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V Congresso do MRT
A mudança no cenário estratégico do país e a nova situação nacional
MRT - Movimento Revolucionário de Trabalhadores

Apresentamos o primeiro documento do período de pré-congresso rumo ao V Congresso do MRT, que será realizado em 2023, convidando o conjunto da vanguarda e dos ativistas à discussão diante dos novos cenários estratégicos que se apresentam no país.

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O novo governo Lula-Alckmin marca uma mudança no cenário estratégico do país. Desde o golpe institucional até hoje, o país atravessou profundas transformações no regime político, um regime que passou por uma mutação desde o golpe institucional. Nem mesmo Lula assumiu, já há um sentimento forte na vanguarda e no progressismo, alimentado pela mídia, de "volta a normalidade". Alckmin dirigindo a transição, e sendo elogiado por diversos setores do progressismo, é uma expressão desta "nova normalidade", impondo a aceitação de setores neoliberais como parte fundamental desse processo. No mesmo sentido, o discurso de Lula na COP 27 foi saudado, por amplos setores, inclusive internacionais, como uma “redenção” do país, sob o lema "o Brasil está de volta".

Para a estabilização do regime, essa sensação de "volta à normalidade", é um componente importante para buscar angariar uma legitimidade maior das instituições do regime, após tantas medidas bonapartistas e ataques de grande magnitude. A contradição é que o país segue com uma forte polarização social, onde o polo bolsonarista vêm demonstrando um país onde uma concertação hegemônica é cada vez mais difícil.

Essa busca da “normalização”, de um ponto de vista marxista, significa tentar resolver a longa crise orgânica que se desenvolve no país. No entanto, para além de neutralizar a base mais radical da extrema-direita, o regime teria que encontrar um novo arranjo entre as frações, que por ora não parecem querer baixar a guarda, e mais ainda oferecer condições de melhora nas condições de vida de setores de massas. Essas disputas apoiam-se em frações de classe, com importantes setores do agronegócio (que possuem um peso cada vez maior na economia), além de outros setores patronais e militares, apoiando movimentos opositores a Lula. Por outro lado, as frações mais importantes do capital financeiro compõem o bloco que busca a normalização, e por isso podem oferecer maiores bases para o assentamento do futuro novo governo. Isso, no entanto, não é sem contrapartidas, e menos ainda um “cheque em branco” para Lula, como desenvolveremos a seguir.

A chamada “maré rosa” na América Latina, em certo sentido, se relaciona com o caso brasileiro. Ainda que a dinâmica política em cada país seja diferente, cada uma com suas especificidades, o marco em comum de polarizações políticas e sociais, ascensão de novos fenômenos de extrema-direita ou "anti-establishment", com governos chamados “progressistas” enfrentando desgastes e crises logo início de seu mandato [1] são dinâmicas importantes, e que questionam uma visão linear do desenvolvimento da situação política brasileira. Por isso, é importante sempre ver uma situação de polarização social e política que transcende os marcos nacionais, e que se insere em um mundo permeado por pontos de conflito e alta tensão.

Do ponto de vista econômico, o último boletim Focus, do dia sete de novembro, apontou uma previsão de alta de 0,7% para a economia no próximo ano, ante 0,64% no levantamento da semana anterior. Outros setores mais otimistas, vislumbram que o crescimento possa chegar a 2%, cenário ainda de difícil previsão. Assim, não se coloca, a princípio, um cenário de estagnação, tampouco se vislumbra uma perspectiva de crescimento mais considerável. A inflação, por ora, segue controlada, mas os preços seguem elevados, em especial nos alimentos. Do ponto de vista dos empregos, após uma relativa recuperação após a pandemia, os números seguem estáveis, ainda que em um cenário de redução da massa salarial e de alto grau de precarização.

O cenário internacional também pode provocar mudanças nesse quadro, como por exemplo a elevação das taxas de juros nos EUA, problemas de abastecimento energético em função da guerra na Ucrânia, ou alterações das perspectivas econômicas chinesa, o que inclui os impactos de políticas como o Covid Zero, que já está produzindo um importante processo na luta de classes no gigante proletariado chines. Ao mesmo tempo é importante notar, que no interior desse cenário de elevada tensão, o encontro entre Xi Jinping e Biden, precedido de várias reuniões preparatórias, é uma tentativa de buscar, como mínimo, evitar que a situação escalasse, após a crise com a Polônia que acusou a Rússia de ter atingido seu território. Ainda que importante, esse movimento não resolve, do ponto de vista estrutural os problemas que estão colocados, não apontando para uma situação internacional mais harmoniosa, ao contrário, disputas estratégicas entre diferentes imperialismos são a tônica da situação, em um cenário econômico de muitas incertezas, e agora, com o componente da luta de classes voltando a se expressar. Por último, mas não menos importante, o desempenho dos candidatos trumpistas muito abaixo do esperado, pode permitir ao governo Biden que busque um controle maior da economia, em especial da inflação, para viabilizar um candidato Democrata em 2024.

Considerando a correlação de forças, não é possível definir a atual situação, como aquela reacionária que perpassou todos os anos de governo Bolsonaro. Os setores em torno de Lula-Alckmin buscam estabilizar seu próprio governo, e assim dar novas formas que apontam para uma transição para uma situação não revolucionária, no interior de um regime social permeado de ataques e precarização das condições de vida, - ou seja, são muitas as diferenças dos anos de lulismo. Ainda que não seja possível considerar assentada essa nova situação, e por isso queremos enfatizar os elementos transitórios, é importante notar as perspectivas nas quais atuam o novo bloco governante do país. Ou seja, caso se consolide uma situação não revolucionária, não significa que estaremos diante de um regime estável e sem crises. Inclusive não queremos antecipar as características específicas que essa situação pode desenvolver, porque ainda há muitas variáveis em aberto.

Essa busca se dá no interior de um equilíbrio de forças precário, mas que o retorno de Lula altera do ponto de vista da percepção de setores de massas, que alimentam expectativas de melhora da situação de vida. A própria frustração dessas expectativas também pode ser um deflagrador de novas crises e instabilidades, ou ainda, o despontar de setores que se encorajem a lutar após muitos anos de situação reacionária. Ainda que nos preparemos para giros bruscos na situação, consideramos que esse novo momento da experiência de massas com Lula e o PT pode se dar por um processo mais longo e tortuoso, justamente pelo momento anterior ao qual o país passou. Tampouco se pode descartar movimentos disruptivos, como ocorreu em diversos países do mundo nos últimos anos.

Nesse contexto, já está aberto um debate entre setores da esquerda, sobre a caracterização do novo governo. Nós vemos como um governo apoiado no carisma popular de Lula, e em um partido operário-burguês [2] como o PT, mas composto e apoiado por grandes setores patronais e burgueses, incluindo setores do capital financeiro internacional. A atual configuração é diferente do primeiro governo Lula, momento que caracterizamos como uma Frente Popular preventiva. O caráter frente populista, quando o PT havia chegado pela primeira vez ao governo federal, tinha a marca da chegada de um “operário” à presidência, que ainda que em aliança com partidos burgueses, não eram os setores majoritários da burguesia. Naquele momento as eleições foram precedidas de muitas ameaças e chantagens patronais, frente a uma “incerteza” do que seria o futuro governo. O caráter preventivo, provinha do fato de que, ainda que nacionalmente não tivesse ocorrido processos de luta de classes em grande escala, o contexto latino americano era permeado por muitos deles, com grandes crises, inclusive com processos mais agudos, como foi o caso da Bolívia e Argentina. Para evitar que esse cenário tivesse capítulos nacionais, setores da burguesia nacional aceitaram Lula, desde que ele governasse de acordo com os seus desejos, o que Lula respondeu sem frustrar essas expectativas, começando com a Carta ao povo brasiliero (que na realidade era uma carta de compromisso com o capital financeiro), e chegando até a aprovação da reforma da previdência. Portanto, querer atribuir algum conteúdo de governo de tipo “Frente Popular”, tem objetivos políticos, que pretende aumentar os elementos “populares” do governo, e diminuir aqueles ligados diretamente a grande burguesia, para assim, extrair a conclusão que é necessário esperar passivamente uma longa experiência das massas com o governo, sem buscar, imediatamente, construir uma oposição pela esquerda. As consequências políticas dessa caracterização é a defesa de uma política de “exigências” à frente ampla - que em alguns casos vai servir para encobrir uma política de tipo “conselheira” ao governo, o que é diferente de ter exigência para as organizações de classe, como os sindicatos e centrais, como sempre fizemos -, sem o mínimo de denúncia do caráter patronal e burguês do futuro governo, que se apoia na estrutura de uma partido operário-burguês como o PT para governar o país.

Crise orgânica e polarização

Com mais força após 2013, o Brasil foi atravessado por uma importante crise orgânica ou crise de hegemonia, retomando os conceitos de Antonio Gramsci. Para sua resolução, seria necessário níveis de recomposição econômica que não estão colocados, nem internamente, nem no cenário internacional. Para efeito comparativo, os dois “grandes momentos” do regime de 88, onde se expressou uma hegemonia de maior fôlego, com estabilidade social, foram no Plano Real, nos seus primeiros anos, e depois no próprio lulismo. A força desses dois momentos permitiram FHC se reeleger para o segundo mandato, ainda no primeiro turno, e Lula não só sair com os melhores índices de aprovação da história, como depois fazer Dilma como sua sucessora. Em relação à FHC, foi decisivo grandes investimentos de recursos do imperialismo dos EUA, que buscou em contrapartida a aplicação de um programa neoliberal. Ainda que FHC não alcançou todos os desejos do Consenso de Washington - pelos limites da correlação de forças que ainda ecoava das fortes lutas operárias que colocaram em cheque a ditadura militar - ele conseguiu impor ataques de grande magnitude e, principalmente, assentou as bases da política macroeconômica neoliberal, mantida e preservada pelos mandatos do PT.

Já no lulismo, o superciclo das commodities foi fundamental para que se conseguisse passivizar o movimento de massas, ao mesmo tempo que aumentaram exponencialmente os lucros de grandes setores burgueses. Portanto, do ponto de vista material, isto é econômico, hoje é muito difícil, encontrar quais serão os pilares para solidificar uma nova forma de estabilização que possa inaugurar um novo momento no regime político, sempre permeado de muitas crises e disputas.

Um obstáculo para constituir novas formas de consensos de massas é a enorme polarização social. Ela tem suas expressões no regime político, que é atravessado por dois bonapartismos - judiciário e militar-, que ora buscam pactuação para evitar desestabilizações maiores, ora entram em maior rota de colisão em busca de seus interesses próprios. Disputam a localização de "poder moderador", após uma crise de legitimidade que atingiu grande partes dos partidos e instituições do regime. O golpe institucional de 2016 foi a "travessia do Rubicão" para a emergência dessas forças bonapartistas, atingindo um grau de ativismo político que não é possível retornar às condições anteriores. A "nova normalidade lulista", ocorre nesse contexto, apoiando-se ainda sobre um desses bonapartismos (e buscando construir um novo pacto com o bonapartismo militar, como se expressa na escolha de um Ministro da Defesa que vem do Arena, partido da ditadura, José Múcio), o judiciário, que cedo ou tarde irá se voltar contra as massas populares e trabalhadoras, como fez durante toda a sua história, inclusive em momentos recentes.

Durante as eleições, o próprio TSE buscou normatizar o papel político dos militares, transformando-os em instituição fiscalizadora. Ao mesmo tempo, querem limitar o raio de alcance das forças armadas, em função da manutenção de seus próprios poderes. Depois dos resultados eleitorais incrementaram uma ofensiva contra o bolsonarismo mais radicalizado, com o banimento de perfis em redes sociais (inclusive de parlamentares eleitos), além de medidas contra as manifestações que exigem intervenção militar, inclusive atingindo setores patronais que estão por trás delas. Como disse o colunista do imperialista New York Times, Alexandre de Moraes é tido como o maior "árbitro" entre as democracias ocidentais, uma das expressões mais profundas da degradação do regime político brasileiro.

Por outro lado, as Forças Armadas estão demonstrando que não pretendem um "retorno à caserna", aos moldes do regime de 88, quando sua atuação política era através dos bastidores e com mediações na arena pública. O golpe institucional significou uma escalada militar em posições no Estado, em seu sentido integral, que se apoiam em diversos setores da sociedade civil, e não apenas na sociedade política. Sua base social está na porta dos quartéis, e antes nas rodovias, clamando pelo retorno à 1964. É uma vanguarda de extrema-direita, com contornos proto-fascistas, que serão um grande obstáculo para a conformação de formas hegemônicas mais amplas.

A recente carta assinada pelos comandantes das três forças, por fora do Ministro da Defesa é um preparativo, e um sinal, de como podem atuar durante o governo Lula, ou seja, já acenando que podem atuar de maneira independente do ministro. Lula pretende responder a isso, colocando um nome que agrade a caserna, como parece se desenhar com a indicação de um nome proveniente da Arena, José Múcio. Além disso, os militares se apoiam e reivindicam as manifestações da extrema-direita, tanto para não romper com sua base, como para poder se apoiar nela para as disputas no interior do regime. A nota oficial das forças armadas, em defesa dos generais que foram chamados de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro) por mensagens em grupos de bolsonaristas, pois estariam negociando com a transição, é uma expressão disso. Ainda do ponto de vista militar, outros temas, considerados “sensíveis”, como uma volta ou reedição da Comissão Nacional da Verdade, já estão descartados pelo governo, considerado por muitos setores do PT como um erro do governo Dilma. E já surgiram exigências de manutenção dos privilégios dos militares, o que será um ponto chave na negociação. Do mesmo modo, as chamadas “missões de paz” da ONU, nas quais o Brasil se apoiou para fazer política internacional, agora são um terreno de maiores contradições, tanto pelo papel atual das forças armadas, como pela experiência em operações como a do Haiti que até hoje geram questionamentos na base do próprio PT [3].

Por ora setores militares atuam de forma mais aguerrida na oposição ao futuro novo governo, e ao que parece, com aliados que se mantém no interior do Centrão, em especial o PL, que questionou o processo eleitoral, para assim manter a política de semear desconfiança na urnas, e buscar angariar força para sua posição política. Alexandre de Moraes respondeu energicamente, impondo uma multa bilionária ao partido, o que está gerando crises entre seus membros que dependem dos recursos partidários.

Considerando o bolsonarismo, é importante observar que ele está passando por novas morfologias, inclusive combinando características diferentes. Ao passo que a extrema-direita se institucionalizou, ela também vêm demonstrando que não deixará de atuar com métodos extra-parlamentares. Ao mesmo tempo, seu método e conteúdo radicalizados, compõe um quadro de polarização assimétrica, onde o polo de extrema-direita atua ativamente, e os polos que poderiam influenciar a correlação de forças pela esquerda, são contidos e domesticados pelo PT, as burocracias sindicais, estudantis e dos movimentos, até chegar ao próprio PSOL. Ao mesmo tempo, se expressou dificuldade de ganhar apoio para as ações mais radicalizadas golpistas em dois setores de massas que votaram em Bolsonaro: a) bases evangélicas que tendem ao pacifismo; b) classe média tucana anti-petista orfã de referência que votou em Bolsonaro como “mal-menor” mas não chega a querer um golpe.

Em relação ao legislativo, e ao Centrão em especial, ele já vem passando por reformulações, e vários de seus setores ainda estão em um posição de espera para definir sobre qual variante política se localizará. Ainda que a maior parte dele tenha apoiado Bolsonaro, hoje é preciso ver que a saída da extrema-direita do governo federal abrirá disputas entre esses setores, para ser a cabeça da oposição, tendo em vista as eleições de 2026. Tarcísio, Zema, além do próprio Ratinho Jr., podem estar se preparando nesse sentido, e já há ruídos no interior do antigo bloco bolsonarista sobre a composição dos governos estaduais. Poderemos ver disputas maiores, e por isso é fundamental seguir de perto a política nos estados, para combater todas as variantes da extrema-direita, que agora podem querer se apresentar sob um rótulo de "centro-direita", para tentar se fusionar com uma base da direita mais tradicional, levando sempre em conta a preocupação de não terminar embelezando a própria “centro-direita” e polemizando sempre que a esquerda reformista ir por esse caminho.

Ainda sobre o Centrão, por mais que existam diferenças, o controle do orçamento é um elemento que unifica vários deles, podendo inclusive se instituir novas crises com o judiciário, que irá pautar a permanência do “orçamento secreto”. PT, PSB e PCdoB já selaram acordo para a reeleição de Lira, buscando negociar a PEC da transição. Na campanha, Lula criticou o orçamento secreto, e prometia um nível de controle maior do orçamento, mas as negociações em torno da chamada “governabilidade” já começam a constituir novos arranjos. De todo modo, a Câmara avançou para ter um maior controle orçamentário, o que também reduz as margens de destinação no orçamento da presidência, caso ele seja mantido.

Lua de mel, base governista e disputas na oposição de direita

Mesmo um cenário econômico e político internacional com muita instabilidade, é importante não ter uma transposição mecânica para o cenário brasileiro, em especial nesse momento de “lua de mel”. Não é possível prever sua duração, e tão pouco essa previsão seria possível. O mais importante é ver o seu conteúdo, em especial a unificação de setores burgueses, para permitir um maior assentamento do novo governo, e a amortização das alas mais disruptivas no interior da extrema-direita. Não significa que será um momento sem contradições ou disputas no interior desse bloco, como ocorre em torno da definição do orçamento e da âncora fiscal.

A dialética colocada é que quanto mais o bolsonarismo mais extremado for contido, ou seja, mais estabilidade for conquistada, mais podem se abrir novas crises políticas, agora no interior do bloco que apoiou a chapa Lula-Alckmin. Isso porque a chamada “centro-direita” não abandonará seu projeto próprio, e pode inclusive tentar se apresentar a partir de fusões com antigos bolsonaristas, como é o caso de Tarcísio, que ainda é militar e pode unificar esses polos por ora mais separados. São prognósticos e hipóteses de médio e longo prazo, mas que devem ser levados em consideração para não haver uma visão harmoniosa, mesmo dentro do setor que pode apoiar o começo do governo Lula.

Alguns sinais mostram que há divisões dentro do campo da “centro-direita”, em como se relacionar com o futuro governo. Tasso Jereissati (PSDB), por exemplo, defende que seu partido se mantenha independente do governo, sem assumir cargos, ao mesmo tempo que não defende que seja uma "oposição sistemática”, afirmando que é possível aprovar pautas em comum. Por outro lado, Aloysio Nunes, figura histórica do tucanato, está na equipe de transição, e é cotado para estar no governo. O PSD por ora está cumprindo um papel duplo, assume poder estar no governo, mas desde que possa se “sentir governando”, nas palavras do Kassab, ao passo que apoia e irá governar junto com o Tarcísio, já prometendo tentar fazer dele o candidato de 2026. O PMDB apesar de suas divisões internas, tem se mostrado a colaborar mais para o governo, com figuras de peso como Simone Tebet tendo papel de destaque na transição, além de declarações de importantes caciques, como Baleia Rossi. Do mesmo modo, o União Brasil, também deu declarações amistosas através de Luciano Bivar.

Do ponto de vista do impacto de massas, no âmbito econômico, um auxílio permanente de 600 reais, que ao que parece irá se efetivar, tende a conter, pelo menos inicialmente, movimentos mais disruptivos dos setores mais precários. Vale destacar, que internacionalmente há maior aceitação de programas de auxílio, para conter o aumento exponencial da miséria, potencializado pela pandemia. Enquanto nos anos imediatamente posteriores ao estalar da crise de 2008, havia uma linha de “austeridade total” por parte de diversos imperialismo, as preocupações com revoltas sociais entrou no radar do capital financeiro, expressos com alguma sistematicidade em seus órgãos de imprensa internacionais.

Nesse contexto, o governo de transição também busca a retomada com mais fôlego de programas como o Minha Casa, Minha Vida, Farmácia Popular, além do aumento do salário mínimo acima da inflação [4]. Ainda que não sejam grandes concessões, também podem impactar, tendo em conta o efeito comparativo com o governo anterior. A inflação, que por ora segue com mais controle, veio de uma escalada alta, e que portanto, ainda que não siga em crescimento, já levou a um encarecimento de diversos produtos, em especial do setor da alimentação. No entanto, não está descartado novas altas, o que pode ser um fator que gere problemas para o novo governo, uma vez que depende de fatores, inclusive internacionais, como o preço do combustível.

É possível que existam outras pequenas concessões que sejam vistas como conquistas, como a inclusão de alguns direitos para entregadores, como Lula veio prometendo. Ainda que não altere o marco geral da reforma trabalhista, e menos ainda seja um entrave para esse tipo de trabalho, pode impactar em um setor mais jovem da classe trabalhadora, que se mostrou explosivo, como no Breque dos Apps. Da mesma forma que a terceirização do trabalho, e a criação de empregos do tipo “working poor” foram um pilar do crescimento de empregos do lulismo, agora a uberização regulamentada pode ser o carro chefe do petismo para setores mais precários da classe trabalhadora, inclusive bruscamente aproximar esse estratos da sua política já que não são pertencentes a setores tradicionais que o PT possui relações históricas.

Do ponto de vista do apoio de classe, o PT busca manter o setor mais precário, que foi um forte ativo, para não dizer decisivo, nas eleições. No entanto, encontra maiores resistência em setores com renda um pouco maior (de 2 a 5 salários mínimos), que votaram em sua maioria em Bolsonaro. As promessas de reajuste no imposto de renda, com desoneração dos setores que ganham até cinco salário mínimos, visa atingir e conquistar maior simpatia entre esses setores, ainda que não esteja claro se essa medida será efetivamente implementada, e menos ainda se será suficiente para que Lula ganhe maior penetração nesse setor. Diversos analistas e intelectuais do próprio PT, como Altman e Singer, dão extrema importância para esse setor, atribuindo a ele uma base social que foi utilizada como base para a direita levar a frente seus projetos. Singer por exemplo, chega a caracterizar como um fenômeno que nomeia como “conservadorismo popular”, composto por setores que tem medo de perder o pouco que tem, e que por isso é hostil a todas as medidas que favoreçam os setores mais empobrecidos, e por isso, é mais suscetível as ideologias neoliberais e de direita.

Do ponto de vista das questões políticas, Lula promete uma série de medidas, que vão contribuir para o sentido de “retorno à normalidade". Revogação de dispositivo infralegais contra o desmatamento, criação do Ministério Indígena, suspensão de decretos de sigilo e campanha de vacinação. São medidas executivas e que não dependem de aprovação do Congresso, com nenhuma delas significando qualquer mudança estrutural, mas que tem um impacto de massas, em especial no progressismo, se efetivadas. As negociações em torno da “governabilidade” podem impor escolhas, e ritmos diferentes, em torno de alguns desses temas.

Blindagem do novo governo, o papel da burocracia e os 10 anos das Jornadas de Junho

Sobre hipóteses e dinâmicas de processos de mobilização, em especial em categorias de trabalhadores e também nas universidades, o debate sobre preservar ou lutar de forma independente do governo vai estar colocado com centralidade. Como um "incremento" a esse debate, o novo governo Lula irá começar nos 10 anos das Jornadas de Junho. Em especial neste mês, pela particularidade da data, esse debate vai estar instalado não só na vanguarda, mas também em setores mais amplos, podendo ser “recordado” pela própria grande imprensa, para garantir que sua “versão” de Junho seja a hegemônica. Por outro lado, o petismo vai fazer uma campanha forte contra Junho, uma vez que agora não se trata apenas de “data histórica”, mas também de uma disputa pelo presente. Atacar Junho e atribuir a ele o início da ascensão de Bolsonaro será fundamental para atacar ideologicamente e politicamente qualquer perspectiva de atuação independente do novo governo. O choque entre setores que buscam aferir estabilidade capitalista após desestabilizações e movimentos de massas já se produziu inúmeras vezes na história [5].

Por isso, é fundamental disputar o que foi esse processo, não só como um balanço do passado, mas principalmente buscar encontrar os fios de continuidade de Junho no presente. Os fortes fenômenos de massas na identidade negra, a pauta feminista, indígenas, LGBTQIA+ são parte desse processo. Do mesmo modo, as greves e mobilizações que ocorreram durante o governo Bolsonaro, do Tsunami da educação até o acampamento indígena, passando pela mobilização de entregadores e diversas greves menores, que ainda que não tiveram força para alterar a correlação de forças, também em função do papel cumprido pelas burocracias e pelo PT são expressão disso. Mais ainda, os fenômenos ideológicos de interesse pelo marxismo e teorias críticas, em especial na juventude, também são expressão disso.

Sobre as perspectivas para o movimento operário, ainda no primeiro mandato de Lula, havia uma perspectiva de fazer greves e lutar para disputar “nosso governo”. Essa posição era vista na base das categorias mais tradicionais, e ocorreram importantes greves em bases petistas, como bancários, professores e petroleiros. Durante os mandatos do PT houve um ciclo ascendente de greves, motivado não só por esse sentido de “disputa”, mas também alimentadas pelo relativo dinamismo econômico que fortaleceu objetivamente a classe trabalhadora, ainda que em grande parte em postos precários, e animou importantes setores a lutarem por direitos e condições. Hoje, o quadro não é mais o mesmo, e essa subjetividade também é permeada por um receio de que mobilizações podem desestabilizar o governo e o país, concepção amplamente difundida pelo petismo para imobilizar qualquer possibilidade de luta.

Importante destacar que essa subjetividade não é absoluta, e poderá se impactar com medidas mais à direita do novo governo. Em especial, o setor que mais expressou crise desse, foi a educação, devido a forte composição de empresários da educação na equipe de transição. O PT tem laços orgânicos com o setor burguês educacional, e foi durante seus governos em que esse setor experimentou um boom em seus negócios. Importantes figuras do próprio partido, como Haddad, têm relações históricas com esse setor empresarial, sendo um dos fundadores do Todos pela Educação que foi parte central da articulação e proposição das reformas educacionais e do avanço do setor privado. Portanto é um calcanhar de aquiles do PT, que precisa se apoiar nesse grande empresariado, ao mesmo tempo que suas bases e intelectuais da educação, tem críticas históricas ao avanço da educação privada no país. Nas universidades esse debate também tende a se aprofundar. Durante a campanha, na ida de Lula à diversas universidades, ficou marcada a busca por ter o apoio da “universidade” para governar.

Considerando a economia, como já mencionado, as perspectivas não são de um ciclo sustentado de crescimento econômico. Por outro lado, a política de preservação do regime, e em especial do governo, deixando para as "instituições" resolverem as crises política e sociais, é uma subjetividade que já se expressa nesse momento, e tende a se aprofundar. Mesmo em categorias com governos estaduais de extrema-direita, como Tarcísio em São Paulo ou Zema em Minas, incluindo variantes de "centro-direita" como Leite no RS, não é automático que a burocracia da CUT queira promover alguma ação. Isso envolve acordos nacionais que buscam a “estabilização” e esse será o fator preponderante nos cálculos da própria burocracia sindical. A burocracia sindical, desde o governo Temer, teve seu papel no regime “rebaixado”, com ataques à estrutura sindical de monta, em especial do imposto sindical que diminuiu enormemente os recursos econômicos dessas burocracias. Foi parte do projeto do golpe institucional reduzir o papel político das burocracias e sua influência no governo, por que ainda que sempre cumpriu um papel em última instância subserviente ao capital financeiro, os "inconvenientes" que geravam para que os ataques fossem negociados, atrapalhava o plano de impor ataques concentrados e em prazo de tempo curto. Toda trégua que as centrais promoveram durante o governo Bolsonaro, e as traições às greves gerais ainda no governo Temer, tinham esse componente de fundo, e a perspectiva é de um “retorno” à uma melhor localização no regime, só que ainda mais subordinado e precário do que antes.

Portanto, agora, após a aprovação desses ataques, é funcional que as burocracias voltem a ter algum papel de mediação dos conflitos sociais. A burguesia não pode prescindir de sua “polícia no movimento operário”, ainda que busque diminuir seu peso relativo. A mobilização dos entregadores, que foi gestada por fora das grandes burocracias, ainda que depois conseguisse ser contida por elas, foi um tiro de advertência sobre a importância desse papel de contenção, em especial pela situação econômica e social do país. Não é uma casualidade, que é justamente nessa categoria que Lula irá propor alterações na reforma trabalhista, compondo uma mesa de negociação entre empresários, governos e sindicatos. Uma tentativa de reedição das Câmaras Setoriais, que cumpriram um papel chave para conter o movimento operário, em particular metalúrgico. Já na equipe de transição esse papel se mostra com Miguel Torres (Força Sindical), Ricardo Patah (UGT) e Sérgio Nobre (CUT), sendo nomes das principais burocracias do país, compondo a transição.

De outro ponto de vista, a criação de um Ministério Indígena, além de responder a anseios sociais, também busca conter um movimento social que lutou com força contra o bolsonarismo. Através da ligação com o Estado, Lula busca transmitir que as relações entre o agronegócio e os indígenas podem ser mais harmoniosas.

No entanto, em uma economia semi-colonial e com fortes traços agrários como a brasileira, com uma burguesia encurralada entre a pressão das classes subalternas nacionais e a concorrência e pressão imperialista, tem como um produto sistêmico, que perdura há séculos, o avanço do latifúndio contra territórios indígenas e reservas ambientais. A invasão de territórios de outros povos e a transformação da terra em propriedade privada é uma necessidade do capitalismo agrário, tão determinante para a geração de mais-valia relativa como são os agrotóxicos, as grandes máquinas e a agronomia. Durante os governos do PT, os indígenas foram o setor que se enfrentou com o governo em diversos momentos, como em Belo Monte, que atacava territórios e povos indígenas. Temas chave serão pautados no próximo período, e podem ser fontes de crises maiores, como o “marco temporal”, que está parado no STF e interessa muito o agronegócio para expandir a fronteira agrícola, e é um ataque histórico às reservas indígenas que não irá passar sem uma grande resistência. Por mais que Lula prometa medidas para agradar o agronegócio, esses temas irão se colocar, o que pode seguir sendo um motor para que a maior parte do agronegócio permaneça em uma localização opositora de direita ao governo.

Sobre a questão negra, é importante notar que frente à ameaças de enormes retrocessos para os negros durante o governo Bolsonaro, como a revogação da lei de cotas, o “excludente de ilícitude” e a redução da maioridade penal, o efeito comparativo entre os governos trás novas expectativas em amplas camadas do movimento negro, e o PT se aproveita para não só se apoiar, como também aumentar ainda mais sua infuência e controle sobre ele. Aqui também é possível ver uma tentativa de maior incorporação de setores do movimento negro ao próprio Estado, mais que não estará isento de contradições. Pelas características racistas do capitalismo brasileiro, não se pode descartar um choque maior com essas demandas. O aumento exponencial do encarceramento durante os governos do PT, ainda hoje é alvo de críticas, além de outros temas sensíveis como violência policial e precarização do trabalho, vão ser contradições latentes em um governo recheado de neoliberais

Os temas de gênero e LGBTQIA+, são pontos críticos, que foi um dos principais destaques reacionários da campanha eleitoral, com toda a campanha contra ao direito ao aborto, que fez com que figuras renomadas na defesa dessa bandeira defendessem que não era o momento de levantar essa pauta e também na discussão sobre banheiros “unissex”. Novamente o debate sobre o “recuo tático” [6] estará colocado, o que abre um flanco para nossa luta política e estratégica que já começamos a elaborar e que temos que seguir atuando. A questão de gênero/LGBTé componente de um fenômeno internacional, e não será simples conter essas demandas. Como viemos desenvolvendo uma das raízes que deu uma estatura robusta ao ódio contra as mulheres, negros, indígenas e LGBTQIAP+ que se apoiou o bolsonarismo foi o forte movimento, especialmente de mulheres, que irrompeu em nível internacional na última década. As demandas por igualdade, ainda que como parte de um movimento policlassista, tomaram as ruas e, inclusive, impuseram pautas e, de alguma forma, obrigaram empresas a adequarem seu discurso ao “politicamente correto”, o que apareceu como uma enorme ameaça justamente a todos esses valores da família tradicional brasileira. O peso que foi ganhando a questão negra e a questão de gênero/LGBT nos últimos anos se entrecruzando com grandes questões da política nacional é expressão dos fios de continuidade de junho, onde se abriu espaço para um maior questionamento em particular no campo dos valores e dos costumes quanto a esses temas, sendo um ponto importante o combate ao projeto da “cura gay” de Marcos Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos de então por um acordo de cargos com o PT. Essas questões são particularmente fortes e sensíveis para as novas gerações, mesmo as que sequer se lembram de junho de 2013. O bolsonarismo também foi uma reação a esse processo e à institucionalização das legítimas demandas democráticas, promovida por variantes sociais liberais, que se utilizam dessas pautas para aprovar mudanças parciais, e encobrir suas políticas econômicas neoliberais. No caso da brasileira, essa forma de cooptação é ainda mais limitada, frente ao peso evangélico no país.

Um fator sobre esse conteúdo é a localização política das igrejas, em especial a neopentecostais, é muito importante que esses setores já começaram a se relocalizar, a mais sintomática dela foram as declarações de Edir Macedo. Isso ocorre em função dos fortes vínculos, e dependência econômica dessas igrejas com o Estado, que é uma fonte de recursos muito importantes. Através de ongs e “projetos sociais”, essas igrejas abocanham recursos públicos, e por isso não é interessante uma posição de oposição frontal a elas. É justamente esse vínculo que o PT não pretende mudar, inclusive buscando se relacionar com igrejas menores para, de alguma forma, diminuir a força das grandes igrejas, e que por isso, não irá se indispor com o setor evangélico e com suas pautas de “costumes”. Por outro lado, outros setores, como Silas Malafaia, podem se manter em uma localização opositora, buscando preparar terreno para as próximas eleições.

Debates sobre um “novo” projeto de país

É muito importante vermos que está colocado um debate sobre um “novo” projeto de país diante do governo Lula-Alckmin. Lula já declarou em mais de uma ocasião que pretende fazer uma política econômica “desenvolvimentista”, e que o Estado deve ser indutor da economia, prometendo também reindustrializar o país. Ainda que não existam condições econômicas para um projeto propriamente desenvolvimentista, e menos ainda condições geopolíticas para uma política econômica desse tipo em uma semi-colônia como o Brasil, ao que tudo indica o novo governo terá uma política de investimento público diferente do que foi a de Guedes e Bolsonaro. Talvez estaremos diante de uma política econômica com traços de neodesenvolvimentismo, com ações voltadas a promover obras de infra-estrutura em gargalos econômicos que trouxeram problemas para setores burgueses importantes, como a produção de fertilizantes (o que agradaria o agronegócio), o refino do petróleo (que permitiria uma maior estabilidade dos combustíveis), transportes por trem (para escoar e baratear a produção, em especial do centro oeste), e energética (principalmente aquelas consideradas energias “limpas” e que poderiam contar com o apoio de setores do imperialismo, em função da força da pauta ambiental).

Ainda na transição, disputas de qual será essa política econômica começaram a se expressar, inclusive entre economistas que foram apoiadores da chapa Lula-Alckmin. Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, Edmar Bacha, ex-presidente do BNDES, e Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de FHC escreveram uma carta pública a Lula, defendendo o teto de gastos e a "responsabilidade fiscal”. Foi uma reação às declarações que ele fez, afirmando que o atual modelo econômico "tenta desmontar tudo o que é da área social", sem tirar um centavo do sistema financeiro. Em outras palavras, Lula defendeu "furar o teto” para ter recursos para pagar o Auxílio Brasil de 600 reais, aumentar o salário mínimo, além de outros programas sociais como o Farmácia Popular e o Minha Casa, Minha Vida. Em resposta à carta publicada, Lula respondeu amigavelmente que é “um cara muito humilde e gosto de conselho. Se o conselho for bom, pode ter certeza que eu sigo"

Outro economista, que também foi seu aliado de campanha, Henrique Meirelles, também expressou um “recado” parecido. Segundo a imprensa, ele teria dito durante sua fala em evento promovido pelo mercado financeiro (BTG Pactual), que existiam dois caminhos que podem ser tomados pelo novo governo, considerando duas linhas de pensamento que existem dentro da equipe econômica de transição. O primeiro seria semelhante à política econômica promovida durante a gestão de Dilma, o outro promovido no primeiro mandato do próprio Lula. Ou seja, uma política com mais traços de neodesenvolvimentismo ou uma política neoliberal “mais clássica/ortodoxa”,com reformas e contenção de gastos.

Na própria composição central da equipe econômica, Lula buscou compor com nomes que sinalizam para esses dois sentidos. Por um lado, Guilherme Mello e o Nelson Barbosa, considerados mais desenvolvimentistas, e por outros, Lara Resende e Pérsio Arida, nomes fortes do Plano Real, representando a ala contrária ao aumento de gastos, ainda que o primeiro deu algumas declarações favoráveis à mudança da política macroeconômica.

Essa disputa parece estar por trás da queda de Guido Mantega da equipe de transição. O ex-ministro da Dilma, é tido como uma ala "desenvolvimentista" e se envolveu em um disputa forte contra a indicação do Ilan Goldfajn ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, que é bem visto por setores mais neoliberais diretamente. Ao que tudo indica essa ala saiu vencedora, não só Ilan Goldfajn foi indicado, como Mantega caiu, expressando talvez a primeira “crise” na equipe econômica de Lula.

Na grande imprensa, veículo que dá voz a setores importantes do capital financeiro, esse é o principal debate em disputa da opinião pública. Ainda que seja um consenso a defesa do chamado “waiver” (licença) fiscal, diversos editoriais e analistas defendem que essa licença para gastos tenha um limite, exigindo disciplina fiscal, e inclusive reformas, em particular a administrativa.

Outros setores financeiros importantes também emitiram declarações sobre essa disputa. O atual presidente do BC, Roberto Campos, afirmou que se não houver controle fiscal, com o argumento da “meta da inflação”, irá reagir, sugerindo que pode aumentar os juros.

Todos esses sinais, por ora, apresentam uma reedição de disputas de interesses que ocorreram durante o mandato Dilma. Para diminuir a taxa de juros, quando ainda o BC não era independente, e diminuir o spread bancário (diferença da taxa de juros entre o que é a captado e às taxas de juros dos bancos para empréstimo), Dilma baixou os juros nos bancos públicos, para forçar a redução dos juros nos bancos privados, o que levou a fortes descontentamentos desse setor durante seu governo. Diferente desse momento, agora o governo sequer tem o controle do BC para fazer política econômica, o que foi uma enorme conquista para o capital financeiro que consegue ter um posto avançando em um ponto chave da economia independente do governo eleito.

Há um debate, entre diversos autores, sobre a política econômica do governo Dilma, e seus impactos na dinâmica política do país. Desde Singer, que defende que ela promoveu um “ensaio rooseveltiano”, (em referência a política econômica do presidente dos EUA da década de 30, que impulsionou uma política de grandes investimentos estatais em resposta a grande crise de 1929, nomeada como política econômica desenvolvimentista), até Plínio de Arruda Sampaio Jr. que questiona com mais razão até mesmo se houve uma política neodesenvolvimentista, análise que nós temos mais proximidade.

Ainda que seja preciso aguardar qual será a política econômica efetivamente do futuro governo, o que se apresenta, no entanto, é que diferente da política econômica de Bolsonaro-Guedes, haverá maiores investimentos estatais na economia, o que pode gerar algum nível de maior dinamismo econômico. Ainda assim, não tende a ser um crescimento sustentado, e as previsões de crescimento do PIB não são altas.

Os impactos dessa política econômica ainda dependem de muitas variáveis. Lula sabe que precisará de apoio internacional para ter maior margem fiscal para o seu projeto. Sua ida a COP 27 tinha como objetivo não só a pauta climática, mas também buscar acordos com outros países para o seu governo. Por ora, conta com apoio de governos imperialistas como de Macron e Biden, e quer se apoiar nesses países para ter maior espaço fiscal para sua política econômica. As saudações rápidas e entusiásticas que Lula recebeu após a vitória eleitoral é um componente importante do apoio que buscará nesses países. A pauta da fome e do meio ambiente, tem apelo social nesses países, compondo a agenda interna deles, e por isso, uma boa relação com Lula também é conveniente para vários deles. Além disso, Lula ensaia uma política externa “multipolar”, defendendo relações com China e Estados Unidos, um sinal de que Lula pode tentar atuar entre as disputas das grandes potências, em favor de benefícios próprios. A China também declarou através de Xi Jinping que pretende aumentar seus negócios com o Brasil. É importante ver que esse país tem relações históricas com o Brasil, e ainda que a América do Sul não esteja entre as prioridades geopolíticas da China (vide a disputa por Taiwan, ou a guerra na Europa), ter boas relações com Lula é importante para sua política internacional, em especial pelas disputa com os EUA. Já Biden, por ora, parece buscar uma maior estabilidade do regime brasileiro, com relações amistosas e com parcerias econômicas com o Brasil. Ainda que os Democratas tenham perdido o Congresso nas eleições de meio de mandato, mantiveram seu domínio sobre o Senado, e a “onda trumpista” que se previa, esteve longe de confirmar, o que era um fator que poderia trazer mais instabilidades para a política internacional de Biden. No entanto vale ressaltar que já não existem as mesmas condições geopolíticas de quando Lula governou. Mesmo seus antigos aliados dos BRICs, que Lula faz questão de sempre mencionar, estão envolvidos em fortes disputas internacionais, e o caminho para novos pactos e alianças não será simples.

Igualmente o impacto em setores de massas não é de fácil previsão. Dilma, para implementar seu plano econômico, incluiu as obras do PAC (Projeto de Aceleração Econômica), em obras de infraestrutura, em especial no setor energético. O efeito colateral foram grandes rebeliões operárias, em particular em Jirau e Belo Monte, contra a enorme precarização do trabalho e condições de vida degradantes de milhares de trabalhadores nos maiores canteiros de obras do país. Do mesmo modo, esses empreendimentos também geraram conflitos com diversos povos indígenas, que foram expulsos de seus territórios, o que hoje é um tema sensível, e potencial de futuras crises, dentro do futuro novo governo. Em outras palavras, foi uma política econômica que fez o PT se enfrentar contra suas próprias bases, e foi um dos motivos para desgastar o governo no segundo mandato de Dilma.

Fato é, que apesar dessas disputas, não está colocado por nenhum desses pólos qualquer medida que altere os dispositivos que realmente garantem os interesses do grande capital financeiro. A própria chapa Lula-Alckmin afirma que terá uma política de controle de gastos, sempre afirmando que os governos do PT pagaram religiosamente a dívida pública. Para substituir o teto de gastos, e abrir alguma margem para investimento, Alckmin defende um outro dispositivo para ser “âncora fiscal” que deve combinar "superávit primário com a perspectiva de curva da dívida e gastos do governo”, ou seja, algo que permita o crescimento real das despesas (acima da inflação) conforme o nível e a trajetória da dívida pública. Do mesmo modo, a independência do BC, as grandes reformas e privatizações, sequer aparecem no debate público, com a exceção de pequenos ajustes, mas com o compromisso de que o fundamental desses ataques será preservado.

Tanto Lula quanto Alckmin juram que terão responsabilidade fiscal, e que isso não é contraditório com a "responsabilidade social”. Na realidade esse discurso esconde que a chamada responsabilidade fiscal sempre irá significar mais ataques e ajustes, que cedo ou tarde serão exigidos contra às condições de vida dos trabalhadores e da população brasileira.

Um programa que de fato combata o envio de enormes partes dos recursos nacionais para o capital financeiro, como o não pagamento da dívida pública, estatização e unificação do sistema bancário e revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal e a revogação integral de todas as reformas, serão muito importantes para nossa política no próximo período. Tanto o PT, quanto seus fiéis aliados, indo dos economistas neoliberais até o PSOL, irão atuar para preservar todos esses mecanismos que são os verdadeiros espoliadores da riqueza produzida pela classe trabalhadora brasileira.

Conclusão

Já está se recolocando no país, o debate sobre um novo projeto nacional, que precisa ser reconstituído após a “terra arrasada” bolsonarista. A política “neodesenvolvimentista” que o PT pode querer implementar, será nos marcos das profundas transformações do regime do golpe, portanto, em condições ainda mais precárias do que seus mandatos anteriores, e ainda permeado por um cenário internacional atravessado por conflitos e tensões. Inclusive é sempre importante destacar que essa política produziu um choque com bases proletárias e de movimentos sociais, que temos que inserir no marco das contradições de uma tentativa de uma política econômica desse tipo. Por isso, a nova localização da burocracia sindical, e também de partidos como o PSOL, para blindar o novo governo não será um aspecto menor.

Ainda do ponto de vista econômico, a situação para o próximo período apresenta características de mais estabilidade, e não descontrole. No entanto, não podemos ter uma visão evolutiva, em um contexto econômico internacional que segue sendo de profundas preocupações burguesas, e crises maiores podem ter efeitos disruptivos no país, assim como a mudança da política dos imperialismos para a região.

Por ora, o que parece se apresentar é uma forte lua de mel, com unidade entre setores amplos para uma maior estabilização no regime, ainda que permaneçam fortes setores que atuam como uma força centrífuga de uma completa estabilização, já que isso envolve disputas pela localização de diferentes frações no regime, hoje atravessado por dois bonapartismos: o judiciário e o militar. No interior do bloco que hoje apoia Lula, ou pretende não fazer uma oposição frontal ao seu governo, setores podem se descolar no decorrer do governo, e produzir novas crises políticas. Ainda que seja inegável que a eleição de Lula produza novas doses de legitimidade ao regime político, tão pouco podemos dar como solucionada a crise orgânica que possui raízes mais estruturais. De todo modo, não é possível um retorno ao regime de 88, tampouco é possível a construção de revigoradas forças hegemônicas no contexto político, econômico e social brasileiro. Por isso, do ponto de vista da correlação de forças, é importante ver que a situação reacionária, marcada por todo o período anterior não é a mesma, e estamos diante de uma transição, na qual as forças que atuam para estabilização do futuro governo podem atuar de tal modo que se apresente uma nova situação, com expectativas reformistas, mas em um quadro instável e precário.

Por isso, para um assentamento maior do novo regime, o fator luta de classes será fundamental, bem como a capacidade de Lula de passivizar processos mobilizações, fator que não depende só de sua capacidade política, mas em particular, de um cenário econômico mais favorável e sem mudanças abruptas. Do ponto de vista estratégico, é sempre importante estar aberto a essas variantes, que podem voltar a embaralhar as perspectivas do movimento operário e de setores mais precários, o que abriria novas possibilidades estratégicas no Brasil.

 
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