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SEMANÁRIO

A tradição antiguerra do movimento estudantil e a Palestina

Noah Brandsch

A tradição antiguerra do movimento estudantil e a Palestina

Noah Brandsch

Há mais de um mês, os jornais da mídia burguesa e ocidental não param de estampar nas manchetes o seu discurso sionista de “legítima defesa de Israel” para justificar o massacre que ocorre na Faixa de Gaza, em que 125 crianças são assassinadas por dia desde o 7 de outubro, promovendo uma nova Nakba. Por outro lado, observamos massivas manifestações e até bloqueios de envios de armas em diversos países do mundo, dos EUA à Austrália, da Inglaterra à Indonésia e da Itália à Jordânia. As demonstrações de solidariedade internacional são diversas, e já obrigaram governos, como o da Bolívia, a romper suas relações com Israel. Estaríamos diante de um novo levante internacional contra a guerra aos povos oprimidos e as invasões imperialistas, como se deram durante os anos 60 na Guerra do Vietnã e da Argélia? Queremos retomar a tradição internacionalista da juventude e do movimento estudantil para dar uma resposta ao massacre que ocorre em Gaza, mostrando que é essa força que pode alterar o cenário do conflito, rumo à uma unidade internacional da classe trabalhadora e dos povos oprimidos, levando à libertação da Palestina através de um Estado operário e socialista.

Guerra, “força material” e “força moral”

Se analisarmos os conflitos militares nos últimos séculos, em especial os que se desenvolveram para situações revolucionárias, são inúmeros os elementos que definem a vitória de um campo. Entretanto, um elemento fundamental para pensar a guerra em nosso tempo, do qual o marxismo historicamente se apropriou criticamente do general prussiano Carl Von Clausewitz e transpôs dialeticamente à luta de classes, é que a “força moral” das tropas é um elemento definidor da guerra, inclusive superior às diferenças bélicas que possam existir entre dois exércitos.

As “forças materiais” analisadas sozinhas são impossíveis para se determinar a vitória em uma guerra, e sequer para conhecer o “volume geral” de forças que se possui. É da combinação da “força material” e da “força moral” (espírito de luta, motivações, consciência etc.) que surge a medida do conflito. A “força moral”, entretanto, não pode ser medida por fora do próprio combate, o que a torna um fator mais imprevisível e decisivo. No que se refere à estratégia militar, e para nossos objetivos, na estratégia revolucionária, as “forças morais” são decisivas e requerem as maiores atenções por parte dos “generais”, ou seja, das direções do processo. Neste sentido, a “força moral” pode cumprir um papel de incidir diretamente sob as forças materiais de ambos os lados, inclusive desarticulando o exército inimigo.

Sobre tal tema, elabora Clausewitz:

“É o espírito que impregna toda a guerra. Ela impõe-se antecipadamente à vontade que guia e move toda a massa de forças, aderindo de certo modo a ela, sendo essa mesma vontade uma grandeza moral. Está isento infelizmente de qualquer conhecimento livresco, pois não se avalia em número e não faz parte de nenhuma categoria; só deseja ser apercebido ou sentido.” [1]

Ou seja, se pensarmos hoje, quais fatores podem se enfrentar com o poderio bélico de Israel, que é subsidiado e apoiado pelos EUA e pelos países da Europa ocidental, é indispensável pensar a “força moral” que, em primeiro lugar, pode mover forças materiais para enfrentar tal avanço militar (manifestações, greves, piquetes etc.), podem mover forças materiais do inimigo (por exemplo, com os bloqueios em portos ao envio de armas à Israel), e, sobretudo, podem desestabilizar a hegemonia e a sustentação política dos Estados e seus governos que promovem tal genocídio na Palestina.

Tais fatores já se colocaram à prova antes na história, durante outras guerras. Listamos aqui duas delas, em que especialmente o movimento estudantil cumpriu um papel de incendiar a “força moral” e possibilitar a vitória de povos oprimidos e uma contestação a grandes potências imperialistas, como os EUA e a França. São elas: a Guerra do Vietnã e da Argélia.

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O movimento estudantil e a luta anti-imperialista nos anos1960

A partir do pós-guerra, apesar de uma relativa estabilidade nos países centrais do capitalismo, por conta do boom econômico que permitiu o “Estado de bem estar social”, os países coloniais e semicoloniais estavam passando por fortes movimentos de libertação nacional, como na Argélia, à época uma colônia francesa, e o Vietnã, contra a invasão dos EUA. Como as estruturas bélicas dos EUA puderam perder para a população de um país fundamentalmente agrário como o Vietnã? Essa é uma questão que é impossível de ser respondida se não é tomado em conta o papel internacional de solidariedade ao Vietnã, inclusive dentro dos próprios EUA.

A guerra anti-colonial na Argélia se iniciou em 1954, com fortes contestações ao domínio colonial francês, que havia acabado de deixar a ocupação na Indochina, e que seria forçado a negociar a independência de Marrocos e Tunísia dois anos mais tarde, bem como a de Camarões, Senegal, Togo e outros em 1960. O movimento de libertação nacional argelino, mesmo com contradições estratégicas importantes, porém das quais não vamos nos deter aqui, conseguiu sua independência em 1962. Ele foi apoiado fortemente por diversos setores na França, tanto por organizações de esquerda, em especial trotskistas que buscaram não só formar frentes únicas operárias com outras organizações e sindicatos na França contra a ocupação colonial, mas também contribuíram na fabricação e envio de armas clandestinamente para organizações como a FNL (Frente Nacional de Libertação), especialmente ao final da guerra; mas também pelo movimento operário, e especialmente o movimento estudantil, que teve sua fisionomia forjada nesta luta anti-imperialista e, anos mais tarde, em 1968, daria uma demonstração internacional de luta, de questionamento da universidade e sociedade burguesa e de aliança operário-estudantil.

Especialmente a partir do final da década de 50, o movimento estudantil francês começa a se radicalizar por conta da guerra na Argélia. A UNEF (União Nacional de Estudantes da França) se dividia entre aqueles que eram a favor da “Argélia Francesa” e aqueles a favor da independência, esta última que ganhava cada vez mais força no interior da entidade. O Partido Comunista Francês, honrando sua tradição stalinista, após ter negociado a reocupação militar francesa na Indochina no pós-guerra, adotava uma posição chauvinista e “patriótica” de não apoiar a guerra de libertação e a independência. Ainda assim, milhares de estudantes universitários e secundaristas se mobilizavam: faziam massivas manifestações, faziam atividades para garantir apoio e fundos, organizavam núcleos militantes clandestinos nos regimentos do exército francês para difundir sua posição contra a ocupação, bem como sabotagens e cortes nos comboios de soldados. O movimento estudantil também ficou famoso por criar o Front universitaire antifasciste (Frente Universitária Antifascista - FUA), organizando “milícias” para expulsar organizações fascistas e de extrema direita das universidades e bairros populares, que eram a favor da colonização francesa na África.

Após a vitória da guerra e a proclamação da independência, em 19 de março de 1962, a bandeira da FNL foi erguida em diversas universidades francesas por todo o país.

Pixação em Paris após manifestação em que a polícia assassinou centenas de argelinos. 17 de outubro de 1961

No que tange à Guerra do Vietnã, o movimento estudantil internacionalmente também cumpriu um papel fundamental. Após a desocupação francesa em 1954, os EUA invadem militarmente o país da Ásia oriental. O conflito se estende em um impasse até o final da década de 1960, quando as condições econômicas do boom pós-guerra se esgotam, e especialmente a juventude começa a se levantar no mundo todo, marcando fortemente o ano de 1968: no México, França, Brasil, Tchecoslováquia, Inglaterra, Japão, Iugoslávia, Congo, Tunísia e diversos outros países, inclusive se articulando a nível internacional como na campanha de “Solidariedade pelo Vietnã”, impulsionada pela Federação Britânica de Estudantes Revolucionários e pela Zengakuren (organização estudantil japonesa); bem como o avanço na luta por direitos civis para a população negra nos EUA, que era enviada em massa para servir à “democracia” americana no Vietnã, e cujo principal líder (Martin Luther King) fora assassinado, desencadeando uma onda de protestos em inúmeras cidades. Neste mesmo ano, fruto destas mobilizações, que abalavam a “força moral” do imperialismo ianque, os vietnamitas tiveram uma importante vitória, no que ficou conhecido como Ofensiva do Tet.

Para saber mais sobre a Guerra do Vietnã e a luta negra: Guerras imperialistas e a questão negra nos Estados Unidos

Após isso, o movimento anti-guerra internacionalmente, que se expressava nas mais variadas formas, inclusive na arte e cultura, se intensificou mais ainda.

O movimento estudantil estadunidense teve um papel proeminente na luta contra a guerra, especialmente no mês de maio de 1970, durante a presidência de Nixon, após sua ofensiva militar sobre Camboja. Cerca de 4 milhões de estudantes do ensino básico e superior paralisaram 883 campus de diversas instituições públicas e privadas de ensino contra a guerra, reivindicando o fim do recrutamento militar, do treinamento de oficiais dentro dos campus e das pesquisas universitárias financiadas pelo Pentágono para a guerra. Foi a maior greve estudantil da história dos EUA. Massivas manifestações foram convocadas, e cerca de 30 prédios do exército foram incendiados. O resultado da repressão foram 2 mil estudantes presos e 4 assassinados pela Guarda Nacional, no Estado de Kent.

As primeiras universidades a paralisar foram Columbia, Princeton, Brandeis e Yale, que já haviam paralisado anteriormente em apoio ao Partido dos Panteras Negras. Os estudantes se organizavam a partir de assembleias de base, vigílias e palestras sobre a política e a guerra.

Poucos anos depois, o presidente Nixon renunciou, e logo depois, a retirada das tropas americanas de Saigon consagrou a vitória da Revolução Vietnamita.

“Nessa semana, centenas de milhares de estudantes, jovens trabalhadores e jovens revolucionários, descerão a rua ao mesmo tempo numa ação mundial comum pelo objetivo concreto que os próprios camaradas vietnamitas nos dizem ser o mais importante para eles! Mostrar ao mundo inteiro que nos Estados Unidos centenas de milhares de pessoas são a favor da retirada imediata das tropas americanas do Vietnã. Eis o que será uma grande conquista!” [2]

Todas essas demonstrações de força do movimento estudantil, inúmeras vezes em aliança com os trabalhadores e setores oprimidos, foram fundamentais para fortalecer o espírito revolucionário das massas, tanto argelinas e vietnamitas, mas também do movimento operário e estudantil francês que forjou ascenso de maio de 1968, e na luta dos negros americanos pelos direitos civis e contra o racismo. Tais processos marcaram uma geração inteira que tatuaram na pele o símbolo da luta anti-imperialista. Da mesma forma, foram cruciais para o debilitamento político dos imperialismos que exerciam uma ocupação no Norte da África e na Indochina, e que foram obrigados a retirar seu aparato militar-colonial, mesmo quando este era superior às armas dos argelinos e vietnamitas.

A guerra na Palestina e o movimento estudantil hoje

No atual genocídio que ocorre em Gaza, vemos que trabalhadores e jovens no mundo todo se levantam pelo fim dos ataques de Israel, pelo fim do envio de armas e pela auto-determinação do povo palestino. Em Londres, um milhão de pessoas saíram às ruas; na Catalunha, EUA e Austrália, manifestantes pararam os navios de transporte de armas; na Jordânia, Egito, Bangladesh, Indonésia, Turquia e outros países de população muçulmana e árabe, centenas de milhares fizeram massivos atos; em Nápoles, estudantes ocuparam sua universidade; na França e na Alemanha, mesmo com o governo proibindo as manifestações, inúmeras pessoas saem às ruas. Em diversas universidades e escolas pelo mundo todo, estudantes criam comitês em apoio e solidariedade à Palestina, em que inclusive nós da Fração Trotskista somos parte de impulsionar e construir em diversos países.

Está colocado para o movimento estudantil a tarefa de reerguer uma potente “força material e moral” de um movimento internacional anti-guerra, que será necessariamente anti-imperialista, resgatando a tradição dos anos 60 e 70, em que os grandes temas internacionais eram também uma força para questionar a universidade de classes e os governos capitalistas de seus próprios países. Junto à juventude palestina, que já vem questionando suas direções conciliadoras e burguesas como a OLP e o próprio Hamas, rumo a uma nova Intifada, no caminho para uma Palestina operária e socialista.

Esse é o caminho para dar uma saída progressista à questão palestina, que depende do imediato fim dos ataques e da ocupação sionista de Israel. Isso debilitaria o imperialismo à nível internacional, e seria uma forte moralização para que os trabalhadores do mundo todo se levantem, inclusive aqueles que se vêem em meio a uma guerra com dois campos reacionários, como na Ucrânia.

Leia também: Movimento de solidariedade à Palestina: um “Vietnã” da nossa geração?

No Brasil, inúmeras universidades mantêm convênios com institutos israelenses e sionistas que produzem tecnologia para promover o apartheid na Palestina. Enquanto isso, o governo federal de Lula-Alckmin mantém os acordos diplomáticos, econômicos e militares com Israel, inclusive a importação de armas para a polícia que assassina a juventude negra no Brasil, como vimos nas recentes chacinas no Guarujá, Rio de Janeiro e Salvador.

As entidades estudantis: DCEs, CAs, UEEs etc, mas especialmente a UNE e UBES, devem ser parte de erguer uma forte campanha em cada universidade, instituto federal e escola, em solidariedade ao povo palestino, a partir de assembleias de base, para exigir a ruptura das instituições de ensino e do governo com qualquer acordo com Israel.

Esta campanha deve estar ligada a um questionamento da produção de conhecimento das universidades. Afinal, para quê estudamos se não para pautar e debater os grandes temas que assolam a humanidade com a miséria do capitalismo, e sermos parte de pensar e sermos sujeitos ativos de sua transformação? Batelhamos em cada local de estudo em utilizar o conhecimento produzido para também refletir sobre essa sociedade de classes que gera guerras e genocídios como agora na Palestina. O movimento estudantil precisa ser parte de influenciar internacionalmente para construir as bases de uma nova sociedade, como já vimos anteriormente na história.


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FOOTNOTES

[1CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Livro III, capítulo III, pág. 173

[2O movimento estudantil revolucionário. Discurso de uma das conferências realizadas por Ernest Mandel em universidades dos EUA e Canadá entre setembro e outubro de 1968.
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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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