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Funk: a música negra que a burguesia não conseguiu calar

Ana Vitoria Cavalcante

Dossiê

Funk: a música negra que a burguesia não conseguiu calar

Ana Vitoria Cavalcante

Com as mais diversas rimas, do consciente ao proibição, do ostentação ao bruxaria, o funk atravessa décadas desenvolvendo as suas mais diversas vertentes, todavia, suas raízes são fincadas na cultura negra e proletária. Expressando desde a dura realidade vivida por essa parcela da população, suas contradições e aspirações de um futuro melhor. Assim como o samba e o rap, vai ser levado pela classe dominante à marginalidade, entretanto, mesmo com toda a operação da burguesia em deslegitimar esse gênero musical, ele encontrou o seu lugar entre as massas.

Breve história da música negra

O funk no Brasil vai beber da fonte da música negra internacional. Com seu berço nos EUA, vai nascer do desenvolvimento do Blues nos anos 30, e mais tarde vai ter sua versão eletrificada, conhecida como Rhythm and Blues. A junção desse novo ritmo com as músicas protestantes das comunidades negras americanas, vai dar luz ao Soul, tendo como seus maiores representantes Ray Charles e James Brown, se constituído como trilha sonora da luta negra pelos Direitos Civis e a luta anti-belica contra a Guerra do Vietnã, em uma momento onde a radicalização do movimento negro vai se desenvolver e ter como principal figura o Partido dos Panteras Negras.

Boa parte desse movimento nos anos 1960 e início dos anos 1970, vai desenvolver o que ficou conhecido como funk ou funky, unindo vários ritmos da música negra, vai deixar de ter uma conotação negativa para representar o orgulho negro, com músicas de protesto contra a violência do estado e o enaltecimento da beleza negra, que foi avançado em várias esferas, como afirma Vianna: “tudo podia ser funky: uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida como funk”. É dessa tradição musical, mas também das rebeliões populares e dos ascensos operários ao redor do globo, a juventude negra estadunidense vai desenvolver a cultura hip-hop, que marca uma geração inteira de jovens que vão denúnciar o que estava colocado para os negros e pra classe trabalhadora nos subúrbios, com o rechaço, em especial, a violência policial.

No Brasil, esse mesmo período foi marcado por grandes processos de luta de classes, sobretudo com os levantes operários contra o regime militar, e a classe trabalhadora negra também protagonizou na esfera da cultura o que ficou marcado como os bailes soul, que se tornaram representações da luta contra o racismo e a ditadura militar. As veias da cultura negra sempre estiveram entrelaçadas com a denúncia das condições colocadas pela burguesia para o conjunto da classe trabalhadora e dos setores oprimidos, com o funk não foi diferente.

Funk: as contradições do gênero

Rap da Felicidade, dos MCs Cidinha e Doca, vai tomar as rádios do país, fazendo milhares de pessoas cantarem a música que se tornou uma manifestação clara da denúncia da vida levada pelos moradores das favelas, assim como as aspirações da população frente às condições precárias de vida. O funk, assim como o samba e outras expressões da cultura negra foram alvo da tentativa da burguesia de marginalização e criminalização desse gênero. Herschmann (2005) relata sobre os arrastões nas praias do Rio de Janeiro no início dos anos 1990, e a associação que a mídia burguesa tentava fazer ligando os casos que ocorriam nas praias cariocas com o funk. Décadas depois, vemos esse mesmo episódio com os rolezinhos em 2013, onde jovens precarizados marcaram diversos encontros em shoppings e grandes centros de consumo historicamente negado a eles. Nesse mesmo momento vimos a mídia burguesa, com os seus programas sensacionalistas associarem o funk ostentação à juventude “baderneira".

Ao contrário do cenário dos anos 90, os primeiros anos do séc. XIX, foram marcados pela propaganda de progressão das condições de vida, com o aumento do poder de consumo e ascensão social da juventude. Com os impactos do neoliberalismo, a burguesia vestiu uma roupagem progressista absorvendo demandas legítimas das classes populares, entretanto, fortalecendo aspectos que não se chocavam com seus interesses de classe. Nesse âmbito, tomemos como exemplo o funk ostentação.

Essa vertente que vai nascer na Baixada Santista, em meados de 2010, quando o país ainda não havia sentido diretamente os impactos da crise internacional de 2008, mas já apresentava contradições importantes nas melhorias parciais das condições de vida da população. A crise de 2008, que já atingia a classe trabalhadora internacionalmente, vai ser sentida pouco tempo depois no Brasil e vai ter como marco as jornadas de Junho de 2013.

O funk ostentação, como o seu próprio nome se refere, tem como tema principal a ostentação de bens de consumo, valorizando artigos caros como roupas e acessórios de grife, carro e motocicletas de luxo, bebidas importadas, além de enaltecer um modo de vida de extravagância em suas letras e videoclipes, de forma hiperbólica. Essa narrativa que vai ter como base material as políticas de transferência de renda, impulsionamento do consumo interno que vão se expressar de forma legítima no funk ostentação, expressando a ânsia pela melhoria de vida, entretanto, se reflete também de forma contraditória, pois vai trazer esse aspecto desde uma perspectiva individual, fortalecendo uma perspectiva neoliberal.

É por meio do desenvolvimento dessa vertente que vai se dar início à indústria do funk tal como conhecemos hoje. Konrad Dantas, dono da produtora Kondzilla e um dos criadores da estética do funk ostentação, começou a produzir os videoclipes no ano de 2011, com equipamentos semiprofissionais e vai ser pioneiro em profissionalizar as produções desse gênero, ganhou destaque por produzir videoclipes de vários hits de funk que emplacaram sucesso. Hoje, a KondZilla se tornou uma holding, possui 4 empresas.

Assim como afirmava Marx, na sua obra clássica A ideologia alemã, as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante, definição essa que se estende para a esfera da cultura. Entretanto, a cultura também é o âmbito que a burguesia tenta impor sua hegemonia, dessa forma, necessita fincar suas ideais incorporando de forma rebaixada a cultura da negra e da classe trabalhadora, isto é, precisa eliminar seus elementos subversivos mais avançados, pois se chocam diretamente com seus interesses.

A burguesia, na sua tarefa histórica de reservar a classe trabalhadora tanta miséria, marginalizando todas as suas expressões, no âmbito da cultura falhou miseravelmente, podemos ver com o Jazz a nível internacional, ou mesmo com o próprio funk. A arte foi a arma que os negros atingiram em cheio a burguesia e não se renderam aos padrões culturais da classe dominante.

Bibliografia:
HERSCHMANN, M. Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2005.
VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.


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Ana Vitoria Cavalcante

estudante de Ciências Sociais da UNICAMP
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