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Os comunistas e a religião

Camila Begiato

Os comunistas e a religião

Camila Begiato

A luta dos comunistas contra a consciência religiosa, quaisquer que sejam, é a de reverter a consciência invertida do mundo. É mostrar que são os homens que são sujeitos da sua própria realidade, que constroem o seu próprio mundo. A burguesia se favorece da ideologia que os trabalhadores não são donos da própria vida, seu poder se baseia na alienação do trabalho e na retirada de qualquer poder dos trabalhadores sob seu próprio trabalho e vida. O ânimo de um mundo sem coração não pode ser ilusório e a luta por um suspiro não pode ser parcial, mas conquistada plenamente pela transformação do velho e putrefeito em novo, belo e verdadeiramente livre.

A análise marxista do surgimento da religião e o papel que cumpre, em especial, sob o capitalismo, é um grande espetáculo dialético:

“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estado de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”.

O famoso trecho da Introdução a Crítica a Filosofia do Direito de Hegel, tão demonizado pelas bestas reacionárias, capta com uma sensibilidade peculiar como a religião é a expressão dos elementos mais esperançosos e bonitos da vontade humana e, contraditoriamente, resultado da realidade mais alienante e miserável. Os brotos que florescem nos grandes palácios dos céus e a realidade profundamente desprovida de ódio e desigualdade que é prometida após a morte surge, para Marx, um materialista irremediável, da própria consciência humana e, ao mesmo tempo que aliena e conforta, faz promessas que jamais serão conquistadas pela própria vontade e ação humana.

A verdade é que, apesar de anos terem se passado depois das grandes revoluções burguesas cuja ciência trouxe à Terra muitos dos acontecimentos que eram atribuídos aos deuses e entidades superiores e jogou luz a capacidade humana de produzir, a religião ainda é parte quase intrínseca à realidade da grande maioria da população brasileira e de muitos países do mundo. Como é comum em diferentes cenários políticos e econômicos, a esperança e crença em algo que é externo à realização humana nos países capitalistas que ainda carregam inúmeras contradições e atrasos toma sempre novos contornos e dimensões.

Historicamente, a Igreja e o cristianismo cumpriram um papel fundamental de ideologias que favorecem a burguesia, como o rechaço ao direito ao aborto e à liberdade dos corpos, que são pilares fundamentais para a opressão de gênero e que hoje proporciona lucros exorbitantes à grande burguesia com, por exemplo, a justificativa da dupla jornada de trabalho e da manutenção da família tradicional burguesa. A religião não é, entretanto, apenas isso. Em suas diversas formas, as religiões vestem a roupagem de uma reação profunda a esses mesmos momentos de crises e desesperos, da esperança em um mundo além desse tão profundamente miserável, e do vislumbre de uma realidade verdadeiramente bela e livre na vida após a morte, em um mundo que não o nosso.

Surge, então, o debate de qual deve ser o papel dos comunistas frente a essa ideologia tão profundamente anti-operária que cresceu no país ao lado da direita e extrema direita. É verdade que hoje a grande maioria dos trabalhadores brasileiros são religiosos e nem todos propagam a ideologia racista e misógina como as igrejas dos setores mais reacionários que apoiaram, nos últimos anos, o bolsonarismo, mas querendo ou não, essas igrejas são um espaço importante onde essas ideias são difundidas e também instrumentos que ativamente investiram e apoiaram a extrema direita e toda a sua política de retirada de direitos. É, de fato, de fundamental importância que discutamos de que formas vamos e devemos combater essa inversão do mundo real que se combina com uma ideologia que tenta dividir tão profundamente a classe trabalhadora.

A religião pelas lentes marxistas

Rosa Luxemburgo escreve em 1905 [1], frente ao grande rechaço das igrejas ao levante dos trabalhadores e operários russos contra o czarismo, sobre essa grande contradição da Igreja, cujos primeiros apóstolos cristãos teriam sido ardentes comunistas. No estado da Roma na época em que teria nascido Jesus, em um governo despótico e opressor, onde a desigualdade era extremamente profunda e em uma sociedade mantida majoritariamente pelo trabalho escravo, surgiam os primeiros cristãos. Se voltando à religião frente à uma realidade miserável, o que pregavam era justamente a partilha de todos os bens de consumo, compartilhavam suas casas, seus alimentos e suas roupas.

Ela destaca uma limitação muito interessante daqueles que chamava “cristãos comunistas” e os sociais-democratas russos: os primeiros compartilhavam os produtos do trabalho que, na época, eram fruto do trabalho escravizado, e cuja necessidade se instaura em um cenário de profunda desigualdade e pobreza. Mas essa partilha não dizia respeito aos meios de produção, aos instrumentos de trabalho, às terras onde se semeava, mas da partilha de bens que não sanariam de uma vez por todas as desigualdades entre pobres e ricos, apenas o faria temporariamente. Os sociais-democratas, por outro lado

“[...]dizem: ‘Não queremos que os ricos repartam com os pobres: não queremos nem caridade nem esmolas; ambas as coisas são incapazes de impedir o retorno da desigualdade entre os homens. Não é de modo algum uma partilha entre ricos e pobres que nós desejamos, mas a completa supressão de ricos e pobres’. Isto é possível desde que as fontes de toda a riqueza, a terra, em comum com todos os outros meios de produção e instrumentos de trabalho, se tornem propriedade coletiva do povo trabalhador que irá produzir para si próprio, de acordo com as necessidades de cada um. Os primeiros cristãos acreditaram que podiam remediar a pobreza do proletariado por meio das riquezas oferecidas pelos possuidores. Isso seria deitar água numa peneira!”

Lênin debate em 1909 [2] anos antes da Revolução que conquistou o poder operário, qual deve ser a atitude do Partido Operário em relação à religião. Em sua lógica profundamente materialista, histórica e dialética, Lênin vê em uma Rússia majoritariamente cristã a importância de disputa entre o projeto de vida religioso e o projeto comunista, que não diz respeito à luta pelo ateísmo e a guerra contra a religião.

No que diz respeito a religiosidade, existe uma cisão importante, para ele, entre o militante comunista e a classe trabalhadora em geral: o primeiro é a vanguarda da classe operária, é a sua ala consciente e, portanto, tem de ser profunda e radicalmente ateu, pois é materialista e vê a humanidade não em um mundo além, mas na realidade na qual vivemos hoje e a qual nos é palpável. A classe trabalhadora de conjunto, entretanto, especialmente em países economicamente atrasados onde a religião é sintoma da sua realidade, alcança esses níveis de consciência em momentos de luta de classes muito profundas e, mesmo assim, apenas pode romper com essas limitações completamente quando as bases materiais forem conquistadas para isso. A própria religiosidade da classe trabalhadora russa não é extinguida com a tomada imediata do poder.

Por isso é ultimatista e idealista acreditar que a batalha pelo ateísmo, como acreditavam os anarquistas na sua época, levaria à revolução. O militante comunista, entretanto, deve ter essa clareza e ateísmo que é inerente ao marxismo, mas é preciso saber como se utilizar dele. Lênin vê como chave a luta de classes:

“Ele [o marxismo] diz: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é preciso explicar de modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas. Não se pode limitar a luta contra a religião a uma prédica ideológica abstracta, não se pode reduzi-la a essa prédica; é preciso pôr esta luta em ligação com a prática concreta do movimento de classe dirigido para a eliminação das raízes sociais da religião.”

A luta comunista não é contra a fé individual das pessoas, pelo contrário, somos nós os primeiros a lutar contra as perseguições e restrições das liberdades individuais de cada trabalhador, mas a luta comunista com certeza deve passar pela expropriação da propriedade e da riqueza de que a Igreja dispõe: Rosa coloca como no século XII se formula uma lei, que se diz sagrada, de que a riqueza da Igreja pertença não aos fiéis, mas é propriedade individual do clero e do Papa. Riqueza essa que se é acumulada com a cobrança do dízimo aos camponeses mais pobres e que mais tarde proveio até mesmo da nobreza que buscava na Igreja uma justificativa para a escravidão! “A Cristandade” diz Rosa, “começou como uma mensagem de consolação aos deserdados e pobres. Trazia uma doutrina que combatia a desigualdade social e o antagonismo entre ricos e pobres; ensinou a comunidade de riquezas. Em breve este templo de igualdade e fraternidade tornou-se uma nova fonte de antagonismos sociais.”

Os comunistas frente às religiões

Mas como deve ser, afinal, a luta pelo comunismo contra os atrasos e preconceitos de gênero e raça que percorrem a classe trabalhadora nesses momentos de crises econômicas e políticas e que inundam as igrejas?

A luta pelo comunismo não se trata de uma disputa que se dá apenas no plano das ideias, não começa pela mudança da consciência do proletariado de ver humanidade nos mais pobres e ajudar a elevar as condições de vida dos mais necessitados pela ação comunitária: essa lógica leva, na melhor das hipóteses, a um reformismo que não corresponde à luta pelo comunismo. Mesmo nos setores mais progressistas da Igreja que veem a necessidade de elevação das condições de vida da população pobre e miserável, essa é uma solução temporária e em nenhum momento é abandonada a ideia de que é uma grande força divina que tem ação decisiva na realidade e que a liberdade só será verdadeiramente atingida após a morte: a mudança da realidade é apenas um degrau a ser subido ao grande palácio belo e livre dos céus.

Na pior das hipóteses, essa lógica leva a um abandono completo do materialismo histórico dialético e da luta de classes, abandona a ideia de que é a realidade que faz as ideias e que portanto é ela que deve ser radicalmente transformada. Essa é uma batalha feita por Marx e Engels em todas as suas obras mais fundamentais. Se a “miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real”, como diz Marx, a luta comunista é pela transformação radical da realidade para que a religião enquanto ópio do povo, entorpecente da realidade miserável, deixe de ser tão ilusoriamente necessária.

A verdade é que, se a realidade faz a consciência, é apenas a luta de classes que pode elevar a consciência das massas. É apenas o questionamento das bases materiais, do Estado capitalista e do papel fundamental que cumpre a Igreja, que pode elevar a consciência das massas e levar à compreensão de que o racismo e a misoginia são ferramentas do capital para dividir e dilacerar a nossa classe. A própria divisão entre religiões, como o cristianismo e as religiões de matrizes africanas, são profundamente difundidas para a perseguição da população negra trabalhadora.

Em momentos de crises e da necessidade da democracia burguesa de aprovar e aprofundar ataques cada vez mais profundos à classe trabalhadora, não é a toa que submergem dos bueiros ideologias que tentam justificar tamanhos ataques. Por isso andam de mãos dadas as inúmeras reformas, ataques e privatizações, que atacam em especial os setores oprimidos da sociedade, e a ideologia racista e misógina. Os setores mais reacionários do cristianismo foram base do governo de extrema-direita de Bolsonaro e fizeram parte de fortalecer não só o regime e as instituições, mas também a ideologia de ódio às mulheres, à população LGBTQIA+, aos indígenas e aos negros, o qual é indispensável à burguesia para a exploração cada vez mais profunda da classe trabalhadora. Mas os “comunistas” que acham que é necessário ir às igrejas revelam um profundo ceticismo com a potência da luta de classes, que não apenas muda a realidade, mas faz avançar a consciência. É na luta contra a demissão de companheiras terceirizadas que se percebe como o racismo é ferramenta fundamental para a exploração das mulheres negras. É na luta pelo direito ao aborto que se percebe que a opressão aos corpos é condição fundamental para a reprodução da família tradicional burguesa.

A luta dos comunistas contra a consciência religiosa, quaisquer que sejam, é a de reverter a consciência invertida do mundo. É mostrar que são os homens que são sujeitos da sua própria realidade, que constroem o seu próprio mundo. A burguesia se favorece da ideologia que os trabalhadores não são donos da própria vida, seu poder se baseia na alienação do trabalho e na retirada de qualquer poder dos trabalhadores sob seu próprio trabalho e vida. As religiões são, em seu cerne, um apêndice dessa ideologia, que faz com que os trabalhadores abandonem em certa medida a confiança de que eles mesmos são capazes de transformação e de conquistar uma vida verdadeiramente livre e bela. Os comunistas não podem aceitar calados que os trabalhadores sigam sem a fé inabalável na própria força, Rosa diz que:

“A Social Democracia de modo algum combate os sentimentos religiosos. Ao contrário, procura completa liberdade de consciência para todo o indivíduo e a mais ampla tolerância possível para qualquer fé e qualquer opinião. Mas desde o momento que os padres usam púlpito como um meio de luta contra as classes trabalhadoras, os trabalhadores devem lutar contra os inimigos dos seus direitos e da sua libertação. Porque o que defende os exploradores e o que ajuda a prolongar este regime presente de miséria, esse é que é o inimigo mortal do proletariado, quer esteja de batina ou de uniforme de polícia.”

Estavam os bolcheviques, em uma Rússia profundamente atrasada e religiosa, dentro das igrejas propagando o programa comunista para os trabalhadores religiosos? É claro que a resposta é não. A posição dos bolcheviques sempre foi independente dessas intermediações: os bolcheviques estavam nas fábricas e na luta de classes. Que tipo de programa verdadeiramente revolucionário, de questionamento às bases ideológicas mais profundas da família, da opressão à mulher e à população LGBTQIA+, de ódio ao direito ao aborto, pode ser levantado dentro das igrejas? Os que acham que precisam ir às igrejas para levantar o programa revolucionário certamente o fazem rebaixando profundamente o caráter inerente do programa comunista de liberdade dos corpos das mulheres, das pessoas trans e da destruição da família tradicional burguesa.

Cabe aos comunistas rebaixar o seu programa para ganhar as massas de trabalhadores religiosos? Cabe aos comunistas abrir mão da luta contra a opressão que causa os tipos de violências mais odiosas aos próprios trabalhadores? Lênin diz que:

“Um marxista deve ser materialista, isto é, inimigo da religião, mas um materialista dialético, isto é, que coloca a luta contra a religião não de modo abstracto, não no terreno da propaganda abstrata, puramente teórica, sempre igual a si própria, mas de modo concreto, no terreno da luta de classes que tem lugar de fato e que educa as massas mais e melhor que tudo. Um marxista deve saber ter em conta toda a situação concreta, encontrar sempre a fronteira entre o anarquismo e o oportunismo (esta fronteira é relativa, móvel, mutável, mas existe), não cair no ‘revolucionarismo’ abstrato, verbal, de fato vazio, do anarquista nem no filistinismo e no oportunismo do pequeno burguês ou do intelectual liberal, que teme a luta contra a religião, esquece esta sua tarefa, se reconcilia com a crença em Deus, se guia não pelos interesses da luta de classes mas por cálculos pequenos e mesquinhos: não ofender, não afastar, não assustar, pela sapientíssima regra: ’vive e deixa viver os outros’, etc., etc.”

Após quatro anos de governo Bolsonaro, em um país onde o atraso ideológico de grande parte da população ainda é permeada por uma ideologia profundamente racista e misógina, com um novo governo que fala sobre a reconstrução do país por meio de alianças com a burguesia mais nojenta e reacionária (e, diga-se de passagem, tão racista e misógina quanto Bolsonaro), é fácil cair na ilusão de que a mudança da consciência é, em uma lógica progressiva, um primeiro passo para a sociedade comunista. Principalmente quando os erroneamente auto intitulados comunistas apoiaram essa política de conciliação e hoje fazem parte de construir a burocracia que mina a auto organização dos trabalhadores em diversos sindicatos.

Mas o papel dos comunistas é a luta incansável de que os trabalhadores sejam eles mesmos seus próprios senhores. E essa luta é a luta pela auto organização da classe trabalhadora, das instâncias onde eles têm voz, onde decidem os rumos das próprias lutas. Não à toa a construção dos sovietes e o fim da exploração capitalista na União Soviética levou ao avanço da consciência da experiência socialista mais avançada já vista. É essa a política que devem levar os comunistas, é nas fábricas e na luta de classes que devem gritar seu programa revolucionário. O ânimo de um mundo sem coração não pode ser ilusório e a luta por um suspiro não pode ser parcial, mas conquistada plenamente pela transformação do velho e putrefeito em novo, belo e verdadeiramente livre.


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FOOTNOTES

[1Ver O Socialismo e as Igrejas, de Rosa Luxemburgo, 1905.
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