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[Espectro do Comunismo] Trótski contra as tradições stalinistas

[Espectro do Comunismo] Trótski contra as tradições stalinistas

André Barbieri, doutor em Ciências Sociais da UFRN, e editor do Ideias de Esquerda, fala sobre Trótski contra as tradições stalinistas.

Esse é o nosso episódio especial sobre o Trótski, às vésperas do 83º aniversário do seu assassinato pelos sicários do Stálin, um episódio de homenagem ao seu legado e à luta da IV Internacional por restaurar o sentido original do comunismo, deturpado pela tradição stalinista.

A discussão “trotskismo e stalinismo” é coisa do passado? O que ela significa pros nossos tempos? Esse debate ganha relevância num momento como esse, em que no Brasil se torna urgente resgatar o projeto de um partido revolucionário dos trabalhadores que em aliança com os movimento sociais lute pelo comunismo, superando a tradição reformista petista, que sempre fortalece a extrema direita.

Confira um trecho deste episódio sobre a Teoria da Revolução Permanente:

“Teoria” do socialismo em um só país, e Teoria da Revolução Permanente

Bom, o que a burocracia queria, ao apresentar o leninismo como uma espécie de marxismo particular específico da época imperialista era revisar o marxismo em seus traços essenciais, também quanto os fundamentos internacionais da concepção comunista. Na medida em que a linha central dessa revisão do marxismo era a concepção reacionária do socialismo nacional, a “teoria do socialismo num só país”, o Stálin tentou “proclamar” o indemonstrável: que o leninismo tinha tomado uma atitude diferente, em relação ao marxismo da “época pré-revolucionária”, em torno desse tema central. Ou seja gente, ao contrário de toda a tradição marxista, de Marx até Lênin, que conceberam a teoria da revolução em sua dimensão incontornavelmente internacional e mundial, Stálin negou tudo isso e passou a divulgar a concepção de que o socialismo poderia ser constituído dentro das fronteiras de um só país, ou de países isolados, sem qualquer relação com a dinâmica internacional da revolução. Inacreditável mas esse é o stalinismo.

Essa é uma discussão de importância estratégica, gente. A economia mundial é hoje uma realidade superior à realidade das economias nacionais que engloba e subordina, ou seja, ela domina poderosamente a realidade de suas partes componentes, as dos países tomados separadamente. E por que isso? Porque a economia mundial une entre si países e continentes que se encontram em etapas diferentes de desenvolvimento, como explica o Trotsky, através de um sistema de dependência e oposição, aproximando esses diversos níveis de desenvolvimento e afastando-os imediatamente depois. Esse movimento de integração-diferenciação, aliás, é o que o Trotsky explicou como o desenvolvimento desigual e combinado, as bases da nossa época. Quanto ao desenvolvimento desigual, a lei mais imediata da evolução histórica, nós estamos falando da grande variedade do nível alcançado por cada região do mundo e a extraordinária desigualdade do ritmo de desenvolvimento das distintas partes da humanidade. O capitalismo já encontra as distintas partes da humanidade nesses diferentes graus de desenvolvimento, e parte daí para estabelecer os níveis de diferenciação mais básicos, já que o capitalismo não aparece simultaneamente em todos os lugares, basta ver quão diferente era, no século XIX por exemplo, a Inglaterra da Alemanha, ou ambos do Brasil e da Índia. Apesar do Stálin ter dito a estupidez de que o Marx e o Engels não podiam conhecer a lei do desenvolvimento desigual, eles desenvolveram o socialismo científico em base a ela. Mas a época imperialista complexificou ainda mais o cenário, porque cada país em sua particularidade nacional, ainda que seguisse evoluindo desigualmente entre si, não se desenvolviam isoladamente, separadamente entre si. Os países mais avançados, ao explorar a força de trabalho das colônias e países de capitalismo atrasado, como a Inglaterra e a França faziam com a Rússia, a China e a Índia, por exemplo, modificavam a qualidade da evolução nacional. Ela se tornava um produto composto, que combinava o que havia de mais arcaico nas relações sociais com o mais avançado da técnica mundial. Por isso, da lei do desenvolvimento desigual, que estabelece uma primeira diferenciação entre os países, o Trotsky depreendeu a lei do desenvolvimento combinado, que estabelece a integração deles à escala nacional: a aproximação das distintas etapas no caminho, o amálgama entre o atraso e o moderno”.

Esse é o fundamento da teoria da revolução permanente, as conclusões político-estratégicas desses desenvolvimento material combinado da história. Essa compreensão fez com que o Trotsky fosse um grande conhecedor das complexidades nacionais, internas, de todos os países específicos que ele analisou, e dispusesse com precisão a política necessária, por exemplo, pra resolver o problema da terra e da revolução agrária nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, ou problemas democráticos chave como o combate ao racismo em países centrais como os Estados Unidos. Esse conhecimento detalhado do Trotsky sobre as complexidades nacionais apareceu não só na Rússia, mas também nas principais formações socioeconômicas que analisou, segundo o Perry Anderson os escritos do Trotsky sobre a Alemanha, a França e a Inglaterra não tem paralelo e são superiores inclusive às de comunistas muito importantes como o Gramsci.

Pra sintetizar rapidamente aqui gente, na elaboração final que o Trotsky faz da TRP em 1929-30, ele determina “três leis”, ou três pilares da permanente. Em primeiro lugar, o Trotsky conclui que, fruto do desenvolvimento desigual e combinado, a classe trabalhadora de um país capitalista atrasado pode chegar ao poder antes que a classe trabalhadora de um país avançado. Sendo a classe trabalhadora a única a revolucionária em nossa época, caberia a ela, em aliança hegemônica com as classes e setores explorados e oprimidos, levar adiante as tarefas democrático-estruturais (como a expulsão do imperialismo, a revolução agrária, que hoje envolve o problema da moradia urbana, etc.), sem se deter à portas da propriedade burguesa, porque na dinâmica do enfrentamento real os trabalhadores se veriam na obrigação de aniquilar a propriedade capitalista, e entrelaçar as tarefas democráticas com as tarefas socialistas da revolução. Essa é a primeira lei. A segunda lei diz respeito à revolução socialista enquanto tal, ou seja, todas as transformações internas das sociedades em transição (nos campos da ciência, da cultura, dos costumes, das leis, da economia, da filosofia, de tudo) que impedem que a sociedade alcance um equilíbrio intermediário entre o capitalismo e o socialismo. Ela está em movimento, e os choques entre capitalismo e socialismo continuam até que as forças produtivas socialistas se mostrem superiores ao capitalismo em escala global. E aí entra a terceira lei - que to explicando em separado só por questão didática, elas não acontecem “uma depois da outra” gente, é algo simultâneo e dinâmico - a terceira lei da TRP, que é um choque frontal ao stalinismo: a dinâmica internacional da revolução, ou, pra dizer de outra maneira, a ligação orgânica de um processo que se inicia à escala nacional, se desenvolve internacionalmente e só pode culminar na arena mundial. É impossível que essas conquistas se enquadrem nos limites de um só país. A possibilidade de que os trabalhadores em países atrasados cheguem ao poder antes daqueles dos países mais avançados não elimina o fato de que o nível de desenvolvimento das forças produtivas nos países nesses países torna impossível que avancem por si mesmos ao socialismo. É necessário acabar com as fronteiras nacionais e unificar as forças produtivas de todo o globo como uma nova realidade superior, o que só pode ser feito destruindo o imperialismo em seus centros de gravidade, através do triunfo revolucionário nesses países. Esse desenvolvimento brilhante da teoria do Trotsky é que o explica o caráter profundamente realista da ideia de um partido comunista mundial, e a inevitabilidade de um programa comunista mundial, que não é uma mera soma de programas nacionais, já que na nossa época só é possível deduzir o sentido em que se dirige o proletariado do ponto de vista nacional a partir do domínio internacional.

O Lênin disse isso 1 milhão de vezes nos seus escritos! Qualquer leitura minimamente atenta das obras do Lênin vai revelar o profundo internacionalismo em que ele embebia a teoria revolucionária e a situação concreta da URSS depois de Outubro de 1917. Só pra citar algumas, em 23 de abril de 1918 o Lênin escrevia que “O fato de estarmos atrasados nos empurrou adiante, mas pereceremos se não soubermos resistir até o momento em que recebamos o poderoso apoio dos operários insurretos de outros países [...] Vivemos não apenas em um Estado, mas em um sistema de Estados. Não se pode conceber que uma república soviética exista durante longo tempo ao lado das potências imperialistas. Um ou outro vencerá”. Em vários desses escritos ele conclui com a mesma ideia “Para nós sempre foi claro que sem a ajuda da revolução mundial, o triunfo de nossa revolução proletária era impossível” [5 de julho de 1921]. Por isso que pro Trotsky o “internacionalismo do Lênin não era de maneira alguma uma forma de reconciliar verbalmente nacionalismo e internacionalismo, mas uma forma de ação revolucionária internacional. O mundo aparece como um só campo de combate em que os distintos povos e classes sustentam uma guerra gigantesca uns contra os outros”, e nisso seguia todos os ensinamentos do Marx e do Engels, os supostos teóricos da época pré-revolucionária…É exatamente por isso que a TRP não é só uma teoria para os países de desenvolvimento capitalista atrasado. O que o Trotsky fez foi integrar a Revolução Russa ao processo da revolução no Ocidente. Ou seja, com a generalização das leis da TRP o Trotsky integra os cenários oriental e ocidental em uma teoria unificada que trata do “caráter, os nexos internos, e os métodos da revolução internacional em geral”. A revolução é um todo indivisível e a política é tratada como uma grande estratégia para o comunismo.

O Stálin achava o contrário, que a URSS poderia viver tranquilamente independente da revolução mundial, apenas com a “pressão” dos trabalhadores de outros países contra suas burguesias - a teoria da “neutralização da burguesia”, filha do socialismo em um só país, que significa a proibição da revolução socialista em qualquer outro país. Não é à toa que a ofensiva burocrática do stalinismo contra as conquistas da revolução de Outubro e contra o Partido Bolchevique começou com os ataques à teoria da revolução permanente do Trotsky, a teoria-programa inimiga da concepção do “socialismo em um só país”. Essa “teoria” stalinista do socialismo num só país representou historicamente a teoria da contrarrevolução, e que o stalinismo concreto, o que existiu na história, não o stalinismo supostamente higienizado inventado pelos seus seguidores hoje, organizou a tendência de pensamento dos “socialismos nacionais” reacionários, que culminou na restauração do capitalismo na URSS, na China e na maioria dos países que haviam expropriado a burguesia, devolvendo à burguesia o poder.

Então gente, não dá pra achar que essa enorme discussão teórico-estratégica, que fez diferença no destino da humanidade em todo o século XX, “não importa”, ou se reduz a uma “disputa de egos”? É impossível pensar a revolução no Brasil ou em qualquer lugar do mundo sem o internacionalismo proletário que está no núcleo da teoria da revolução permanente do Trotsky, muito menos construir partidos revolucionários que tenham como objetivo a luta pelo comunismo.


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