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Unidade Popular
A transfobia da UP é uma herança estalinista
Marie Castañeda
Estudante de Ciências Sociais na UFRN
Valéria Muller

Em pleno 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans e Travesti, que neste ano ocorreu apenas alguns dias após o Brasil ter reafirmado pela 14º vez consecutiva o primeiro lugar mundial em assassinatos de pessoas trans, a Unidade Popular expressa toda sua transfobia. Não se trata de nenhum equívoco ou má formulação, e sim de sua tradição estalinista colocada à tona novamente.

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A Unidade Popular, no dia 29, fez uma postagem no twitter chamando a "lutar" para que as pessoas trans tenham "acesso aos meios de resolverem sua condição", ou seja, de se curarem! A publicação foi amplamente rechaçada pois expressa uma transfobia que faz coro com as cúpulas evangélicas e reacionárias de todo o tipo ao tratar as identidades trans como um problema a ser "resolvido". Difícil uma corrente que se diz “comunista” explicar como pode expressar posições que debatem dessa forma uma opressão, utilizada pelo sistema capitalista para aprofundar a exploração, buscando dividir a nossa classe com sua ideologia reacionária contra nossa livre expressão de gênero e sexualidade.

Assim como no posicionamento extremamente conservador dessa organização, que não defende a legalização da maconha, ignorando que a falsa guerra às drogas na verdade é uma guerra contra pobres e negros, veremos como se trata de uma trajetória bastante arraigada da tradição do PCR-UP, que faz parte de uma corrente internacional estalinista-albanesa conhecida por ser transfóbica e conservadora.

No Brasil de Bolsonaro e Damares, que pregam que meninas vistam rosa e meninos vistam azul, setores conservadores com quem o governo Lula-Alckmin hoje busca alianças já circularam mais de uma reacionária proposta de "cura gay". Em pleno 2023, ideias deste tipo são reafirmadas por uma organização que se diz socialista, e que novamente comprova que o estalinismo só serve para preparar derrotas.

O fato é que a divisão de uma identidade de gênero binária (homem/mulher) não é algo natural. É resultado de um processo histórico em que o capitalismo avançou na repressão da sexualidade de conjunto, se valendo da opressão patriarcal que é estrutural deste sistema e está a serviço de potencializar seus lucros. De fundo, o que há nessas posições da UP é uma aceitação e naturalização dessas raízes históricas machistas, patriarcais, LGBTfóbicas do sistema capitalista, uma posição bem distante da luta socialista que essa organização diz defender.

Embora a postagem tenha sido apagada, seu conteúdo está presente em um texto de 2019 onde fica exposta toda a transfobia da UP. Em uma lógica patologizante, o artigo faz uso de nada menos que a 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, localizando as identidades trans como parte de “controvérsias relacionadas à sexualidade”, ou seja, uma definição que, em si mesma, rotula essas identidades como problema de saúde e transtorno. Essa compreensão historicamente resulta não só em tentativas de “cura”, mas também em métodos brutais como eletrochoques, estupros corretivos, além do impedimento do acesso à saúde, procedimentos cirúrgicos, hormônios, etc.

Os exemplos e explicações utilizados no texto da UP reforçam estereótipos dentro dessa perspectiva de que as pessoas trans precisam de algum tipo de “cura” ou “ajuste”, sustentando que: “pessoas “trans” (Trangêneros e transexuais) são indivíduos e indivíduas que sofrem de disforia de gênero (...) um homem trans (Pessoa que nasceu com corpo feminino, mas não se sente bem nele) pode ter problemas apenas com os seios, assim como uma mulher trans (Pessoa que nasceu com corpo masculino, mas que “sente-se mulher”), se satisfaz apenas em reproduzir gestos mais “femininizados”.” Uma posição que coloca como se fosse um "problema" que está nas pessoas trans e travestis, tirando toda responsabilidade de como a opressão da nossa sexualidade e gênero vem do sistema que vivemos. A transexualidade, assim como a identidade não-binária são expressões de gênero, em inconformidade à imposição dos padrões de gênero vigentes na sociedade capitalista. Embora tais padrões recaiam sobre toda a classe trabalhadora, as pessoas trans decidem performar uma identidade de maneira transgressora, contra tal imposição, não como uma "condição de saúde" que precisa ser "resolvida", mas como uma decisão que implica - com exceção de pouquíssimas pessoas, devido a privilégios de classe - se enfrentar com as faces mais cruéis e precárias do capitalismo e do patriarcado.

Essas posições da UP não são nenhum engano ou má formulação. São expressões abertas de sua tradição estalinista, que fez retroceder a experiência mais profunda da história de emancipação das mulheres e de direitos inéditos para a diversidade sexual e de gênero, além do conjunto da classe operária e oprimidos na União Soviética. Nesse sentido o artigo afirma que “Os Partidos Comunistas e organizações proletárias, no passado, não deram importância a esta questão” para buscar encobrir a história sangrenta e reacionária da sua tradição política, que não condiz com a história do marxismo revolucionário em defesa da liberdade sexual e de gênero.

Para o marxismo revolucionário, o combate às opressões é parte inseparável de uma estratégia para destruir o capitalismo e abrir caminho a uma nova sociedade, por isso a nossa história é marcada pela defesa intransigente de todos os setores oprimidos. O primeiro discurso político feito em defesa dos homossexuais foi de Bebel, em 1898, contra a perseguição estatal, assim como a defesa da separação entre Igreja e Estado, que nunca desapareceu do programa dos revolucionários.

A Revolução Russa, dirigida pelo Partido Bolchevique de Lenin e Trotski, foi a maior revolução proletária da história e colocou nas mãos da classe trabalhadora o poder do Estado, enfrentando a exploração capitalista e todas as opressões em patamares inéditos. Em poucos meses, os bolcheviques legalizaram o aborto e descriminalizaram a homossexualidade em seu Código da Família, da Tutela e do Matrimônio de 1918 e, em 1922, avançaram para retirar o Estado por completo das questões sexuais. Neste cenário, a autora Sherry Wolf destaca as interessantes experiências que se faziam no Exército Vermelho, onde existem relatos sobre pessoas que podiam servir ao exército com o nome que escolhessem, apesar das muitas contradições da época.

Após a morte de Lenin e sob o comando de Stalin o aborto voltará a ser criminalizado a partir de 1928, quando também a homossexualidade passa a ser considerada “um perigo em potencial”. Em 1934 o código penal soviético será alterado, voltando a criminalizar a homossexualidade e legalizando uma enorme perseguição que a população LGBTQIAP+ já vinha sofrendo da burocracia estalinista. Essas medidas se inserem no marco de uma revalorização de conjunto da família e de valores conservadores que se justificam no fato de que a burocracia e sua utopia reacionária do “socialismo em um só país” só poderiam se manter na medida em que se apoiassem no que havia de mais conservador na sociedade soviética. Para isso exploraram o enorme esgotamento social gerado por anos de guerra civil, tentativas de invasões imperialistas, fome e privações de todo o tipo. Em defesa dos interesses materiais da burocracia, ou seja, de privilégios ligados ao aparato do Estado, foi necessário fuzilar os principais dirigentes do Partido Bolchevique que estiveram junto a Lenin e Trotski durante a revolução, além de perseguir LGBTQIAP+, mulheres, trabalhadores e opositores na URSS e pelo mundo todo, manipulando a própria realidade e levando a URSS ao colapso e à restauração capitalista. No Brasil essas posições foram levadas adiante tanto pelo PCB, como nas rupturas posteriores dentro da tradição estalinista, como o PCR, fundado em 1966, que fundou e dirige a UP. A UP levanta orgulhosamente a tradição albanesa de Enver Hoxha como sua estratégia, uma tradição profundamente LGBTfóbica que adotou as medidas reacionárias de recriminalização do aborto e repressão à diversidade sexual, repetindo a tradição estalinista durante seu governo que durou até 1985 e reafirmando essas posições mesmo depois das mobilizações progressistas nesse terreno dos anos 60 e 70.

Então quando a UP diz que os Partidos Comunistas “não deram importância a esta questão”, na verdade está buscando esconder essa história, que é parte do papel contrarrevolucionário que cumpriu o estalinismo. Ao espalhar imagens de Stalin pelas universidades, arrancar cartazes do Trotski e expor posições conservadoras como essa e a respeito da legalização da maconha e das drogas, a Unidade Popular está dando continuidade a esta tradição nefasta, que conta com inúmeras outras barbáries e que até hoje serve de argumento anticomunista aos capitalistas e seus ideólogos. Por isso é também uma grande hipocrisia e uma formalidade a afirmação de que “A hegemonia de filósofos e filósofas liberais no tema [da transsexualidade] é mais consequência do atraso dos marxistas a respeito do que indicativo de que este assunto é “coisa de liberal”. Na verdade, essa hegemonia e toda a propaganda acadêmica anticomunista dos teóricos liberais e pós-modernos se legitima justamente devido aos absurdos que o estalinismo promoveu na URSS em defesa dos interesses rasteiros da burocracia. Essa tradição reacionária ajuda o neoliberalismo a atacar o marxismo, confundido-o com sua caricatura conhecida como “socialismo real”.

Como parte de uma perspectiva comunista, é preciso levar à frente a batalha por cada direito das pessoas trans e travestis, como o de realizar com segurança as transformações desejadas em seus corpos, e também contra a precarização do trabalho e da vida, e por isso pela revogação de todas as reformas e ataques aprovados desde o golpe institucional, assim como por um plano de emergência de enfrentamento à violência transfóbica. Porém, a tradição estalinista que a UP compõe é oposta a essa perspectiva. Tal tradição tem como parte constitutiva também a conciliação de classes, que se reafirma nos dias de hoje tendo esse partido inclusive aceitado um sub-cargo no governo de transição para cobrir pela esquerda a frente ampla do PT com a direita, os empresários, setores do regime e a fração majoritária do imperialismo.

Para fortalecer a luta de todos os setores oprimidos do mundo, ao contrário da tradição stalinista, nós buscamos fortalecer a luta contra esse sistema capitalista que nos explora e oprime, que criminaliza ou classifica como disforia nossas identidades e sexualidade. O estalinismo precisa ser amplamente rechaçado e superado pelas novas gerações que não aceitam a opressão, exploração e miséria impostas pelo capitalismo. É uma ferramenta para isso o trotskismo, como continuidade do marxismo revolucionário de Marx, Lenin e outros, que nasce em combate à degeneração estalinista e escreve para sempre em suas bandeiras a luta contra toda e qualquer opressão e também a batalha pela independência política da classe trabalhadora na luta contra a exploração e pela emancipação da sociedade.

 
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