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Análise | Identidade e diferença: Lula e os governadores de extrema direita Tarcísio e Castro

Queremos nesse artigo contribuir para reflexão sobre as impossibilidades de construção de sistemas hegemônicos no Brasil atual examinando particularmente as relações entre o governo Lula e os governadores de extrema direita dos importantes estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

Leandro LanfrediRio de Janeiro | @leandrolanfrdi

sábado 18 de novembro de 2023 | Edição do dia

“Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras” (Heráclito de Éfeso, cerca de 540AC)

O discurso político de reviver o fenômeno político do lulismo esconde como se trata de uma empreitada não somente impossível, como enganosa. Não somente as águas de hoje não são as mesmas de ontem, como o próprio leito do rio e suas margens, curvas e obstáculos são muito diferentes do que eram. Parlamentares de PT, PCdoB e PSOL e as burocracias sindicais e dos movimentos sociais repetem a diferença de Bolsonaro e Lula enquanto ocultam as identidades e continuidades. Por outro lado, contentar-se com a determinação de qualidade que “são governos burgueses”, “governam para o capital”, perde as diferenças e quantidades e assim, por meio de dois procedimentos não dialéticos, não se nota a interdependência e determinação mútua entre identidade e diferença.

Queremos nesse artigo contribuir a reflexão sobre as impossibilidades de construção de sistemas hegemônicos no Brasil atual examinando particularmente as relações entre o governo Lula e os governadores de extrema direita dos importantes estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

Danilo Paris examina esse lulismo sem capacidade de construir um sistema hegemônico, que se constrói em meio a um regime que mantem suas degradações desde o golpe de 2016, como um “lulismo senil”. Em miúdos, significa pensar que apesar da estabilidade atual alentada por condições políticas e econômicas - não duradouras - o agronegócio, as lideranças bilionárias e reacionárias das igrejas evangélicas, nem mesmo o STF, se subsumirão debaixo de um mesmo hegemon pois sequer compartilham um mesmo projeto de país. Tudo isso é agravado por uma situação internacional que tem a Guerra na Ucrânia, o massacre colonialista de Israel e crises de regimes políticos com também suas próprias impossibilidades hegemônicas e chances de vitórias eleitorais da extrema direita na Argentina e nos EUA para bagunçar ainda mais o terreno daqui.

Evidentemente há diferenças de projeto político entre Lula e Bolsonaro, ou mesmo Lula e Tarcísio e Castro, mesmo que todos sob a qualidade “capitalista”, é diferente como Lula tenta conciliar interesses imperialistas com capitalistas nacionais e ao mesmo tempo que promovendo seus lucros tentar criar (ou ao menos mostrar) intenção de aumentar o poder de compra da classe trabalhadora, projeto diferente da terra arrasada Bolsonarista por exemplo.

Indo mais ao concreto do tema do artigo, nem Lula nem Dilma tinham governadores de extrema direita em dois dos principais estados do país. Em São Paulo, tínhamos a direita tradicional tucana, hoje coparticipe do governo federal via Alckmin, e no Rio tínhamos os aliados Cabral e depois Pezão. Tarcísio à diferença de Castro tenta se postular como uma liderança para 2026. Apesar desta flagrante diferença vale ressaltar que até mesmo o partido “Republicanos” de Tarcísio tem ministros na Frente Ampla de Lula-Alckmin. Quais os perfis políticos e bases de apoio de cada um deles e como se relacionam com o governo Lula?

Tarcísio e Castro, identidades e diferenças com Lula e Bolsonaro na “segurança”

O ex-ministro de Bolsonaro ganhou as eleições com o apoio do reacionário ex-presidente, elegendo-se em todo interior paulista, perdendo na Região Metropolitana de São Paulo, e alguns poucos municípios do Estado, o mais notável do interior sendo Araraquara (governada pelo PT). Assumindo a gestão o governador tem feito de duas pautas suas principais bandeiras, privatizações e promover chacinas policiais.

O governador paulista de extrema-direita, à diferença de Bolsonaro não coloca em primeiro plano temas de “costumes” ou “meio-ambiente”, mas tenta se postular como mão-dura contra as massas pobres e negras e contra os trabalhadores, tenta aprofundar os ataques aos trabalhadores de um Guedes para ser uma Thatcher do Palácio dos Bandeirantes. O ganho de letalidade da polícia paulista a coloca ao tom da carioca de Castro ou da petista na Bahia. A diferença de discurso sobre a segurança pública é mais em relação ao governo federal do que as administrações bahianas do mesmo partido. Se nenhum deles hoje fala em “mirar na cabecinha e atirar” como fazia Witzel no Rio, todos eles promovem saltos históricos na repressão policial cotidiana e nas operações sanguinolentas.

Qual a postura do governo federal diante desta situação sobre a violência policial? Contribuir política e materialmente com os governadores sem aparecer politicamente comprometido. A operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em curso em Santos, Guarulhos e no Rio de Janeiro, bem como o envio da Força de Segurança Nacional (FSN) ao Rio para atuar junto com as Polícias Federal e Rodoviária, complementam o incentivo financeiro do governo Lula às forças de segurança e a novas prisões de segurança máxima, privatizáveis inclusive para que capitalistas lucrem com negros acusados de tráfico e presos sem julgamento – como é parcela considerável da população carcerária brasileira. Ao realizar essa GLO e o envio de recursos e da FSN, Lula reforça que o problema é falta de fuzis, falta de repressão, dá um apoio político “de fora” aos governadores, preservando-se para criticar “excessos”, mesma postura que tem seu governador da Bahia que discursa sobre os “excessos” da PM como se não a controlasse.

Essa identidade e diferença é mutuamente benéfica. Para Castro e Tarcísio aparecerem como quem estão implementando a mão-dura lhes confere um capital político próprio. Para Lula, por outro lado, conceder à bancada da bala é funcional na composição de maioria parlamentar, e ainda pode explorar politicamente ao mostrar sua atuação e equipamentos, ao passo que pode tentar mostrar que teria uma “abordagem diferente”, de “inteligência”, quando na prática não há diferença. Poupa-se do desgaste e fica com os bônus.

A identidade parcial de Lula com Tarcísio e Castro neste quesito pode ser demonstrada também pelo passado: todo auge da população carcerária começou em seus governos e foi debaixo de seu sistema hegemônico que se fortaleceu a “bancada da bala” que depois, sob as novas condições políticas quis alçar seus voos próprios. Foi também debaixo dos governos de Lula que começou a ocupação do Haiti, coordenada por militares brasileiros que fizeram “escola” de como intervir na situação política de um país para depois implementarem seus desígnios junto a Bolsonaro.

Identidade e diferença na relação com as privatizações e movimento operário

Castro já não tem o que privatizar no Rio. Tudo que era privatizável o foi nos governos tucanos dos anos 90 ou por ele nos últimos anos, como é o caso da CEDAE, movimento que contou com o inestimável apoio do ex-presidente da ALERJ, André Ceciliano, do PT. Já Tarcísio ainda tem a CPTM, o Metrô e a Sabesp ainda no rol de privatizáveis. Sua ofensiva inclui aspectos midiáticos de martelada na Bovespa mas passa também por demissões políticas de metroviários, avanços na terceirização enquanto ao mesmo tempo enfrenta uma crise devido ao terrível serviço da espanhola Enel, concessionária de luz, que deixa paulistanos sem luz devido a seus cortes de pessoal para maximizar seus lucros. A crise é de tal monta que até o prefeito de SP, que apoiou Bolsonaro e Tarcísio nos segundos turnos de 2022, solicita o cancelamento do contrato de concessão.

A intenção de Tarcísio não é somente de garantir maiores lucros a capitalistas aliados com as privatizações mas de quebrar a resistência de algumas das categorias mais organizadas e com mais direitos em todo país, para assim armar seu discurso presidencial. Essa ofensiva dele não encontra o mesmo eco no plano federal, que se diferencia mostrando volta e meia alguma reunião com burocracias sindicais da CUT e outras centrais e mostrando como não tem promovido novas privatizações (para além do metrô de BH e de unidades da Petrobrás já colocadas à venda por Bolsonaro). Essa diferença porém é complementada por uma quantidade de identidade, já que Tarcísio se apoia no novo PAC de Lula, que inclui PPPs (privatizações sob outro nome) e conta com generoso financiamento do BNDES para sua ofensiva.

No plano da educação Tarcísio se destaca pelos ataques aos professores e Castro por pagar o pior salário do país. Enquanto o primeiro faz isso por opção política explicita o segundo culpa o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que segue intacta sob Lula e com possibilidade de expansão à Minas Gerais. A temeridade da educação sob Castro e Tarcísio fazem as continuidades de Lula no Novo Ensino Médio parecerem um “mal-menor” diante das alternativas da extrema-direita.

Da diferença a emergência do oposto

Apesar das identidades as diferenças são grandes demais para que Lula e Tarcísio ou Lula e Castro se tornem aliados, para isso acontecer, mais pensável no caso do segundo toda uma mudança radical em bases de apoio políticas e parlamentares teriam que acontecer e isso não poderia acontecer sem alguma solução aos problemas fiscais do Rio, o que também não é fácil de fazer sem melar a imagem do governo federal. Sem converter o diferente em aliado, menos ainda é pensável uma capacidade hegemônica. Não é pensável hoje por hoje isso. Sendo assim, logicamente, deveriamos pensar que o centro da tática política petista em um e outro estado estaria no desenvolvimento da oposição, mas está?

No plano político o PT já anunciou seu apoio a Boulos do PSOL a prefeito de São Paulo, e tenta mostrar a diferença, porém dentro dos marcos da identidade de não cortar fortes laços com o empresariado, até mesmo o sionismo. Já no Rio o PT já anunciou Freixo (ex-PSOL) de vice do direitista Paes para governador em 2026. No lugar da extrema-direita, postular uma outra direita e é raro encontrar críticas petista a Castro que se especula como candidato a senador neste chapão que iria de Lula às fronteiras do bolsonarismo.
No terreno da luta de classes há maiores possibilidades, mas é importante remarcar também os limites presentes. Evidentemente a ofensiva anti-operária de um e outro encontram resistência sindical, e, ela é o ponto de partida para efetiva superação de qualidade para permitir emergir o oposto de Castro e Tarcísio e não meramente o diferente Lula. Um oposto que seria um movimento operário independente dos governos, que incentive a frente única operária, que aponte os limites das burocracias sindicais e faça aparecer a espontaneidade operária tão necessária para as batalhas desta monta.

Essa resistência operária e sindical foi expressa em plebiscitos populares (como em SP) ou em greves como ocorreu primeiro na educação do Rio e depois em escala muito mais impactante nas categorias estatais de SP e com nova data marcada agora incluindo professores para o fim de novembro. Porém essas greves, conduzidas debaixo dos limites da Frente Ampla e por correntes que as apoiam (sejam do PT, do PCdoB ou PSOL) não escaparam justamente da utilidade política mútua nesse jogo dialético de identidade e diferença. Castro pode se mostrar honrando a RRF, Lula e Haddad mostrarem como são responsáveis gestores do capital e não rasgarem a RRF, ao passo que mostram-se diferentes e querem dar maior peso à educação (mas mantendo intacto o cerne do Novo Ensino Médio) e a maioria das correntes no sindicato de professores do Rio (SEPE) se contentarem em protestar discursivamente mas aceitar as duas limitações a seu movimento.
Em São Paulo a oposição a ofensiva de Tarcísio, sem um plano de luta efetivo e sem batalhar para superar as burocracias da CUT e UGT coloca o movimento aquém de seu potencial e serve tanto para Tarcísio para apontar o dedo aos sindicalistas como serve para o PT mostrar sua diferença e fazer campanha, ao passo que continua auxiliando PPPs. Há identidade na diferença.

Apontando esse jogo, o artigo tenta continuar em outro terreno na batalha do Esquerda Diário e do Movimento Nossa Classe para construir a consciência e a organização na base das categorias em luta que permitam avançar essa quantidade de diferença em uma qualidade superior e superadora de um movimento operário classista e pautado na auto-organização para assim enfrentar os capitalistas e seus governos.




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