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Cuca no Corinthians: uma mancha maior do que futebol

Rafael Barros

Cuca no Corinthians: uma mancha maior do que futebol

Rafael Barros

O final do mês de abril no esporte brasileiro foi chacoalhado pela contratação de Cuca no Corinthians. O caso de sua condenação por estupro na Suíça nos anos 1980 veio a tona como não havia antes em sua carreira, mas a resolução do caso, com o próprio Cuca pedindo demissão por “não aguentar a pressão” não satisfez boa parte das torcedoras e das pessoas nem tão ligadas ao futebol que se revoltaram o caso. Entender o porque é importante para chegarmos em conclusões que avancem a luta das mulheres não só dentro do esporte, mas fora dele também.

Para entrarmos neste debate é importante partir de uma primeira ideia: o Futebol, assim como outras expressões culturais e artísticas – em especial as de massas – é um espelho da sociedade que vivemos. Nele vão estar impressas as contradições do capitalismo. Parece besteira, mas retomar a velha máxima de que “futebol e política não se separam” é importante para entendermos não só o motivo da contratação de Cuca ter gerado tanta revolta, mas também o motivo de tanta demora para que a revolta com ele aparecesse; o motivo do desgosto com Cuca ser muito maior que um clube ou o próprio futebol; e, também, o motivo da resolução da história não ter satisfeito quem decidiu gritar contra um condenado por estupro treinando um dos maiores times de futebol do país.

Não é de hoje que podemos ver expressões das lutas sociais e das contradições do capitalismo no esporte. Desde seu surgimento, na Inglaterra, o futebol foi palco da disputa do controle das competições entre os burgueses donos das fábricas contra os times operários, que se popularizavam e ameaçavam o domínio burguês nas competições. E, se o futebol na Inglaterra surge pela burguesia, no Brasil, ele se desenvolve predominantemente de times de operários, criados como forma de lazer da classe trabalhadora. No entanto, hoje em dia, falamos do esporte mais popular do mundo, e que já não remonta mais às origens operárias, mas configura uma grande máquina lucrativa para cartolas, dirigentes, sheiks e burgueses de todo o tipo. Uma indústria de bilhões. Entender esta localização – que não é exclusiva do futebol, mas pode ser transposta em diferentes medidas para qualquer esporte de massas – ajuda a entender por que dentro do ambiente do futebol há um predomínio de expressões reacionárias. Afinal, confederações, federações e clubes de futebol são comandados por aqueles que não compartilham dos interesses das massas que amam um esporte, acompanham seu time fielmente, e que vivem o esporte com intensidade como parte apaixonante de seu lazer. Muito pelo contrário.

Mas, se essa relação do esporte com a sociedade e a sua forma atual explica em parte como Cuca, de 1989 (ano de sua condenação na Suíça) até 2023, jogou e trabalhou em praticamente todos os grandes clubes do Brasil, não explica completamente. Afinal, como jogador Cuca passou por Grêmio (time em que jogava no ano do caso, e clube que por sinal forneceu advogados de defesa para ele e os outros 3 jogadores envolvidos), Internacional, Palmeiras, Santos, Portuguesa, e como treinador comandou, entre 1998 e 2023 o São Paulo, Grêmio, Flamengo, Botafogo, Santos, Fluminense, Cruzeiro, Atlético Mineiro, Palmeiras, e mesmo que por dois jogos, o Corinthians, além de outros 14 times.

Vale lembrar que nos anos 80 a cobertura midiática brasileira tratou o caso de forma absurdamente conivente. Por um lado tratando os estupradores como “jovens inconsequentes”, e por outro, abordando o caso de estupro de uma garota de 13 anos como um mero “exagero”, e até em alguns casos tratando os quatro envolvidos como “heróis” do julgamento de Berna. Claro, entre os anos 80 e 2023, o avanço na luta das mulheres não permite que um condenado por estupro treine um clube de massas sem revolta. Em 2021, quando Cuca assumiu o Atlético Mineiro pela segunda vez, se escutou mais barulho por parte das torcedoras. Afinal, no ano anterior havia vindo à tona o Caso Robinho, e Cuca, por sinal, foi um dos defensores do ex-jogador, também condenado em primeira instância na época, na Itália. Mas, isoladas (inclusive de repercussão midiática), o grito das atleticanas foi silenciado pela diretoria do clube, e os resultados positivos “apagaram” o passado de Cuca em nome do primeiro título brasileiro do Atlético desde 1971. A diferença entre 2021 e 2023 pode ser explicada também pela diferença entre os clubes. Ou melhor, entre traços históricos das torcidas dos clubes. Afinal, além de mais repercussão nacional (o Corinthians tem cerca de 30 milhões de torcedores contra 4,5 milhões do Galo), a torcida corinthiana é mais identificada historicamente com pautas sociais. Foi a primeira torcida do Brasil a levantar bandeiras contra a ditadura, muito influenciada pelas lutas estudantis em São Paulo aliadas às lutas operárias contra o Regime Militar. Foi uma torcida que se engajou na luta dos negros nos estádios, e dentro de campo. Que levantou bandeiras contra a “máfia da merenda” de Geraldo Alckmin. E que abraçou o avanço do futebol feminino no Brasil com públicos recordes. Claro, a torcida de clube algum é “apenas mais de esquerda” ou “apenas mais de direita”. Há de tudo, não a toa, em enquetes virtuais com mais de 30 mil votantes, a torcida corinthiana dava cerca e 70% de aprovação à Cuca. E mesmo assim as vozes de torcedoras e torcedores do Corinthians, e até de rivais, que não aceitariam Cuca ali, não se calaram. Diferente de outros momentos, também, a mídia burguesa repercutiu o caso com mais atenção. E portais setorizados do clube trouxeram a tona declarações da defesa da jovem vítima, da justiça suíça e de jornalistas que cobriam o caso na época, desmentindo as alegações de Cuca e as mentiras que ele proferiu em sua apresentação no Corinthians.

No entanto, a saída de Cuca do Corinthians não pode ser atribuída à luta de torcedoras e torcedores que fizeram o que podiam no momento. Até porque a maior torcida do clube, e a maior organizada do país, a Gaviões da Fiel, foi a única torcida organizada alvinegra a não se posicionar contra Cuca, e deixou desarmado o próprio grito de oposição da torcida corinthiana. Gerou revolta nas torcedoras filiadas à Gaviões, que protestaram também contra a direção da organizada. Mas a imagem da estreia de Cuca na casa do Corinthians, quando após a classificação nos pênaltis, os jogadores vão até Cuca, em um gesto de “estamos com você”, deixou uma marca profunda. Especialmente quando se pensa que três dias antes, o time feminino do Corinthians protestou, ainda que de forma velada, por conta da repressão interna, contra a hipocrisia da diretoria alvinegra com o lema #RespeitaAsMina.

Cuca não saiu demitido porque a torcida não o permitiu treinar. Cuca saiu por conta própria porque a cada dia se tirava do baú uma nova informação que fortalecia ainda mais sua condenação por estupro. E o fato de sua saída ter sido “decepcionante” para o presidente do clube e para muitos jogadores, deixou quem lutava contra o treinador com um sentimento amargo. De que Cuca saiu, mas uma mancha foi deixada, não apenas na história do Corinthians, mas na história do esporte, e na história da luta das mulheres dentro do esporte.

Há pontos de apoio para que a conclusão após a saída de Cuca seja apenas de decepção? Como a partir dessa repercussão, pensar por onde podem avançar a luta das mulheres, dos negros, dos LGBTs no esporte, e na sociedade como um todo? O caminho talvez seja partir do mesmo ponto em que começamos: o Futebol e a política não se separam.
Como se expressa na arte e na cultura, o futebol é um espelho das contradições da sociedade capitalista. Carrega seus elementos mais atrasados, mas também pontos de apoio importantes para nos ensinar como transformá-los. Se neste caso o espelho da sociedade que se mostrou foi o de lado mais reacionário, isso não quer dizer que o esporte está bloqueado das expressões das lutas dos setores oprimidos contra este mesmo reacionarismo. Basta lembrarmos de momentos em que isso se expressou recentemente. Em 2020, alguns meses após o assassinato de George Floyd, os jogadores da NBA se recusaram a entrar em quadra em protesto contra um novo caso de violência policial. O fato repercutiu internacionalmente, e mostrou a força da luta do Black Lives Matter dentro de um esporte altamente institucionalizado e de comando extremamente reacionário, mas majoritariamente negro. Lembremos também da presença das torcidas organizadas de Colo-Colo, Universidad de Chile, Católica e do Palestino na revolta chilena em 2019. Dos protestos de torcedores contra a realização de partidas enquanto houvessem presos políticos. Ou mesmo da greve dos jogadores e clubes argentinos contra a privatização dos direitos televisivos do futebol em 2017. Voltemos mais no tempo, para os anos 70 na Inglaterra, quando as torcidas de Liverpool e Manchester United se colocaram lado a lado com os trabalhadores ingleses na luta contra Margareth Thatcher, o que depois deu início a longos anos de repressão as torcidas inglesas.

Todo esse resgate serve para lembrar: a luta de classes também afeta o esporte, e o avanço de certas pautas dentro dele vai sempre estar intimamente ligado ao seu avanço na sociedade de conjunto. Ele não é isento de suas expressões, e da mesma forma que a burguesia internacional teme a luta de classes, a burguesia que controla o esporte também teme, porque sabe muito bem que expressões em favor das lutas dos setores oprimidos e da classe trabalhadora também podem encontrar no esporte força para se propagar em setores de massas.


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