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Decolonialidade e questão negra: “giro epistemológico” ou comunismo?

Renato Shakur

Decolonialidade e questão negra: “giro epistemológico” ou comunismo?

Renato Shakur

O 13 de Maio é uma data especial porque significou a derrubada do sistema escravista brasileiro pelas mãos dos trabalhadores escravizados e livres. Ela é uma da histórias que explicam que o negro dócil não passa de um mito burguês. Grande parte da juventude adora conhecer e ler sobre as histórias fantásticas da luta do nosso povo pela liberdade e acertadamente não querem nem ouvir falar daquelas recheadas de preconceito ou que colocam o negro como mero expectador dos processos históricos, as histórias dos livros dos capitalistas. No último período vem crescendo a importância nas universidades e meios acadêmicos da teoria decolonial que propõe um “combate” ao eurocentrismo e racismo através do “giro epistemológico”, se colocando com uma corrente teórica que mostra a potencialidade criativa dos subalternos. Neste texto, vamos debater essas duas ideias fundamentais: 1. A teoria decolonial e subalterno como locus de conhecimento; 2. As implicações estratégicas da proposta do “giro epistemológico” nos dias atuais.

1. Marxismo e uma juventude radical

A primeira vez que ouvi falar que era possível ter uma disciplina na universidade repleta de autoras e autores negros achei essa ideia bastante interessante. Imaginem poder estudar durante um ou vários semestres as histórias das revoluções africanas, asiáticas, o Egito, a civilização swahili, o cinema senegalês, a cultura hindu e por aí vai. Seria incrível. Essa ânsia da juventude em conhecer a história e cultura dos povos subalternos e a inclinação em debater as ideias do comunismo é a expressão de que a barbárie capitalista não tem espaço nas mentes e nos corações do setor da sociedade que mais sonha com a transformação radical de tudo.

Por isso é bem comum olharmos para a universidade e nos indignarmos com a precariedade da estrutura, prédios abandonados, salas vazias, falta de programas para permanência estudantil, déficit de vagas nas moradias estudantis, falta de creche, restaurante universitário com baixa qualidade, etc, resultado dos ataques a educação no último período e o baixo investimento no ensino superior público. E nos indignamos mais ainda quando vemos nesses mesmos corredores estudantes, amigos e colegas de turma vendendo doces, salgados, café para ajudar no custeio com as despesas da universidade; nossa raiva aumenta quando vemos um batalhão de trabalhadoras negras varrendo, limpando, colocando a universidade para funcionar, com contratos precários, recebendo baixíssimos salários, às vezes nem sequer podem comer a comida do bandejão junto dos estudantes. É chocante também num país como o Brasil, ter programas inteiros sem ao menos uma professora negra. Essa é a cara cruel do racismo e do capitalismo brasileiro.

Bom, então não é pedir muito que pudéssemos estudar e conhecer as histórias de Dandara, Aqualtune, Luiza Mahin, Lélia Gonzalez, Harriet Tubman, Angela Davis e Maria Carolina de Jesus. Frente a todos os problemas que citamos, isso é o básico. É nessa esfera do programa político que reside a principal fortaleza e debilidade da teoria decolonial.

O objetivo central da teoria decolonial é o "giro epistemológico". O que é isso exatamente? Na medida em que os teóricos decoloniais como Ramón Grosfoguel, Boaventura de Souza Santos, Aníbal Quijano, por exemplo, colocam a questão transformação do capitalismo prescindindo de uma ação concreta, isto é, sem a necessidade da transformação das bases materiais da sociedade, as respostas ao racismo e capitalismo se concentram na transformação cultural e epistêmica. Os termos são distintos em cada um deles, mas tanto o “bem viver” de Quijano quanto a “ecologia de saberes” de Boaventura escolhem a resistência à colonialidade do poder nos marcos de ações e práticas no âmbito do conhecimento e epistemologia.

Como disse Marx e Engels no Manifesto Comunista, a burguesia precisou criar um mundo à sua imagem e semelhança e isso implica que todas as instituições burguesas tivessem sua marca, desde a filosofia, passando pela igreja indo até as instituições de ensino teriam que ter a cara de uma classe que emergiu politicamente traficando escravizados e com mãos manchadas de sangue negro. A primeira pergunta que temos que fazer é se é possível vencer a burguesia, como coloca Ramón Grosfoguel, a partir da afirmação do locus de enunciação dos sujeitos subalternizados negros, elaborando conhecimento contra-hegemônico a ponto de criar uma rede mundial de “justiça, igualdade e diversidade epistêmica” [1].

Obviamente a resposta é não, não é possível. E o 13 de Maio pode ser um bom exemplo de como apenas a produção de conhecimento crítico á colonialidade e modernidade, sem uma prática revolucionária não leva a lugar nenhum. Para nos deter em poucos exemplos, a força do Quilombo de Palmares não residia apenas nos conhecimentos sobre herbologia, caça, agricultura, etc, tampouco os palmarinos e palmarinas recorriam à fé para enfrentar as inúmeras expedições contra o quilombo. O Quilombo dos Palmares, assim como tantos outros, só pôde ser reconhecido por sua longevidade, porque os conhecimentos adquiridos em várias dimensões da vida daqueles negros aquilombados eram colocados à prova e testados na guerra contra os senhores, ou seja, a dimensão contra-hegemônica da resistência palmarina consistia na defesa, através da luta física, do território da Serra da Barriga.

A mesma reflexão cabe ao processo de abolição da escravidão. Não podemos esquecer que os debates parlamentares sobre o abolicionismo são cruciais. A história desse processo vitorioso da luta negra no Brasil não pode ser pensada sem uma Maria Firmina, muito menos sem os esforços políticos de um Luís Gama. Eles eram apenas a expressão mais ou menos fiel de um processo que ocorria na luta entre escravizados e senhores. Ou seja, o desejo do fim da escravidão que tanto Firmina expressava na sua literatura contra os racistas de sua época e os processos jurídicos e alforrias conquistadas por Luis Gama, só tiveram seu êxito final com o fim do sistema escravista, decidido no enfretamento entre escravizados e os senhores.

A insistência na ideia de separar o conhecimento e ação revolucionária não passa de puro anacronismo histórico. Zumbi já havia respondido isso, assim como tanto outros escravizados, se não fosse isso não comemoraríamos o 13 de Maio como a vitória do nosso povo.

Mas a ideia de que os negros podem produzir conhecimento crítico a hegemonia vigente também não é tão “nova” assim. A seção norte americana da Quarta Internacional Comunista desde sua fundação defendia isso, para eles os negros tinham

“o direito de participar da formação da ideologia de sua própria raça, com slogans e propaganda que correspondam ao desenvolvimento político e ao despertar revolucionário das grandes massas do povo negro” [2].

É nessa perspectiva que os comunistas encaram o papel revolucionário que o negro pode cumprir na luta contra o capitalismo. Quando eu dizia que a principal fortaleza da teoria decolonial também era também seu ponto fraco, queria dizer que essa corrente de pensamento como fruto da ofensiva neoliberal, vê o negro apenas como produtor de conhecimento, ou seja, assim como outras correntes burguesas teoriza sobre a passividade do negro no capitalismo e não o seu contrário. O pensamento decolonial, portanto, não pode ir muito além do que atender pequenos anseios. Ele é incompatível com o desejo de transformação latente na juventude, porque não estamos discutindo as coisas em abstrato, estamos falando de uma geração que sente a dor de uma trabalhadora terceirizada na universidade que está sem receber seu salário e que não vai poder botar comida em casa, estamos falando de uma geração que se interessa pelo comunismo e se pergunta: a revolução é possível?

Sem dúvida a resposta é sim. Mas antes mesmo de entrarmos nessa questão, gostaria de colocar outra questão: se a decolonialidade não pode responder aos anseios dessa geração, como podemos afirmar que o marxismo pode, ou seja, é a alternativa para a juventude?

Brietman respondeu essa pergunta de forma brilhante: uma teoria que parte dos explorados e oprimidos e que em relação ao negro pode radicalizá-lo [3], ou seja, o marxismo pode transformá-lo numa arma capaz de acabar o sistema capitalista. Trotski conseguiu adicionar um elemento a mais nessa formulação. Quando debatia a favor da posição de que os revolucionários deveriam defender o direito à autodeterminação dos negros nos Estado Unidos nos anos 30, não circunscrevia a defesa dessa demanda democrática ao desejo latente das massas negras em ter seu próprio estado, muito menos se os negros conformavam uma nação ou não. Trotski encarava a luta por um estado negro não como um fim em si mesmo, mas considerava a possibilidade do desenvolvimento de um processo revolucionário:

“...a realização dessa palavra de ordem pode ser conseguida somente se 13 ou 14 milhões de negros sentirem que a dominação dos brancos está acabada. Lutar pela possibilidade de conquistar um Estado independente é um sinal de um grande despertar moral e político”

Trotski apostava nas transformações políticas que a luta por um estado negro poderia abrir, colocando em movimento uma força imparável das massas negras revolucionária que não tendo mais medo dos brancos, não temeriam a tarefa histórica de expropriar a burguesia imperialista norte americana. Ademais, Trotski também queria dizer outra coisa, não havendo nenhum limite entre a conquista das demandas democráticas e a luta independente contra a burguesia, os negros podem sentir o comunismo na pele.

Em certo sentido era assim que Marx colocava a questão da luta pela abolição nos Estados Unidos, apostando no desenvolvimento da luta revolucionária dos negros pela liberdade e pelo o fim do sistema escravista:

“Se Linconl não ceder (o que, contudo ele fará), haverá uma revolução [...] Cedo ou tarde, me parece que uma guerra desse tipo deve ser conduzida de forma revolucionária, enquanto os ianques estão tentando até agora conduzi-la constitucionalmente” [4].

Até aqui vai ficando mais clara as diferenças e implicações estratégicas da teoria decolonial, e porque o marxismo deu tanta ênfase nas lutas dos negros e apostava no desenvolvimento revolucionário da própria identidade negra. Nós, os comunistas, enxergamos o potencial revolucionário do negro, o decolonial apenas recria uma caricatura passiva que nada tem a ver com as histórias que sempre conectaram a revolução e o negro.

Mas gostaria de insistir na questão inicial, será que é possível transformar radicalmente as ementas das cadeiras nas universidades, conquistar permanência estudantil, melhorar a infra-estrutura dos campis, incorporar as trabalhadoras terceirizadas ao quadro de funcionários sem necessidade de concurso público, conquistar o fim do vestibular, as cotas raciais proporcional ao número de negros no estado, barrar o Novo Ensino Médio com um simples “giro epistemológico”? Obviamente que não, mas devemos ser bem claros e objetivos, todas essas demandas sem exceção serão conquistadas por meio da luta.

Então, a jovem estudante que quer aprender a história, sociologia, filosofia, cinema desde uma outra perspectiva para além dos cânones e dos clássicos, expressa não apenas uma vontade de conhecer os povos indígenas, a contracultura, o orientalismo, as bruxas, etc, ela também expressa um sentimento de subversão profundo do conhecimento. E isso não se dá no vazio, só acontece porque o imperialismo lhe incomoda, o eurocentrismo mais ainda, o racismo e patriarcado são abomináveis, seu espírito de transformação é incompatível com o capitalismo. O que devemos dizer para a juventude é que bem lá no fundo de sua consciência tem um desejo de transformação radical da humanidade e só a perspectiva da revolução proletária internacional, o comunismo, pode dar uma forma concreta a seus desejos revolucionários.

2. Du Bois e a linha de cor.

Talvez W.E.B. Du Bois seja um dos sociólogos, para além daqueles tidos como clássicos, mais revisitados nos últimos tempos. Os estudos sobre branquitude, a decolonialidade, estudos afro diaspóricos e pós-coloniais, sem exceção, voltaram aos seus ensinamentos a fim de resgatar categorias ou conceitos, como o conceito de linha de cor, que dessem conta dos problemas referentes à raça, cultura e racismo desde os anos 1990. Em sua obra Almas da gente Negra, Du Bois inaugura uma maneira de conceber o racismo onde separa os elementos culturais dos econômicos, essa fórmula equivocada de encarar a opressão racista por fora da exploração capitalista que é tomada por diversos autores decoloniais é a fonte de alguns erros dessa corrente de pensamento.

Quando Du Bois definiu o que seria o conceito de linha de cor, ele olhava para o desenvolvimento do capitalismo e colonialismo desde o ponto de vista da questão racial a fim de apontar aquilo que alguns especialistas indicam ser um dos grandes aportes da sociologia dubosiana, a chamada modernidade racializada [5]. Essa categoria é resultado de uma série de estudos e reflexões de Du Bois ao longo de sua formação nos primeiros anos de sua vida acadêmica e militante. Segundo José Itzigsohn e Karida Brown, a linha de cor combina a análise histórica entre exploração do trabalho, classificação cultural e exclusão social. Se fôssemos tentar mostrar as correntes de pensamento e os intelectuais concernentes que o influenciaram nesse período até o momento onde escreveu pela primeira vez sobre a linha de cor, não poderíamos deixar de mencionar Hegel, Max Weber, William James e Gustav Schmoller.

Os dois últimos fizeram com que ele tivesse contato, respectivamente, com o pragmatismo e o empirismo indutivo. Com a primeira corrente Du Bois teve contato quando ingressou na universidade de Harvard entre 1888-1890, e foi importante na medida em que compreendia o conhecimento mediado pela individualidade, pela subjetividade, isto é, o racismo era compreendido a partir de sua própria experiência pessoal. A segunda corrente, onde teve contato na Universidade de Berlim, por onde passou entre 1892-1894, lhe serviu na medida em que tentava encontrar explicação para o racismo não nas condições biológicas, mas sim em condicionantes sociais e econômicos. Isso o ajudou a forjar na escola de sociologia de Atlanta o método de pesquisa quantitativa e qualitativa que ficou bastante marcado em seu estudo The Filadelfia Negro, publicado em 1899 e que esteve na vanguarda de combater o racismo “científico” estabelecido desde supostas bases biológicas.

Essas duas correntes de pensamento ajudaram Du Bois a desenvolver uma compreensão do racismo que em primeiro lugar não era resultado de uma suposta inferioridade biologicamente referenciada e em segundo lugar estava vinculada à maneira distinta que os brancos o identificava. Percebemos isso quando Du Bois escreve sobre como era sentir o racismo:

“Então me ocorreu, com uma certa urgência, que eu era diferente dos outros; ou talvez semelhante no coração, na vida, nos anseios, mas isolado do mundo deles por um imenso véu.” [6]

Para Du Bois a divisão do mundo através desse véu era estabelecida em um sentido cultural e histórico que somente poderia ser comprovado com os indícios extraídos da experiência particular do negro em relação ao branco. Nesse sentido, Du Bois pôde extrair da dialética hegeliana a conclusão de que a raça era uma construção histórica, e tinha íntima relação com o desenvolvimento do capitalismo e do colonialismo. Ou seja, na medida em que percebia pela própria experiência que as condições precárias da vida do negro eram resultado do tráfico de africanos e da escravidão, se deu conta que a raça não era inferior “naturalmente” e poderia por conta disso dar uma contribuição à história mundial.

Mas Du Bois deu ênfase demasiada na dimensão cultural referente ao racismo a ponto de supor que ela seria a marca distintiva do capitalismo. Como ele próprio remarca em sua autobiografia:

“Se não fosse pelo problema racial lançado sobre mim e envolvendo-me, eu provavelmente teria sido um adorador inquestionável no santuário da ordem social estabelecida e do desenvolvimento econômico em que nasci. Mas apenas aquela parte dessa ordem que parecia mais próxima da perfeição para a maioria dos meus companheiros, parecia para mim a mais injusta e errada; e a partir dessa crítica, aos poucos, com o passar dos anos, encontrei outras coisas para questionar em meu meio” [7]

Sua compreensão sobre o desenvolvimento do capitalismo retoma a influência de Weber, especialmente no destaque aos aspectos da cultura que ele vê na Ética protestante e o Espírito do Capitalismo. Não foi à toa que o próprio Weber numa correspondência enviada a Du Bois elogiava seu livro Almas da gente negra, segundo ele um “esplêndido trabalho” e insistia em traduzi-lo para o alemão [8]. O que está em jogo para Du Bois é a permanência da classificação racial como forma ordenadora da sociedade moderna e das subjetividades que derivam do racismo.

Eventualmente, Du Bois conseguiu criar, pela primeira vez conceitualmente, o que seria o “racismo cultural”, ou seja, a análise da raça enquanto uma construção histórica e social que é resultado da relação entre grupos sociais (antagônicos, a princípio) em determinado nível de desenvolvimento social e de produção. Para ele, a linha de cor é, portanto, o fundamento social pelo qual emerge e se desenvolve o racismo que passa a tomar vida em suas múltiplas dimensões, seja cultural ou econômica.

O problema dessa concepção teórica deriva não apenas das matrizes epistemológicas que Du Bois se baseou para desenvolver sua teorização da sociedade moderna. Seu ecletismo é a substância de uma concepção ideológica reformista que permeou sua vida militante.

Quando Du Bois desenvolve não apenas o conceito de linha de cor, mas também sobre a dupla consciência, ele concebia o problema do negro nos Estados Unidos do ponto de vista de sua integração no sistema capitalista, isto é, ele encarava a possibilidade do negro superar sua posição subalterna sendo paulatinamente incorporado ao sistema educacional universitário, como também na medida em que o estado ia lhe garantindo direitos sociais. Sua concepção, sem dúvida, se distanciava a de Booker T. Washington e do Tuskegee Institute que queria, segundo as palavras do próprio Du Bois, que os negros concentrassem “todas as suas energias na educação industrial, na acumulação de riqueza e na conciliação do Sul”. [9] Também estava bem distante de Marcus Garvey, outro militante com quem polemizou durante sua vida, que defendia um capitalismo negro dos negros da África e diáspora.

Du Bois mirava no Freedmen’s Bureau (Departamento dos Libertos) criado com o objetivo de garantir alimentação, educação, terras, etc, para os recém libertos no pós-guerra de secessão em 1865 que segundo ele se mostrou historicamente uma excelente tentativa para enfrentar os “amplos problemas de raça e de condição social” [10]. Entretanto para Du Bois, Booker T. Washington compreendeu “um espírito de época” e defendia um programa que rebaixava a condição do negro enquanto mão de obra barata na medida em que concilia os interesses dos ex-donos de escravizados no Sul e dos industriais do Norte. O que Du Bois propõe é justamente a inversão desses termos, ou seja, que o negro pudesse "participar" da nova nação não como pária, mas como cidadão:

“O crescente espírito de bondade e reconciliação entre Norte e o Sul, depois da terrível diferença da última geração, deve ser uma fonte de profunda congratulação para todos e especialmente para aqueles cujo ultraje causou a guerra [...] é dever dos homens negros julgar o Sul com discernimento. A atual geração de sulistas não é responsável pelo passado e não deveria ser cegamente odiada ou incriminada por causa dele [...] O Sul não é “sólido”; é uma terra fermentada pela mudança social, onde forças de todos os tipos estão lutando pela supremacia ; e louvar o mal que o Sul está perpetrando é tão errado quanto condenar o bem. O Sul necessita de crítica imparcial e abertamente –, necessita por causa de seus próprios filhos e filhas brancos, e pela garantia de um desenvolvimento mental e moral firme, sadio. [11]

A teorização de Du Bois segue dois caminhos, indicando a necessidade de obtenção de direitos políticos e sociais para os negros e outro da conciliação, defendendo a emancipação do negro no cenário da reconstrução através da aliança entre burgueses do sul e do norte dos Estado Unidos tomando esse programa de direitos sociais e políticos como seu próprio. Nesse sentido, compreender o racismo como uma barreira cultural, isto é, uma linha de cor e não como um instrumento de opressão e exploração, fazia como que Du Bois enxergasse a solução nas classes dominantes e não na força dos trabalhadores negros que haviam lutado por sua liberdade. Essa forma pragmática e esquemática de conceber o racismo na relação entre dois grupos sociais e não na relação entre duas classes antagônicas. Mas os burgueses jamais fizeram essa separação, porque sabem que a opressão racista é uma excelente forma de extração de mais-valia. Não à toa mesmo ano do fim da guerra civil, os setores classe dominante já haviam criado a Ku Klux Klan e em 1883 estabeleceram as leis Jim Crow.

Esse é o “pecado original" das correntes de pensamento que surgiram no bojo da ofensiva neoliberal dos anos 1990, a teoria decolonial apenas reconfigura a linha de cor proposta por Du Bois não mais em termos relativos aos grupos sociais branco e negro, mas sim a partir de determinações geopoíticas entre a “Europa branca” e a “América não-branca”. Esse equívoco teórico, leva a graves erros políticos e estratégicos como iremos abordar em seguida.

Quando Aníbal Quijano debate o desenvolvimento da hegemonia ocidental desde o surgimento do capitalismo na Europa e os choques entre a burguesia e as antigas classes dominantes, isso fica evidente:

“Esses enfrentamentos permitem aos setores não dominantes do capital – bem como aos explorados – melhores condições de negociar seu lugar no poder e a venda de sua força de trabalho. Por outro lado, abre também condições para uma secularização especificamente burguesa da cultura e da subjetividade [12]

E continua ele:

“Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia européia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento [13]

A conclusão a que chega Quijano leva a luta contra o racismo não apenas nos termos culturais e epistemológicos, reforçando a necessidade do “giro epistemológico", mas sobretudo de que o enfrentamento contra o racismo se dá no terreno da subjetividade humana. Assim como Du Bois alentava a possibilidade da integração do negro na sociedade capitalista, algo que nunca aconteceu, Quijano conclui algo similar estrategicamente, “vencendo” as questões culturais, o negro poderia “viver em paz” no sistema capitalista.

3. Decolonialidade e governo Lula-Alckmin

No capitalismo o negro nunca teve um dia só de paz. O dia 14 de Maio está aí pra provar que nunca houve uma tentativa de “assimilação” no negro no capitalismo brasileiro com direitos sociais, assim como previa Du Bois. Ao contrário disso, a precarização do trabalho e da vida foram e são até hoje o grande “dilema” social que a população negra precisa lidar diariamente. O que precisamos responder agora é outra pergunta, se a sociologia duboisia levava a uma prática reformista de confiar no imperialismo estadunidense para “resolver” as tarefas democráticas relativas à questão negra, a quem a teoria decolonial confia essa tarefa, já que, segundo seus próprios teóricos, a eles cabe apenas um mudança das prática e produções epistemológicas? O decolonial confia na Frente Ampla do governo Lula-Alckmin que reúne banqueiros, uma burguesia herdeira da escravidão e o agronegócio.

Aníbal Quijano chega a defender a descolonização do pensamento junto a “redistribuição do poder”:

"Em outras palavras, como uma redistribuição radical do poder. Isto se deve, primeiro, a que as “classes sociais”, na América Latina, têm “cor”, qualquer “cor” que se possa encontrar em qualquer país, em qualquer momento. Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada um dos âmbitos [...] Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política. [14]

Confiar que a democracia burguesa na América Latina vá "distribuir" seu poder, ou seja, abrir mão de sua localização de domínio enquanto classe dirigente é muito ingenuidade. Ou melhor, só uma corrente de pensamento que não confia na classe trabalhadora como sujeito da transformação social pode chegar a conclusões como essa. Não espanta nem um pouco que Boaventura de Souza Santos quando elabora sobre a "ecologia de saberes”, isto é, o acúmulo de práticas e conhecimentos desde o Sul Global até a conformação de uma “crítica radical da política do possível”, chegue a mesmas conclusões reformistas:

“Ao contrário do que acontece na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-clinamen não assenta numa ruptura dramática, antes num ligeiro desvio cujos efeitos cumulativos tornam possíveis as combinações complexas e criativas entre átomos, assim como entre seres vivos e grupos sociais [15]

Se o que defende Boaventura de Souza Santos e Aníbal Quijano é um desvio da luta revolucionária para canalização da insatisfação da população negra pela própria burguesia, os objetivos da frente ampla e o governo Lula-Alckmin se encaixam perfeitamente aí.

O que estamos tentando dizer é que o governo Lula Alckmin tem o objetivo de manter as reformas e ataques que foram feitos no último período desde o golpe institucional, como a reforma trabalhista, ou seja, a terceirização e precarização do trabalho que é atravessada fortemente pela questão racial são coisas inegociáveis para frente ampla, porque o trabalho precário e o racismo sempre foram a grande fonte de lucros da burguesia brasileira.

Ao mesmo tempo os inúmeros casos de trabalho análogo a escravidão no campo que não param de surgir mostram também que a política de Lula em negociar com o agronegócio, ao contrário de combater o bolsonarismo e práticas degeneradas como essa, só fortalece esses setores reacionários e racistas. Isso ficou ainda mais evidente quando Lula condenou as ações de ocupação de terras improdutivas feitas pelo MST, inclusive o ministro da Agricultura Carlos Fávaro chegou a comparar essas ações com o ato golpista de 8 de janeiro. Não foi à toa que a bancada ruralista após a condenação dessas ações prontamente abriu uma CPI contra o MST. Vale a pena lembrar que foi esse mesmo setor que durante os quatro anos do governo Bolsonaro se fortaleceu e é responsável pela crise humanitária que se abriu com os povos Yanomamis e as inúmeras invasões de terras quilombolas e indígenas, assassinatos de lideranças e ativistas que lutam pelo direito à terra.

Nesse mesmo sentido, quando o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida condena corretamente os ataques aos povos Yanomamis e os casos horríveis de trabalho escravo, inclusive propondo um “plano para erradicação do trabalho escravo”, ao mesmo tempo que o governo Lula-Alckmin se alia com o agronegócio, não passam de ações que não vão mudar absolutamente nada. Ao contrário, devemos nos perguntar que papel está cumprindo Silvio Almeida quando o governo que ele faz parte está aliado ao agronegócio, por exemplo, as ações do Abril Vermelho na Bahia condenadas por Fávaro, a bancada ruralista e o governo Lula, se concentraram nas terras da empresa Suzano Papel e Celulose responsável por invadir terras de quilombolas no estado.

No mesmo sentido podemos ver a política do PT regional e federal em relação a violência policial. Em Pernambuco, Lula apoia o governo de Raquel Lyra que anunciou um investimento de 200 milhões de dólares na polícia, justamente no estado onde 97% das pessoas assassinadas pela polícia eram negras. Na Bahia, o governo Jerônimo Rodrigues (PT) fez um investimento histórico de 70 milhões de reais para a repressão no Carnaval, justamente no estado onde 98% das pessoas assassinadas pela polícia eram negras. No Ceará, outro estado também governado pelo PT, o ministro da Justiça Flávio Dino anunciou que dará um cheque em branco para o governador Elmano de Freitas para investir na repressão, num estado onde a letalidade policial contra os negros chegou a 87%. Sem contar que Dino e a governadora do Rio Grande Norte, Fátima Bezerra (PT) autorizaram as tropas da força nacional e da polícia para reprimir os trabalhadores em meio a crise que se abriu com as facções criminosas da região.

Se a teoria decolonial diz para abandonarmos a revolução e confiarmos nas burguesias nacionais para "redistribuir o poder” no Brasil do governo Lula-Alckmin, significa que a precarização e terceirização do trabalho, o avanço do agronegócio sobre as terras dos povos indígenas e quilombolas e a perseguição a movimentos sociais de luta pelo direito à terra irão seguir acontecendo. Por isso, temos desde já não apenas que refutar essa corrente de pensamento, mas também combater de forma independente a frente ampla e os governos regionais que se aliam a ela, lutando pela revogação das reformas e ataques, mas também impulsionando em nossos locais de trabalho e estudo uma fortíssima campanha contra a precarização do trabalho e terceirização.


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FOOTNOTES

[1Ramon Grosfoguel, Decolonialidade e perspectiva negra, 2016, p. 21

[2Socialist Workers Party, Minutes and resolutions, p. 538

[3Marxism and Negro Struggles, George Brietman

[4Marx nas Margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais, 2019, p. 163

[5Du Bois: racialized modernity and the global color line, José Itzigsohn e Karida Brown, 2002. p19

[6Almas da gente negra, W.E.B Du Bois, 1903, p. 53

[7The Autobiography of W.E.B. Du Bois: a soliloquy on viewing my life from the last decade of its first century, 1968, p. 155.

[8W. E. B. Du Bois : uma leitura / Ana Carolina Santos do Nascimento, 2019, p.72

[9W. E. B. Du Bois, Almas da gente negra, 1903, p.107

[10W. E. B. Du Bois, Almas da gente negra, 1903, p.65

[11Idem, p.111-112

[12colonialidade do poder, eurocentrismo e américa latina, Anibal Quijano, p. 125

[13Idem, p.121

[14Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, p. 138

[15Boaventura de Souza Santos, Epistemologias do Sul.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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