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Debate | Estado e Burguesia no Brasil: um debate com Antônio Carlos Mazzeo

Para uma intervenção dos revolucionários na realidade, seja no Brasil ou no mundo, é fundamental uma análise da realidade e as possibilidades, a partir daí, da superação do capitalismo e dos sujeitos que são capazes de tal tarefa. Esta resenha se propõe a fazer um debate com a obra "Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa" do prof. e militante do PCB Antônio Carlos Mazzeo, passando pela formação do Brasil, retomando o conceito de Trótski de desenvolvimento desigual e combinado para analisar a formação da burguesia e do proletariado brasileiro, bem como um debate metodológico com pensamento lukacsiano, reivindicado pelo autor, e as suas consequências para a práxis revolucionária.

sexta-feira 12 de abril | Edição do dia

Primeitamente, apresentamos a obra ao leitor:

Resumo da obra e mini-biografia do autor:

Antonio Carlos Mazzeo, nascido em 02/03/1950, autor do presente livro Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa, sendo a primeira edição da obra em 1989, é doutor em história econômica pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em filosofia política pela Università Degli Studi Roma-Tre e Livre-Docente em ciência política pela Universidade Estadual Paulista. É professor dos programas de pós-graduação em história econômica (USP) e serviço social (PUC-SP). O autor também é, como deixa claro logo no início de sua obra, um militante político e que desenvolve sua obra para pensar a intervenção na realidade. Sendo membro do Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro) até hoje, Mazzeo já concorreu a dois processos eleitorais, um em 2010 para Senador do Estado de São Paulo, e outro em 2016 para Vereador do Município de São Paulo, em coligação com o PSOL.

Na seguinte obra, com a qual será feito um debate crítico, Mazzeo busca retomar autores brasileiros, em especial ligados ao movimento comunista e ao próprio PCB, que pensaram a formação social brasileira. Em sua apresentação, bem como durante o desenrolar do livro, Mazzeo apresenta duas correntes interpretativas centrais, cada uma com suas nuances dentro de si mesma. A primeira seria o que chama de “teoria consagrada”, que tem como base a tese de que as relações de colonização na América Portuguesa (e posteriormente no Brasil) teriam um caráter de produção e organização feudal; tal corrente, segundo o autor, “transpunha de forma mecânica e reducionista as análises de Marx, Engels e Lenin das realidades particulares europeias para as formações sociais asiáticas e latino-americanas”, [1] tendo seus principais expoentes em autores como Octávio Brandão e Nelson Werneck Sodré. A segunda seria o que chama de análise interpretativa, e se baseia na análise particular da formação social brasileira, colocando-a na esteira do desenvolvimento do modo de produção capitalista, inserido no mercado mundial de um capitalismo crescente; defendido por autores como Caio Prado Jr., Carlos Nelson Coutinho e José Chasin, ainda que com suas diferenças entre si.

Toda a linha de argumentação de Mazzeo para buscar compreender a origem do Estado e da burguesia na formação social brasileira, onde estão inseridas as várias citações e debates com outros autores, é conduzida pela relação entre o particular e o universal, bem como as suas representações e expressões histórico-concretas. Ou seja, para analisar a particularidade da formação social no Brasil, é necessário compreender como ela se insere no modo de produção capitalista que se estabelecia no universal do planeta Terra. A forma concreta da relação do modo de produção é a universalidade realizada no particular. O capitalismo brasileiro nada mais é do que formações sociais particulares que contém a universalidade do modo de produção capitalista.

Essa forma de pensamento está, assumidamente pelo autor, bastante galgada no pensamento do filósofo húngaro György Lukács. As conclusões de Mazzeo, portanto, são bastante influenciadas por uma visão lukacsiana, que por sinal tem peso entre a velha guarda do Partidão, em decorrência de sua introdução e circulação entre a intelectualidade na esquerda a partir dos anos 1970.

Tal dialética da relação particular-universal é apresentada no início a obra, perpassando todo o desenvolvimento, no qual o autor busca expor a universalidade do modo de produção capitalista a partir de seu surgimento com a desarticulação do modo de produção feudal, da subsunção do campo à cidade e o fortalecimento do comércio, se apropriando e debatendo com autores como Maurice Dobb e Perry Anderson. Tal processo dá origem à expansão mercantil, que desembocará na colonização das Américas. No caso de Portugal, abordado pelo autor, o processo de formação de um Estado nacional absolutista se dá de forma precoce, com a formação de uma economia mercantil que possibilita as expansões navais. A partir disso, demonstra como tal processo de expansão do capitalismo deu origem ao chamado “sistema colonial”. É neste momento que entra mais profundamente nos debates acerca do modo de produção da formação social brasileira.

Um primeiro debate é com os defensores do modo de produção escravista colonial, como Jacob Gorender, Ciro F. Cardoso e Décio Saes. Para Mazzeo, os três, apesar de suas diferenças, se equivocam de forma comum em suas análises justamente por eliminarem o elemento ontológico, ou seja, transformam o universal em uma mera tipificação e não em sua realização no particular. De forma inversa, Mazzeo busca fazer a análise da formação capitalista no Brasil dentro da universalidade do modo de produção capitalista mundial, e a partir disso busca compreender as determinações histórico-particulares do Estado nacional brasileiro.

No debate sobre o “enquadramento” da formação brasileira em alguma “via”, Mazzeo utiliza a definição de “via prussiano-colonial”, se apoiando nas conclusões de C. N. Coutinho e Luís Werneck Vianna sobre a “via prussiana” e de José Chasin sobre a “via colonial”. A argumentação vai no sentido de que o capitalismo brasileiro se deu de forma (hiper)tardia e unindo a “nobreza latifundiária” e a burguesia nascente, excluindo as massas populares e formando um Estado autoritário, mas, ao contrário do processo Alemão que com isso desenvolveu as forças produtivas para se alçar como potência imperialista, a unidade nacional brasileira manteve o pacto colonial, e foi base para sua posterior industrialização.

Suas conclusões rumam no sentido de ver a formação da burguesia nacional e do Estado de forma submissa ao centro capitalista mundial, retomando o sentido da colonização teorizado por Caio Prado Jr.. Da mesma forma, a ideologia e a legalidade autocrática das elites brasileiras são heranças de um reformismo conservador do despotismo esclarecido da monarquia portuguesa, porém em uma formação social baseada na organização produtiva escravista e agroexportadora, e de ser submissa a uma metrópole submissa aos interesses ingleses. A crise do mercantilismo português dará o fruto da independência em 1822, à revelia da participação das massas populares neste processo. Tal independência, para Mazzeo, se apoiando na análise caiopradiana, se deu como um “arranjo político”, garantindo um compromisso do Estado monárquico com a burguesia agrária, formando o que chama de bonapartismo-colonial, através principalmente do Poder Moderador, se colocando acima das disputas inter burguesas e pequeno-burguesas para manter a continuidade da submissão do Brasil ao centro do capitalismo. Esse bonapartismo-colonial é visto como a gênese da autocracia burguesa no Brasil.

Desenvolvimento desigual e combinado e as vias da formação do Estado e burguesia no Brasil:

No movimento comunista brasileiro, do qual Antonio Carlos Mazzeo se coloca como parte, se fez longos e intensos debates sobre a formação sócio-econômica da sociedade brasileira, a fim de compreender, a partir daí, a sua transformação. O presente trabalho reivindica esses esforços, e busca somar-se a eles a partir de contribuições críticas à já apresentada obra Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. Para tanto, caminharemos por duas linhas centrais para o debate: primeiramente, sobre a formação do Brasil em si, resgatando os debates marxistas sobre a constituição do capitalismo à nível mundial e como se desenvolveram suas particularidades nacionais, e retomando importantes nomes como Mário Pedrosa e Lívio Xavier, para além de Léon Trotski, em debate com Caio Prado Jr. (reivindicado pelo autor), os conceitos de via prussiano-colonial e bonapartismo colonial, e a importância das revoltas escravas e a formação da classe operária brasileira para a formação débil da burguesia nacional. E segundamente, um debate metodológico com o pensamento lukacsiano, assumidamente influente nas elaborações de Mazzeo e neste livro em particular, a fim de tirar conclusões políticas para a práxis revolucionária; bem como relacionar com o momento político em que a elaboração de tal obra se inseriu e suas consequências práticas.

Como já falado, a linha de pensamento dialética levada à frente por Mazzeo através da ontologia marxista de particularidade e universalidade (herdada do pensamento lukacsiano) para pensar a formação do Brasil e o debate com as demais concepções (seja de feudalismo ou de escravismo colonial) é presente no texto todo. De forma correta, é impossível pensar qualquer formação social sem enxergar como ela se insere na totalidade do modo de produção, ainda mais em um contexto em que a universalização do capitalismo se dava a passos largos.

A desagregação do modo de produção feudal, articulado ao desenvolvimento do mercantilismo e aos Estados nacionais europeus, é a chave inicial para o achado do Mundo Novo, e consequentemente a sua colonização e inserção no novo modo de produção nascente, subordinando tudo a si e seu modelo:

“Esse é processo que descreve a biografia moderna do capital, no qual se insere, então, o acelerado processo de subsunção das formas de trabalho existentes ao capital.” [2]

Da mesma forma analisa Trotski, em seu clássico A História da Revolução Russa, ao buscar compreender as particularidades de sua formação social russa, desenvolve sobre a universalidade desta relação com a lei do desenvolvimento desigual e combinado:

“As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como, em geral, a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.” [3]

Este debate é central para as conclusões sobre a formação social brasileira, uma vez que, com ela, se compreende não só a sua sociedade, mas como ela está inserida no sistema internacional e, como veremos mais à frente, submissa ao imperialismo. Da mesma forma, compreendendo esta dialética, se aponta as contradições estruturais dos adeptos da mecânica e reducionista “teoria consagrada” do “Brasil feudal” e da “revolução por etapas” de Octávio Brandão e do então núcleo dirigente do PCB, herdada da burocracia do Kremlin.

A partir disso, o autor desenvolve sua argumentação sobre as origens da burguesia brasileira. Se apoiando, entre outros autores, em Caio Prado Jr., Mazzeo coloca o sentido da colonização nas Américas como central para a acumulação primitiva de capitais, como já colocava Marx. O papel da colônia portuguesa era de uma economia exploratória e monoexportadora (com os diferentes ciclos econômicos do açúcar, ouro, café etc.), e para tal, a concentração fundiária e o trabalho forçado de braços negros e indígenas era central. O caráter capitalista da colônia de exploração brasileira se dá na exploração agrária do latifúndio, e teve seu início com a implementação das capitanias hereditárias. [4] Isso garantiu à burguesia brasileira uma posição de submissão ao centro capitalista mundial, por estar economicamente ligada e dependente dele.

Seguindo sua argumentação, a consolidação do capitalismo no Brasil se deu de forma que a “nobreza” latifundiária vinda dos colonos portugueses deu as bases à acumulação de capitais e a uma futura modernização das forças produtivas, posteriormente a partir da produção cafeeira. Esse processo concedeu à nação uma unidade nacional imposta de cima para baixo, e se concretizou no “arranjo político” da Independência de 1822.

Em debate com as “vias” de desenvolvimento capitalista, Mazzeo define o processo brasileiro como “via prussiano-colonial”, [5] por conta da semelhança com o processo prussiano de uma modernização tardia e uma unidade nacional vinda de cima, a partir dos junkers (nobreza fundiária alemã) que se apossam do Estado, mas que no caso do Brasil manteve toda a estrutura colonial e sua inserção submissa no plano internacional.

Os pioneiros em fazer uma análise sobre a formação social do Brasil como capitalista, com a burguesia nascente do campo e a partir daí o seu Estado, bem como sua relação e dependência umbilical ao imperialismo, foi a Oposição de Esquerda do então Grupo Comunista Lênin, em 1930:

“O Brasil nunca foi, desde a sua primeira colonização, mais que uma vasta exploração agrícola. Seu caráter de exploração rural colonial precedeu historicamente sua organização como Estado. Nunca houve aqui terras livres; aqui também não conhecemos o colono livre, dono de seus meios de produção, mas o aventureiro da metrópole, o fidalgo português, o comerciante holandês, o missionário jesuíta — que não tinham qualquer outra base a não ser o monopólio das terras. Sob uma forma peculiar de feudalismo, todos vinham explorar a força de trabalho do indígena adaptado e do negro importado”. (...) “O modo de produção capitalista e a acumulação — e, por consequência, a propriedade privada capitalista — foram exportados diretamente das metrópoles para o Novo Mundo. A base do sistema capitalista é a expropriação da massa popular; mas, nas colônias, em geral, o excesso de terra pode ser transformado em propriedade privada e meio individual de produção”. [6]

Mário Pedrosa e Lívio Xavier, autores deste trecho, se apoiavam no desenvolvimento desigual e combinado de Trotski para compreender a configuração da realidade brasileira. Analisando o nascimento da burguesia a partir do campo, com o monopólio das terras nas mãos da elite latifundiária vinda da metrópole e o surgimento do Estado a partir dessa exploração rural, chega-se à conclusão de que as bases do capitalismo nacional brasileiro, a partir da transformação da mão de obra escrava em assalariada (junto à imigração europeia) e da modernização da indústria cafeeira, se desenvolveu de forma submissa ao imperialismo no mercado mundial.

De ambos os lados, tanto Mazzeo quanto a futura LCI (Oposição de Esquerda no Brasil) chegam à conclusões parecidas sobre o advento da burguesia brasileira e o Estado autocrático burguês, embora os segundos não conceituassem este processo como “prussiano-colonial”. O próprio Caio Prado Jr. bebe das elaborações dos trotskistas brasileiros, embora isso nunca fosse abertamente reivindicado. [7]

Essas conclusões são fundamentais para analisarmos o processo de independência brasileira em 1822, que justamente por conta do caráter produtivo estrutural brasileiro de um escravismo agroexportador pautado no monopólio das terras, se deu na forma de um “arranjo político”, como caracteriza Caio Prado e é apropriado por Mazzeo. [8] Ao contrário de uma independência a partir da adoção dos ideais liberais-revolucionários para de fato uma emancipação, ela se deu na forma de uma contrarrevolução e da conciliação com o velho, conferindo às elites e ao Estado um caráter reacionário e conservador, justamente para manter a estrutura colonial. Na caracterização do autor, isso deu origem a um bonapartismo colonial, representado na figura de Dom Pedro I e no Poder Moderador. [9]

Outro aspecto que para Mazzeo é parte da formação autocrática do Estado é a “importação” da estrutura burocrática político-administrativa de Portugal, e como a apropriação dos ideais liberais burgueses republicanos da Revolução Francesa, que em Portugal ganham um caráter conciliador com o absolutismo (tendo sua expressão no despotismo esclarecido de Pombal), no Brasil caíam nas mãos tanto da burguesia quanto das pequenas-burguesias radicalizadas que pressionavam contra a metrópole e o Império, mas não se transfiguravam em nenhum processo revolucionário de ruptura com a estrutura colonial.

Esta formação trouxe uma “falta de participação popular” no processo de independência, como enfatiza diversas vezes o autor. De fato, as massas ficaram à margem de qualquer “integração”, por assim dizer, de suas demandas fundamentais neste “arranjo político” entre as elites coloniais e a metrópole. Entretanto, para além da manutenção da estrutura produtiva escravista agroexportador e da importação distorcida dos ideais liberais-revolucionários por parte das elites e da pequena-burguesia brasileira incapaz de romper com sua metrópole, que concerniram ao Estado um caráter autocrático e bonapartista, um elemento fundamental falta na análise de Mazzeo que é definidor para tal formação, e que traz consequências importantes nas conclusões políticas.

Se por um lado, a análise lukacsiana e caiopradiana de Mazzeo traz corretamente a relação particular-universal no modo de produção capitalista e sua relação com o Brasil, e traz conclusões importantes sobre aspectos da origem autocrática, reacionária e conservadora da burguesia brasileira; por outro, a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotski nos permite analisar mais profundamente as relações de classe na formação do capitalismo mundial, e neste caso, do brasileiro.

A estrutura produtiva escravista pautada no monopólio nas colônias americanas, desde como já colocava Marx, era parte do modo de produção capitalista. [10] Ela formava uma grande massa de trabalhadores negros escravizados sequestrados da África para serem a base da extração da força de trabalho. Esses braços negros comumente se levantavam contra esta situação, dando origem às famosas revotlas escravas e aos quilombos. A formação destas formas de resistência, em especial os quilombos, negavam a estrutura produtiva da colônia em seus dois aspectos centrais: o monopólio da terra (no qual era produzida a monocultura exportadora para as metrópoles) e a mão de obra escravizada. [11]

O desenvolvimento do capitalismo mundial se expressou no Brasil com a transformação da economia escravagista em salariado do campo fazendo se de maneira direta, e o afluxo migratório, que já começara antes da abolição da escravatura, teve como objetivo oferecer braços à grande cultura cafeeira [12]. Essa condição, junto à importação da mão de obra imigrante, deu início à formação de uma classe operária industrial brasileira, que desde o início protagonizou fortes greves contra as oligarquias das federações, assim como fizeram os escravizados durante todo o Império, à exemplo da forte Greve dos Ganhadores na Bahia em 1857.

Tanto nas revoltas escravas, nos quilombos, quanto nas greves operárias, para além de uma simples resistência, colocavam medo nas elites e burguesias coloniais e metropolitanas, pois elas representavam uma gênese do que poderia ser se estes processos tomassem um caráter centralizado e generalizado. Ou seja, se tomassem um caráter revolucionário de ruptura com a ordem estabelecida e o sentido da colonização, como foi a Revolução Haitiana em um primeiro momento, ou a Revolução Russa com uma classe operária já formada.

A resposta da classe dominante a esta situação foi justamente a sua formação autoritária e mesquinha, espremida entre a classe operária brasileira herdeira das lutas dos escravizados e o centro mundial do imperialismo, primeiro com a metrópole portuguesa, e depois com a Coroa Britânica. À isso, claro, se somam os elementos apontados na obra de Mazzeo, sobre como se deu a apropriação do “republicanismo ilustrado” português pela elite brasileira, mas que tem sua base concreta nesta relação entre as classes.

Dessa forma apontam Pedrosa e Lívio:

“Por essa razão, a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam edificar uma superestrutura política e social progressiva. O imperialismo não lhe concede tempo para respirar e o fantasma da luta de classe proletária tira-lhe o prazer de uma digestão calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa à defesa do capitalismo. Daí, sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e — em todos os planos — a sua covardia.” [13]

Em um plano mais profundo, o significado dessas relações é que a burguesia nacional é incapaz de cumprir as tarefas históricas concedidas à ela enquanto classe, como foram nas revoluções burguesas: ela é incapaz de desenvolver uma base capitalista autônoma, de fazer a reforma agrária e se libertar do julgo imperialista. Essas particularidades concederam-lhe um tipo particular de relação na formação de seus Estados, que Trotski caracterizou como bonapartismo sui generis:

“Nos países industrialmente atrasados, o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isso cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente fraca burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isso confere ao governo um caráter bonapartista sui generis, de natureza particular. Ergue-se, por assim dizer, acima das classes. Na realidade, ele pode governar ou tornando-se um instrumento do capital estrangeiro e sujeitando o proletariado às cadeias de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando mesmo a fazer-lhe concessões, ganhando assim a possibilidade de ter alguma liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros.” [14]

Esta questão confere ao Brasil uma análise especial, visto que o forte contingente da população ex-escravizada no país se inseriu na estrutura produtiva pós-abolição nas margens dos centros industriais, seja compondo o exército de reserva dos desempregados, o trabalho rural e camponês, ou os postos “auxiliares” na produção industrial (mulas, estivadores etc). Isso deixou de herança a forte estrutura racista na sociedade brasileira, e deu à classe operária do país a tarefa estratégica de superar essa questão que no Brasil se tornou uma demanda democrática central:

“De todas as demandas democráticas mais sentidas pela população mundial, as do povo negro lideram a lista das mais urgentes. Na luta por direitos mínimos, como um pedaço de terra, uma casa para morar, o cessamento do genocídio, o negro perceberá que não é pelas mãos do Estado Capitalista que poderá conquistar sua vida plena e digna.” [15]

Lukács e a saída revolucionária para o sentido da colonização:

Essa relação entre as classes sociais constituintes da sociedade brasileira, ou melhor, essa luta entre as classes, é indispensável para a análise da formação brasileira, e está ausente na elaboração de Mazzeo. Sem ela, se torna impossível construir uma alternativa estratégica revolucionária para a superação do sentido da colonização do capitalismo brasileiro que se mantém até os dias de hoje. É neste sentido que queremos agora entrar em um debate sobre como a análise de Mazzeo entra em contradição com a construção de uma perspectiva programática para este fim revolucionário, e qual a influência do pensamento lukacsiano nessa questão.

Apesar de Mazzeo, ao final do livro, chegar à conclusões da impossibilidade de uma “revolução por etapas”, com a burguesia nacional cumprindo as tarefas democrático-burguesas, ao contrário do que consideravam seus camaradas do Partidão durante a maior parte do século passado, ele o faz sem analisar justamente a formação do sujeito revolucionário (classe operária, herdeira da luta negra contra a escravidão), e sem fazer um balanço sobre as razões pela qual seu partido tomou essas posições tão equivocadas de buscar sempre uma burguesia nacional para supostamente desenvolver um capitalismo autônomo no país e romper com o status de semi-colônia.

Para o autor, a razão destes erros eram parte da importação de um pensamento de viés positivista que influenciou o marxismo sulamericano. Esta análise entretanto, em seu primeiro ponto correta, retira todo o papel que as bases materiais da burocratização da Internacional Comunista e da teorização do “socialismo em um só país” de Stalin e Bukharin tiveram para a formação destas teses esquemáticas e anti-marxistas da “revolução por etapas” (retomando a posição dos mencheviques, que se provou incorreta na Revolução de Outubro), institucionalizadas entre o V e o VI Congresso da IC. Nesse movimento, evidentemente, é apagada toda a batalha da Oposição de Esquerda (inclusive as teorizações de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e da LCI) liderada por Trotski contra a degeneração da estratégia marxista revolucionária que levou 1917 ao triunfo.

Tal percurso é similar ao feito por Lukács, que entrou nos círculos pecebistas justamente após a crise do stalinismo brasileiro após o racha do PCdoB em 1962 e após a posição pacifista e de reboque à burguesia nacional do PCB frente ao golpe de 1964. O filósofo húngaro, apesar de ser (parcialmente) crítico ao dogmatismo esquemático do stalinismo, e nesse sentido contribuindo com importantes elaborações filosóficas sobre a dialética (como em História e consciência de classe e Ontologia do ser social), foi incapaz de apresentar um programa e estratégia revolucionários para superar a burocratização que acabou com a restauração burguesa nos Estados operários. Não à toa, a posição militante de Lukács, membro do PCHúngaro, foi totalmente adaptada às políticas e orientações do Kremlin, inclusive na Revolução Húngara de 1956, em que a URSS reprimiu à ferro e fogo os trabalhadores e estudantes que lutavam por uma de fato planificação democrática da economia.

Em Lukács essas contradições se expressaram também no plano teórico, em que o mesmo busca fazer uma “volta à Marx”, voltando à Hegel, para compreender o movimento dialético e pensar uma nova ótica da práxis revolucionária; entretanto, como já dito, politicamente adaptado ao stalinismo. Desta forma, acabou por renegar toda a batalha viva, tanto no plano teórico quanto político e programático, do bolchevismo e da Oposição de Esquerda, bem como das Revoluções políticas que presenciou na Hungria em 1956 e Tchecoslováquia em 1968:

“De todo modo, o exame da obra de Lukács confirma que permanece imensamente mais fácil reproduzir os princípios formais do método dialético, do que encontrar na realidade as conexões determinantes ocultas e agir sobre as contradições da realidade num sentido marxista. Disso, dá mostra cabal o fato de que os “fanáticos da totalidade” (a começar por Lukács, porém incluindo alguns de seus discípulos mais empenhados) não souberam analisar a dinâmica dos acontecimentos históricos, e em particular da revolução em sua mecânica interna, a partir dessa totalidade contraditória composta pela economia, as relações interestatais e a luta de classes tomadas à escala mundial.” [16]

Este distanciamento entre a elaboração teórica para uma práxis revolucionária consequente, ainda que, certamente, uma seja determinante sobre a outra, é comum tanto na obra e militância de Lukács quanto na maioria de seus seguidores.

De forma parecida se dá a obra de Caio Prado Júnior. Se por um lado, como Mazzeo reivindica, há uma sublevação [17] da teoria caiopradiana em relação às esquemáticas teses do PCB, por outro, suas conclusões políticas em relação ao sentido da revolução brasileira vão no completo oposto. Para o pecebista, a superação do sentido da colonização seria através de um desenvolvimento de bases nacionais do capitalismo no Brasil, através da industrialização e do fomento ao mercado interno, via o próprio Estado burguês, relegando à classe operária brasileira um papel de apoiar setores progressistas da burguesia. Dessa forma, acaba por adaptar-se à estratégia original e oficial do partido de submissão do proletariado à burguesia, ainda que partindo de diferentes premissas teóricas:

“Apesar dos desacordos entre Caio Prado Jr. e o Partido Comunista Brasileiro, ambos compartilhavam um acordo estratégico superior a todas as diferenças: a caracterização do Brasil como país não-maduro para a revolução socialista. O PCB apoiava sua política no tradicional etapismo menchevique, e para Caio Prado Jr. recai o mérito de desenvolver uma espécie de “etapismo sui generis”, onde o Brasil encontrava-se na etapa de superação de seu passado colonial, à qual deveria seguir-se a de desenvolvimento capitalista ancorado em solo nacional, e somente em um futuro longínquo encontrava-se a possibilidade do socialismo.” [18]

Como não poderia ser diferente, essas questões se refletem nas posições políticas do próprio PCB durante o momento de elaboração da obra (sendo a primeira edição lançada em 1989), com uma forte disputa interna que levaria ao surgimento do PPS em 1992, um partido que rumou para às vias de um partido burguês de direita. E os que se mantiveram no PCB e propostos à “reconstruí-lo”, rumaram também para o caminho da conciliação de classes, submissos à burguesia nacional e consequentemente à burguesia imperialista, com exemplos de coligações em frentes burguesas, como a de Almir Gabriel (PSDB) no Pará em 1994 (governador responsável pelo massacre de Eldorado dos Carajás de 1996), ou a própria composição no governo federal burguês de Lula-Alencar até 2005.

Para concluir, partimos por reivindicar os esforços na busca de uma compreensão profunda da formação social brasileira; entretanto, ela deve ser parte de uma busca para a superação da situação de colônia e semi-colônia do Brasil, como início da superação de todo o sistema capitalista. Isso não pode ser feito sem enxergar o desenvolvimento da classe operária brasileira como central para a formação reacionária e covarde da burguesia nacional, e como a questão negra está intimamente ligada a isso e se torna uma tarefa central para os revolucionários em nosso país. Nesse sentido, acreditamos que as contribuições do trotskismo, como resgate dos fios de continuidade do marxismo revolucionário e do bolchevismo, e de conceitos como a teoria do desenvolvimento desigual e combinado ou bonapartismo sui generis podem nos ser muito úteis. Para esta tarefa, portanto, é imprescindível fazer um balanço das posições e elaborações do PCB até os dias de hoje, e isso passa por romper com o passado do stalinismo e da burocratização da URSS que representou uma enorme derrota aos que almejam por uma nova sociedade; nisso o lukacsianismo tem se mostrado incapaz de fazer, bem como a outra ala do PCB que hoje reivindica uma Reconstrução Revolucionária, questão que já debatemos aqui e em outros artigos.


[1MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. Boitempo Editorial. São Paulo, 2015. pp. 19

[2Idem. pp. 56

[3TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. 1v. A Queda do Tzarismo. Brasília: Edições do Senado, Cap.1, 2017 [1930]. pp. 34

[4Idem 1. pp. 77 e 78

[5Idem 1. pp. 105

[6XAVIER, Lívio; PEDROSA, Mário, Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil In: ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs). Na Contracorrente da História - Documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo, Editora Sundermann, 2015. pp. 63

[7ALFONSO, Daniel Angyalossy. Caio Prado Júnior e a gênese do marxismo reformista no Brasil. In: Revista de teoria e política marxista. Edições Iskra. São Paulo, 2008. pp. 82)

[8Idem 1. pp. 107

[9Idem 1. pp. 113

[10Karl Marx, Storia delle teorie economiche - Ricardo. Einaudi. Turim, 1955. pp. 373, v. II

[11BRANDSCH, Noah. Palmares e o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo brasileiro. Esquerda Diário, 2023

[12Idem 6

[13Idem 6. pp. 68

[14TROTSKY, Leon. La industria nacionalizada y la administración obrera. CEIP León Trotsky [1939]. Tradução minha

[15ALFONSO, Daniel; MATOS, Daniel (orgs.), Questão negra, marxismo e classe operária no Brasil. São Paulo, Edições Iskra, 2013., pág. 9

[16SALLES, Edison. Lukács e o Stalinismo. In: Revista de teoria e política marxista. Edições Iskra. São Paulo, 2008. pp. 53

[17Idem 1. pp. 127

[18Idem 7. pp. 79





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