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Militares e a Amazônia
Em texto hediondo, Villas Bôas culpa os Yanomamis pela própria tragédia: “é comum o infanticídio”
Júlio Dandão

O objetivo estratégico do general é atacar a demarcação de terras indígenas, defender a exploração de recursos minerais e de biodiversidade e ampliar controle e conhecimento territorial por parte dos militares no território amazônico.

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Foto simbólica de César Fonseca onde ex-comandante do Exército coloca a mão aberta sobre a Amazônia

Para infortúnio de todos nós, o general Eduardo Villas Bôas começou uma coluna na Revista Oeste em dezembro do ano passado e, desde então, não se cansa de castigar a língua portuguesa, os fatos e a sensatez. Além de reproduzir teorias conspiratórias à la History Channel e de copiar frases aleatórias de Euclides da Cunha (pobre Euclides!) para dar um ar intelectualoide, em seu último texto o general se aventurou numa etonografia de birosca para culpar os Yanomami pela situação trágica em que se encontram. O texto expressa bem o pensamento da cúpula das forças armadas, de frações do regime político brasileiro e do poder econômico. O objetivo estratégico é o de atacar a demarcação de terras indígenas, defender a exploração de recursos minerais e de biodiversidade e ampliar controle e conhecimento territorial por parte dos militares no território amazônico. Ao arrepio da lei, das vidas indígenas e da preservação da Amazônia, tudo em nome do lucro e do controle territorial.

A crise nas terras Yanomami invadiu os noticiários nos últimos dias e escancarou situação devastadora de milhares. Sabe-se até o momento que nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro, ao menos 570 crianças yanomamis morreram por fome, diarreia, malária e outras doenças evitáveis. Apenas ano passado foram 100 mortes. Quase 12 mil casos de malária foram confirmados apenas em janeiro deste ano. Há relatos de denúncias de ameaças de morte absolutamente negligenciadas pelo Ibama e pelo Ministério Público dessa situação. Diante desse cenário devastador, em que o ministério da Saúde decretou situação de Emergência, o general reformado decidiu escrever um texto em que ele culpa os próprios Yanomamis pela situação.

Ele se chama “A dimensão humana na Amazônia” e é parte de uma série de outros textos em que o homem disserta sobre a região. O fio condutor é basicamente mostrar como as populações da Amazônia “não conseguem satisfazer suas necessidades mais elementares” e como, nas últimas décadas, tem havido um gradual “sacrifício” dos indivíduos (indígenas) “em prol da preservação da intocabilidade cultural”. Ou seja, que os indígenas são punidos para que sua cultura seja preservada. Os verbos do general são, em grande medida, sem sujeitos. Mas em outros textos ele deixa claro que o problema são as ONGs ambientalistas e o discurso contra as mudanças climáticas ("piratas modernos em defesa do imperialismo"). O subtexto é da “ameaça comunista”, “esquerda globalista”, e toda a ladainha obscurantista e anticiência da extrema-direita com a qual Villas Bôas se irmana.

Em dado momento do texto, o militar tem a pachorra de sugerir que as mortes das crianças yanomamis é de responsabilidade dos próprios yanomamis – como se o garimpo, as invasões de terra e a devassa que o agronegócio em conluio com as Forças Armadas brasileiras vem fazendo há décadas no TIY (Território Indígena Yanomami) não tivessem nada a ver com a situação. Ele escreve: “Uma prática comum naquela comunidade é a do infanticídio. Como é próprio da cultura original, as índias se dirigem para o interior da mata quando vão dar à luz. Por força de hábito cultural, é comum o sacrifício do recém-nascido se ele apresentar alguma deformidade, ou se nascerem gêmeos, ou ainda se o primeiro filho for do sexo feminino.” Em seguida ele continua sua linha de raciocínio sugerindo implicitamente que não deveria haver demarcação das suas terras e sim que houvesse contato “assistido e orientado”. Humanista Villas Bôas! Sempre preocupado com a saúde e a vida das crianças yanomamis! Foram mais de 570 crianças mortas por doenças evitáveis no Território Indígena Yanomami durante o governo Bolsonaro, com monstruosa responsabilidade verde-oliva, mas Villas Bôas, com sua etnografia de alta performance, sabe o que é o melhor para os povos indígenas. Cabe lembrar matéria publicada hoje mesmo, mostrando a relação entre o garimpo, tráfico de drogas e militares em território Yanomami durante o governo Bolsonaro

Para finalizar, o sujeito termina mencionando a comunidade Yanomami de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, próximo à Venezuela. Numa linha malthusiana, Villas Bôas novamente culpa os próprios yanomamis pela situação de insegurança alimentar. Os rios estão (misteriosamente) reduzindo seu índice de piscosidade (quantidade de peixes) e a caça está rareando na medida em que a população cresce. A conclusão do general é: “A tendência que se verifica é que, caso não se introduzam alterações nos hábitos regionais por meio de alguma atividade que lhes supram as necessidades, sérios problemas necessitarão ser administrados no médio prazo.” Leia-se “alguma atividade” por ocupação tipo mineração ou exploração da biodiversidade, ou mesmo por parte dos militares, na chamada "estratégia de presença". A frase final do texto é categórica: “no afã de preservar a cultura, sacrificam-se as pessoas”.

Euclides da Cunha é massacrado por Villas Bôas. No afã de querer lacrar, o general sacrifica o escritor, que ao longo da vida se tornou socialista (sem contar que foi expulso do Exército brasileiro por quebrar sua espada e se recusar a prestar continência a um Villas Bôas da época. Depois retorna ao exército, mas não deixa de criticá-los em diversos momentos, como na Revolta da Armada e, claro, no massacre de Canudos). Utiliza trechos de Euclides para dar um tom de grandiosidade para seus textos, violentando seu legado. Em um texto antiimperialista, uma frase de Euclides parece ecoar ao longo das décadas e pousar diretamente no texto de Villas Bôas, denunciando tudo o que é relacionado ao poder instituído: “Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora”, diz o jornalista em 1904. A “civilização” do exército de Villas Boas é a mesma que defende a invasão das terras indígenas, que defende o Marco Temporal, que é contra a demarcação de terras indígenas, que defende o legado de bandeirantes e da presença militar em terras indígenas, que destrói culturas, rios, matas e populações inteiras em benefício do lucro capitalista. Chama o desmatamento de progresso e o lucro da mineração de avanço. É a “civilização” do Estado brasileiro que há quase 523 anos vem devastando com a vida e a cultura de povos originários. Diferentemente do que o governo federal e o PT vêm fazendo, não é confiando nesse Estado, nessa justiça, nesses militares e muito menos se aliando à direita e ao agronegócio, que vamos combater a raiz dos problemas envolvidos nessa situação.

Sobre a necessidade de se organizar a luta por uma resposta e justiça aos yanomami, reproduzotrecho de um outro texto publicado também no Esquerda Diário: “É preciso adotar um programa econômico e político que lute contra as frações burguesas que enriquecem com a desgraça dos povos indígenas e a degradação ambiental: pela imediata expropriação das empresas ligadas ao garimpo e a utilização de seus recursos pelos povos indígenas para a resolução dos problemas e melhora de sua condição de vida; da mesma forma, é preciso desarticular o grande latifúndio através de uma reforma agrária e a expansão das áreas de proteção ambiental e dos territórios indígenas. A classe trabalhadora do campo e da cidade precisam apoiar o movimento indígena na luta por suas reivindicações, buscando fazer com que a relação com a terra e tudo que produzimos não seja tomado pelo Capital e transformado em simples mercadoria, e sim à serviço das nossas necessidades, vontades e bem-estar.” Diante dessa necessidade, é preciso que as centrais sindicais, sindicatos, organizações operárias e de esquerda e movimentos populares se solidarizem com essa causa e organizem essa luta, desde a base, para garantir resposta e justiça aos yanomami, sem nenhuma confiança que o atual governo da Frente Ampla e o Estado vão garantir os direitos plenos dos povos indígenas.

 
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