefa que temos pela frente é derrotar o capitalismo e as forças repressivas do Estado burguês, será preciso ir além e articular uma força social que seja capaz de triunfar. A classe trabalhadora, feminina e diversa, se encontra em uma posição especial para encabeçar essa aliança de todas e todos os explorados e oprimidos porque, como disse Marx, não tem nada a perder a não ser suas amarras. Ao se libertar da exploração capitalista, pode abrir caminho para acabar com todas as opressões pela raiz. Não porque essas vão acabar "automaticamente", muito menos depois da tomada do poder [10]. Mas porque se destruiriam as bases materiais em que a sociedade capitalista impõe sua reprodução constante. Será então possível empreender de forma coletiva e auto-organizada a tarefa de erradicar todos os vestígios de opressão patriarcal, racial ou sexual: revolucionar a vida de forma radical.

O livro de Bohrer, como apontamos no início, tem o mérito de trazer para o debate a tradição da interseccionalidade com o marxismo, apontando vários pontos de convergências e divergências. Do nosso ponto de vista, o marxismo revolucionário conta com ferramentas teóricas e estratégicas muito superiores para compreender a dinâmica da totalidade capitalista e, sobretudo, para propor sua superação

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui