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Machado de Assis, elites brasileiras e racismo: é possível uma frente ampla antirracista?

Renato Shakur

Machado de Assis, elites brasileiras e racismo: é possível uma frente ampla antirracista?

Renato Shakur

Machado de Assis talvez tenha sido um dos escritores mais críticos à escravidão e às elites brasileiras do seu tempo. Observar seus personagens e narrativas nos apontam a um caminho de entender historicamente e sociologicamente a formação social da elite escravista no Brasil, mas também as características fundamentais da burguesia brasileira, herdeira direta dessa elite reacionária e racista. Este artigo tem o objetivo de apreender as críticas de Machado de Assis à elite brasileira a partir de alguns extratos da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas e da crônica Bons Dias para analisar a burguesia brasileira e a Frente Ampla do governo Lula-Alckmin.

1. Brás Cubas e as elites brasileiras.

Em memórias Póstumas de Brás Cubas há uma crítica à elite escravista e à própria escravidão digna dessas notas. Ela se aproxima daquilo que Roberto Schwarz definiu em “Ao vencedor as batatas” como as ideias fora do lugar, isto é, um certo descompasso histórico e a acomodação entre as ideias liberais e um país escravista como o Império do Brasil. Essa definição mostrava como o trabalho escravo e livre em muito se diferenciavam dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade da revolução francesa, ou seja, as relações escravistas eram arcaicas, atrasadas em relação ao avanço político e filosófico do século XVIII. Além disso, Schwarz tentou recuperar uma definição caiopradiana do desenvolvimento do capitalismo brasileiro que mostrava como o capitalismo mundial definiu que desde a colônia, o Brasil estaria relegado a exportar mercadorias a Europa, dependendo do trabalho escravo de africanos e do tráfico transatlântico de cativos.

Entretanto, quando Schwarcz elabora essa definição, ele tem em mente uma compreensão de que essas ideias mais avançadas dos capitalismo mundial não estão em consonância com o que tinha de de mais atrasado culturalmente no mundo, como o sistema escravista e o tráfico de negros africanos. Mas ai está um erro, a famílias que enriqueceram com a revolução industrial inglesa eram traficantes de escravizados e a França que colocou de pé a primeira revolução burguesa também viu surgir em sua colônica a primeira revolução negra que colocou fim a escravidão, a revolução do Haiti. Ainda que houvesse uma diferença sensível a liberdade universal dos homens e a escravidão africana, a burguesia mundial soube.

Mas voltando a Machado, o personagem Brás Cubas é a expressão categórica dessas ideias fora do lugar. O nome do personagem remete aos dois últimos países a abolir a escravidão, “Bras” de Brasil que aboliu a escravidão em 1889 e “Cubas” de Cuba, que teve seu processo abolicionista consumado em 1888. A narrativa desse romance é justamente a memória de um personagem que já morreu, mas que mesmo depois de morto consegue contar suas histórias. Se levarmos em consideração que quando Machado escreveu esse romance cadavérico estava no calor do processo abolicionista, ele quer mostrar que o narrador, que representa os bastiões reacionários da elite escravista mundial, é uma alegoria de uma elite decrépita e parasitária que vive de escravizar negros. A forma inusitada de apresentar esse romance narrado em primeira pessoa por uma pessoa supostamente morta (a elite escravista) evidencia o tom bastante ácido da crítica machadiana em relação a escravidão, seguramente para ele as ideias não estavam apenas fora do lugar, na realidade elas já não deveriam existir. Não foi à toa que Brás Cubas inicia o romance dedicando suas memórias de Brás Cubas ao primeiro verme que roeu sua carne.

No entanto, Machado tenta dar uma explicação para tamanha persistência de práticas racistas e reacionárias que envolvem a instituição escravista. Podemos ver isso quando Machado de Assis revela a relação entre Brás Cubas e seu pai no capítulo “O menino é pai do homem”, Ele inicia esse capítulo com a seguinte sentença proferida por Brás Cubas: “Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos”. Obviamente que as práticas escravistas de natural não tinham nada, mas Brás Cubas que se apresenta como algo vivo do mundo natural, na realidade, incorpora não apenas o metabolismo de um corpo doente do século XIX impregnado pela escravidão, mas também a dinâmica social e ideológica que as elites brasileiras desenvolveram ao longo dos anos para que o racismo fosse tido como “natural” no capitalismo brasileiro.

Na virada do século XX, a burguesia brasileira precisou aprender com os ensinamentos das antigas elites escravistas, mas não só isso, precisaram ir além e mostrar, assim como mostrou Brás Cubas que o menino continuava a ser o pai do homem. Como Florestan Fernandes mostra na sua obra A integração do negro na sociedade de classes, a população negra no pós-abolição vivia um drama material e moral, havia sido relegada a sua própria sorte porque não conseguia ser assimiladada, segundo ele, a ordem competitiva por conta de fatores históricos e sociais.

“Onde a produção se encontrava em níveis baixos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação de sua situação econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semi ocupados da economia de subsistência do lugar ou de outra região” [1].

No pós-abolição, a precarização e o negro se tornaram quase que sinônimos. Para os efeitos dessa reflexão, esse quadro geral desenhado por Florestan nos anos 1960 não era apenas o resultado da não incoporação do negro ao mercado de trabalho, como ele afirmava, mas sim a dinâmica do desenvolvimento do capitalismo brasileiro que conjungou o racismo às péssimas condições de mordia, educação, saneamento, emprego e ao desemprego que acometem até hoje a população negra. Aí a burguesia brasileira herdeira da escravidão apoiada no racismo “científico” deu provas de que faria de tudo para garantir seus lucros a base de sangue e suor negro, relegando a esses trabalhdores as piores condições de vida, trabalho e salário. Essa é senão a “natureza” da burguesia brasileira. Brás Cubas diria que ela cresceu e se desenvolveu muito bem, assim como os gatos e as magnólias.

2. A racionalidade burguesa, o Prudêncio.

A trajetória de um outro personagem em Memórias Póstumas de Brás Cubas também pode nos ajudar a refletir sobre as elites brasileiras. O nome dele é Prudêncio, ele era um escravizado moleque (ou pajem). Sua função era “brincar”, “divertir” o filho de seu senhor. O moleque normalmente tinha quatro e doze anos de idade e cumpria essa função até estar apto ao trabalho, seja no ganho, na lavoura ou até mesmo na casa-grande. Prudêncio era neste caso o escravizado moleque de Brás Cubas que fazia questão de subir em cima dele e brincar como se fosse seu animal para montaria, como próprio Brás Cubas dizia, era “seu cavalo de todos os dias”:

“…punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!””

As peripécias de Brás Cubas não paravam por aí. Ele fazia de tudo um pouco, de beliscões em mulheres mais velhas a esconder os chapéus das visitas. Tudo isso lhe fazia uma criança com características peculiares, um “gênio indócil”, segundo Machado de Assis.

Uma vez, quando uma escravizada doméstica negou a ele uma colher do doce de coco que estava preparando, na mesma hora Brás Cubas, irritado, quebrou uma colher de pau em sua cabeça e não satisfeito com a galhofada, contou a sua mãe que a escravizada havia estragado o doce. Por isso era chamado desde os cinco anos de idade de “menino diabo”. Mas o que chama atenção em toda essa narrativa sobre a relação de Brás Cubas e os escravizados de um modo geral, não é apenas o fato que o “ar gaiato” do menino escondia o sadismo de uma família escravocrata. Tudo o que Brás Cubas fazia, sobretudo com os escravizados, recebia um duplo tratamento de seu pai que o repreendia na frente dos outros, mas quando estavam apenas os dois o agraciava.

Prudêncio aparece na trama poucas vezes, ora aconselhando Brás Cubas, ora sofrendo na mão do mesmo. Entretanto, o desfecho de sua trajetória é interessante. Prudêncio recebeu a alforria do pai de Brás Cubas dois anos antes da morte dele. Mas o que chama a atenção é que Prudêncio anda num caminho inverso ao da abolição, criando uma aparente contradição na própria trama, já que, como havíamos falado, nela está contida uma crítica ao sistema escravista brasileiro.

Bom, Prudêncio era livre para fazer o que bem entendesse. E, num belo dia, Brás Cubas avistou de longe um negro batendo em outro negro com um chicote. O homem que apanhava recebia as pancadas sem esboçar o mínimo de reação. Era Prudêncio castigando seu escravizado. Essa cena de fato pega o leitor de surpresa, porque ninguém esperava que depois de tanta maldade que fizeram com o pobre Prudêncio, ele quisesse descontar sua raiva em um escravizado e não no Brás Cubas. Entretanto, há coisas mais profundas na trama que indicam a uma explicação possível sobre o caso:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”

O leitor pode até supor que Machado compreendeu a manutenção do sistema escravista desde uma perspectiva individual e podemos dizer moral, já que Prudêncio decidiu escravizar outro negro. Por certo, a sociedade escravista dava pouca margem a um liberto ascender socialmente a ponto de ter dinheiro para comprar um escravizado, mas sem sombra de dúvida Prudêncio poderia lançar sua vida ao ganho, se jogar na luta abolicionista junto a quilombos ou em alguma revolta, mas preferiu comprar um escravizado.

Mas se engana quem acha que Machado quer dar ênfase a isso. Se observarmos com atenção seu nome, Prudêncio, podemos entender aonde Machado quer chegar com sua crítica. Prudêncio vem do nome em português prudência que é a virtude da sensatez, ou seja, Prudêncio não é nada mais nada menos que “O Sensato”, “O Ponderado”. Ele só pode ser assim aos olhos de Brás Cubas que tem tamanha satisfação ao vê-lo agredir um escravizado como se descontasse nele todas as barbaridades feitas por ele mesmo ao longo de uma vida inteira no cativeiro. O cinismo de Brás Cubas tentava esconder a degeneração da classe proprietária, mas também deixava escancarado como aquela elite via uma das maiores barbaridades da história mundial com extrema naturalidade.

A ironia contida em relação à crítica de Machado de Assis à elite escravista no final do século XIX consiste exatamente em remarcar a racionalidade dessa elite ultra degenerada que se dá por satisfeita quando o sistema econômico e as ideologias que o sustentam se mantêm intactos. Certamente, a felicidade de Brás Cubas durou pouco, naquele momento os quilombos abolicionistas, as fugas coletivas, as revoltas, a compra coletiva de alforrias feitas por associações de trabalhadores livres eram muito mais fortes que as ideias desse corpo moribundo e cadavérico.

Com efeito, a crítica machadiana é implacável. A burguesia aprendeu que o racismo enquanto uma forma de opressão social se mantivesse intacta na sociedade brasileira era necessário evocar sua “razão”, uma razão rasteira e degenerada, mas que dava corpo às relações sociais com um espírito prudêncio. Para que sorrisse e se alegrasse com cada efeito devastador das heranças da escravidão tanto na economia quanto na subjetividade da população negra foi necessário inventar a ideologia da democracia racial. Essa teoria surgiu a partir dos anos 1930 e até os dias de hoje tem uma importante relevância para frações da burguesia brasileira. É a partir deste aspecto das relações raciais no Brasil que iremos analisar o governo Lula-Alckmin.

3. O governo Lula-Alckmin e o racismo institucional.

O governo Lula-Alckmin iniciou um novo momento nas relações raciais após quatro anos de governo Bolsonaro. Como havíamos definido desde as eleições de 2018, a ascensão da extrema direita, com Bolsonaro na presidência, um inimigo declarado da população negra, se operou na sociedade brasileira um choque à direita nas relações raciais, ou seja, uma movimentação da burguesia e suas instituições de Estado com o objetivo de passar reformas econômicas e atacar fisicamente a população negra e sua cultura. Nesse sentido, também se operou uma tendência à superação pela direita da democracia racial, isto é, havia um reconhecimento – que não era explícito nem verbalizado por Bolsonaro que insistia que não existia racismo no Brasil – de que o Brasil era um país imerso no racismo, mas que o negro que não se adequasse a essa nova correlação de forças seria exterminado. O resultado disso foi o aumento absurdo de operações policiais, de chacinas em favelas, de assassinato da população negra pela polícia (84% das pessoas mortas pela polícia em 2021 eram negras), de ataques a terreiros de candomblé e umbanda, de crimes de injúria racial, do uso indiscriminado do reconhecimento por foto para efetuar prisões e por aí vai.

Mas a situação política do país mudou, não tem mais um presidente racista que junto aos militares e com o apoio do regime, principalmente do Centrão, governadores e o STF, deram sinal verde para tudo isso. Lula e a frente ampla não só não têm a mesma política como precisam dialogar com o fenômeno da questão negra, indígena e de gênero por conta de sua grande capilaridade nas massa trabalhadoras de conjunto, mas, especialmente na juventude. Por isso, a escolha de Silvio Almeida para o ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e Anielle Franco para o ministério da Igualdade Racial, assim como Sônia Guajajara para o ministério dos Povos Originários.

Mas o fato é que quatro anos de governo Bolsonaro e de choque à direita nas relações raciais mudaram não apenas as relações raciais no Brasil como o conjunto das relações sociais. Se de fato já não existe uma extrema direita localizada desde o executivo para atacar a identidade e cultura negra, por outro, os efeitos desse choque rearranjou as relações raciais de uma forma desfavorável aos trabalhadores. Basta ver que as mortes cometidas por policiais no começo deste ano aumentaram em alguns estados (Mato Grosso do Sul, São Paulo e Pernambuco), as operações policiais em favelas no Rio de Janeiro seguem acontecendo, assim como os ataques a terreiros e outros casos de racismo, como o caso da professora que foi perseguida em supermercado em Curitiba e em protesto para mostrar que não estava roubando nada do mercado, tirou sua roupa. Soma-se a isso o fato de que o bolsonarismo é um fenômeno social nacional e segue existindo mesmo após a derrota eleitoral, como estamos vendo com as expressões de ataques nas escolas.

Por outro lado, o choque à direita nas relações raciais e o próprio bolsonarismo ajudou a forjar uma juventude que abomina o racismo e não acha que lutar pela superação das desigualdades seja “mimimi”, como diz a direita em relação às pautas democráticas. Ao contrário disso, vimos surgir uma juventude que ama ser negra, não tem receio de se enfrentar com o bolsonarismo e de denunciar a polícia, bem como os casos de racismo; uma juventue que se interessa por comunismo, as histórias de luta do povo negro como de Zumbi dos Palmares e inspirada no Black lives matter.

Frente a tensão entre esses dois pólos sociais, a Frente Ampla e Lula optaram pela tentativa de estabilização das relações raciais a partir da criação de ministérios antirracistas que apoiados na representatividade negra possam elaborar políticas públicas para se “enfrentar” contra o racismo. A ideia como a própria Anielle Franco já anunciou é a luta contra o racismo institucional, com o objetivo de reverter os retrocessos feitos por Bolsonaro. Certamente, há uma grande diferença entre um Sérgio Camargo que queria mudar o nome da Fundação Palmares para Fundação Princesa Isabel, para reconhecidos intelectuais e ativistas do movimento negro. Mas ao mesmo tempo, isso não esconde o fato de que tanto Anielle quanto Sílvio estão atuando juntos a uma coalizão burguesa que com o aval de Lula seguirá mantendo a reforma trabalhista e o trabalho precário no Brasil.

Uma burguesia herdeira da escravidão, como por exemplo a família Setúbal, família de banqueiros que irá se beneficiar e muito com a nova âncora fiscal proposta pelo ministro Fernando Haddad. Vejamos a origem dessa família nas palavras de Olavo Setúbal:

“...caminhando de volta às origens, uma sequência de antecessores de vida agitada e ousada. Homens que entraram pelos sertões do Rio Grande e do Rio Pardo, foram aos limites do Paraguai, partiram em busca das Minas de Cuiabá, delinearam linhas de navegação para que os marcos destinados a Sete Quedas pudessem ser transportados para aquele local, pacificaram arraias em Minas Gerais dominaram criminosos turbulentos, criaram vilas e formaram fazendas, fizeram fortunas e levaram vidas confortáveis. Há uma linha familiar que se liga aos eme que vieram da Ilha da Madeira e enriqueceram com o açúcar, Estes Leme têm sua origem no Lems, ramo nobre que, em meados do século XV, possui feudos em Bruges, Flandres, hoje Bélgica, e que, em Portugal lutou com o rei Dom Afonso contra os mouros na África, pelo que foram feitos fidalgos.” (Desvirando a página: a vida de Olavo Setubal, 2008, pp.21-22)

A Frente Ampla encabeçada por Lula tem nada mais nada menos que herdeiros diretos dos senhores de escravizados e bandeirantes. É com esse tipo de gente que Anielle Franco e Silvio Almeida querem combater o racismo – sem falar do reacionário José Múcio e a miliciana Daniela do Waguinho.

O que está em jogo para Lula é justamente “aprimorar” o que o PT fez durante os treze anos que governou com relação à questão negra, só que dessa vez ampliando aos ministérios a possibilidade de fazer demagogia de que vão acabar com racismo no Brasil. A ideia é mudar sem tocar no essencial que são as reformas e a precarização do trabalho que golpeia em cheio a população negra, sobretudo uma massa de jovens negros que dedicam suas vidas todos os dias durante horas de trabalho extenuantes como entregadores uberizados. Não foi à toa que Lula para “comemorar” os trinta anos da Secretaria de Promoção de Igualdade Racial (SEPIR), anunciou um pacote de medidas contra desigualdade racial que nem sequer cita os trabalhadores precários, desempregados e uberizados desse país que somam milhões e que são em sua grande maioria negros.

Ainda que essas políticas públicas num país atravessado por uma profunda desigualdade social e econômica possam ter efeitos que diminuem o sofrimento das população negra e refletem século de luta do povo negro, ocorrem no marco de não alterarem o racismo enquanto um determinante histórico e social, e mais, são sempre ameaçadas, atacadas e rifadas no momento seguinte, com a crise e o fortalecimento da direita e da extrema direita. Não à toa, as possibilidades de propostas nesse sentido passarem no congresso são baixíssimas, como a própria Anielle já atestou. Algumas medidas foram tomadas por Lula, por exemplo, que sancionou a lei que equipara a injúria racial ao racismo e criou o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.

O governo Lula nesses primeiros meses precisa lidar com a seguinte contradição. Imerso numa crise orgânica onde o fenômeno da questão negra emergiu com Junho de 2013 e foi uma trincheira de resposta aos quatro anos de choque à direta nas relações raciais, somados ao impacto internacional do Black lives matter, segue vivo na juventude, a Frente Ampla precisa tentar incorporar esse fenômeno para dentro do estado e do regime. Por isso, a tentativa de estabelecer uma luta antirracista que seja a partir dos ministérios, desde o Estado capitalista e das mãos dos trabalhadores e da juventude organizados. A Frente Ampla e Lula criam uma divisão na questão negra “atendendo” de certa maneira as expectativas não da classe trabalhadora precária, mas sim dos anseios progressista dessa juventude que tocam na questão da representatividade e de esparsas política públicas, como o reconhecimento dado por Lula de terras de três comunidades quilombolas.

Há uma tendência do governo Lula em tentar de certa maneira recuperar a ideologia da democracia racial como parte de estabelecer legitimidade do ponto de vista das relações raciais, dialogando com o fenômeno da questão negra na juventude trazendo pra dentro do estado algumas demandas desse setor.

Lula na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, na terra indígena Raposa Serra do Sol, chegou a dizer:

"...resolveram contar a história que os índios eram preguiçosos, e portanto era preciso trazer o povo negro da África para produzir neste país" e em seguida que "toda desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação.”

Ele recuperou, essa tese de Gilberto Freyre que dizia que os brasileiros vivam num país harmônico do ponto de vista das relações raciais, isto é, sem racismo. Isso acontecia, porque o elemento português ao longo da colonização conseguiu guiar as raças negra e indígena a um nível de incorporação, a partir de seus elementos positivos, à cultura brasileira a ponto de se integrarem socialmente, dando origem ao mestiço, o brasileiro. O resgate não é fortuito, ao mesmo tempo que dá um recado aos próprios ministros sobre os limites de suas ações contra o racismo institucional, afirmando uma tese bastante importante a burguesia brasileira, por outro, também tenta dizer que o impulso fundamental dela, a incorporação do negro na sociedade brasileira apartando suas contribuições na luta de classes, pode ser recuperado.

Se por um lado a tese estabelecia que o passado escravista é distante e a realidade racista uma mentira, por outro, a teoria da democracia racial tinha o objetivo de integrar do ponto de vista cultural a população negra ao estado brasileiro, tentando amenizar os efeitos do racismo na classe trabalhadora – não à toa o samba, capoeira, carnaval, futebol passaram a integrar o quadro da cultura nacional. Por isso, Lula e a Frente Ampla tentam através da representatividade negra e da luta contra o racismo institucional, incorporar esse setor de vanguarda ao estado brasileiro. Isso tudo, para expressar que tenta “combater” o racismo na medida em já ficou evidente que o racismo segue sendo um elemento importante na sociedade brasileira.

O envio de tropas da Guarda Nacional a crise do governo Fátima Bezzera (PT) e o tráfico, além do caso da bolsonarista que agrediu um entregador negro na zona sul do Rio de Janeiro são exemplos disso e das inúmeras denúncias de trabalho a escravidão que surgem cotidianamente.

4. Pancrácio e a luta antirracista

Voltando à crítica de Machado de Assis à elite escravista. Há um outro personagem, também escravizado moleque, das crônicas Bons Dias que vale a pena a referência nessas notas. Só para nos situarmos no tempo, Bons Dias circulou na Gazeta de Notícias entre 1888 e 1889 nos tempos acalourados do final da escravidão, tratou justamente do debate da abolição sobre a perpectiva de um relogeiro proprietário de escravos. Obviamente que Machado de Assis não estava alheio aos processos de luta que inviabilizavam a manutenção do sistema escravista, a cada ano que passou no século XIX ficou mais que claro que o escravizado se tornou sinônimo de incerteza e instabilidade no regime escravista.

Daí já podemos perceber um pouco de sua crítica e ironia. As crônicas são narradas em primeira pessoa, na figura daquele dono de escravos que está irritado e inconfirmadíssimo com os rumos que os debates abolicionistas tomaram nas vésperas da abolição, entre abril e maio de 1888. Ele tenta a todo custo não transparecer esses sentimentos, enaltece suas virtudes e coloca em jogo sua fé para mostrar que está disposto a acompanhar as mudanças do país. Credita o fim da abolição aos “homens da boa sociedade” do Antigo Regime e queria de todas as formas ver o pronunciamento da Princesa, mas sua condição de saúde momentânea não o permitiu.

Inclusive, ele se postula como uma espécie de “profeta” que “antecipa” as decisões da princesa e a lei da abolição. Nada mais que a hipocrisia da elite escravista brasileira que não só estava inundada em cólera por saber que perderia a propriedade escrava, mas também porque queria mascarar esse sentimento de todas as formas. A história da luta de classes havia ensinado que os próprios escravizados criaram agruras no seu destino e por isso não queriam demonstrar de jeito nenhum que havia sentido aquela derrota.

A altivez dele não passa de pura demagogia. Não à toa, no dia 19 de maio, ou seja, seis dias após a proclamação da abolição, o narrador ainda não tinha “concedido” a liberdade a seu escravizado, Pancrácio. E quando foi chamá-lo para dar a boa notícia, a notícia da liberdade, o fez dando uma quantia em dinheiro e também o agredindo:

“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do Diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.”

Machado de Assis assinou essas crônicas com o pseudônimo Boa Noite. A ironia e crítica dele já estavam contidas desde o título, para o narrador, agora um ex-proprietário de escravizados que descontava sua raiva em Pancrácio como condição de sua conformação como fim da escravidão. Os dias estavam longe de serem bons. Ao mesmo tempo, o pseudônimo utilizado por Machado reflete também uma grande satisfação em ver que o sistema escravista que dava sustentação àquela elite reacionária e cheia de pompa ia chegando ao seu fim.

Entretanto, o cerne de toda sua crítica escravista está contida na própria forma em que narra os últimos dias da escravidão no Império brasileiro. Machado poderia ter escolhido outros personagens para narrar os últimos dias de escravidão, quiçá um abolicionista. Mas preferiu um ex-proprietário inconformado não apenas porque era o retrato fidedigno da sociedade escravista no final do século XIX, mas porque naquele momento os proprietários de escravos e os senhores de engenho eram quase que meros espectadores da luta contra a abolição e quase não tinham mais poder algum.

A ironia de Machado para narrar a abolição consiste justamente em deixar em destaque um ex-proprietário decrépito que só aceita a contragosto os rumos da história enquanto vê nos escravizados a verdadeira força da luta pela abolição. Pancrácio aparece apenas apanhando e recebendo “passivamente” o direito pela liberdade, mas na verdade se analisamos etimologicamente seu nome, percebemos que Machado de Assis quer mostrar o oposto disso. Do latin “Pan” siginifica “todo” e “crácio” remete a “poder, ou seja, o escravizado “tem todo o poder”. As crônicas Bons Dias não são nada mais nada menos que uma advertência à elite senhorial que tenta de todas as formas tirar o peso do fim da escravidão da força da luta dos quilombos, revoltas e greves.

Machado de Assis quando fala da elite escravista também revela como compreende seu principal inimigo, os escravizados. Eles têm todo o poder para se enfrentar e decidir os rumos da história sem confiar nem um pouco numa elite reacionária e racista que se pudesse ainda nos materia agrilhoados e de joelhos em frente a eles. Essa é uma lição muito importante para pensarmos hoje a organização independe dos trabalhadores na luta contra as reformas e ataques dos últimos anos. O PT e a Frente Ampla querem difundir a ideia de que a luta antirracista será mediada pelo próprio Estado, mas ao contrário disso, a crítica machadiana nos leva a refletir a força para se enfrentar contra cada setor reacionário desse regime a partir da classe trabalhadora organizada. Não pode ser que confiemos numa Frente Ampla que reúne burgueses herdeiros diretos da Casa-Grande em nossa luta contra o racismo e a precarização do trabalho. De mãos dadas com esse tipo de gente que orgulharia e muito Brás Cubas e companhia, a luta antirracista não pode e não dará passo a frente sequer.


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FOOTNOTES

[1Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes, pp. 60-61.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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