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TEORIA MATERIALISTA | A necessidade de uma teoria do conhecimento materialista da projeção

É evidente que a consciência humana não apenas reflete a realidade exterior, reproduz suas características, mas também projeta suas possibilidades de desenvolvimento, prevê possíveis desdobramentos dos acontecimentos, é ativa e criativa frente à materialidade que a circunda.

quarta-feira 28 de outubro de 2015 | 00:39

Em sua obra filosófica ’Materialismo e empiriocriticismo’ Lenin sistematiza a teoria do conhecimento materialista como teoria do reflexo, ou seja, a ideia de que a consciência humana ao conhecer a realidade que lhe é exterior reflete no pensamento essa realidade; seguindo assim a tradição que vinha desde os grandes materialistas franceses do século XVIII.

Apesar da correção da teoria exposta por Lenin penso ser ela ainda unilateral, portanto limitada e parcial, devendo, assim, ser desenvolvida e aprofundada. Uma epistemologia (teoria do conhecimento, campo da filosofia que estuda a capacidade do conhecimento de apreender a realidade) materialista que entende o pensamento puramente como reflexo da realidade exterior faz da consciência elemento passivo, apenas receptivo, frente a realidade, não permitindo assim a compreensão do conhecimento como elemento ativo, que ao apreender a realidade que lhe é exterior não apenas é receptivo frente a ela, mas também criativo,construtivo.

Já n’O Capital’, na famosa passagem onde diferencia a atividade da abelha em relação a do pior arquiteto, Marx da indicações sobre uma teoria da projeção:

"Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito."

Também os filósofos marxistas Karel Kosik e Georg Lukacs irão colocar elementos importantes para o desenvolvimento de uma teoria epistemológica da projeção. O filósofo tcheco (Kosik) de forma mais explícita, sem contudo aprofundar os insights que desenvolve em sua obra ’Dialética do Concreto’:

"A teoria materialista do conhecimento como reprodução espiritual da realidade capta o duplo caráter da consciência, que escapa tanto ao positivismo quanto ao idealismo. A consciência humana é " reflexo", e, ao mesmo tempo "projeção"; registra e constrói, toma nota e planifica, reflete e antecipa; é ao mesmo tempo receptiva e ativa. Para que se expressem "as coisas mesmas", sem lhes imputar nada, deixando as coisas como são, é necessária uma atividade de um gênero particular ".Kosik, Karel, Dialética de lo concreto; disponível (tradução própria).:

https://marxismocritico.files.wordpress.com/2012/05/dialecticadeloconcreto.pdf

O húngaro (Lukács) de forma menos direta, principalmente por via de seus debates sobre teleologia em sua grande obra a ’Ontologia do ser social’.

Aqui exponho apenas elementos iniciais de uma pesquisa a ser desenvolvida e sucitar os debates necessários ao aprofundamento de questão que vejo como essencial para o desenvolvimento de uma perspectiva materialista para a teoria do conhecimento.

Reflexo e projeção

A compreensão da teoria do conhecimento materialista como reflexo da realidade exterior e anterior ao pensamento parte de uma metáfora; o pensamento que apreende a realidade funciona como um espelho capaz de reproduzir a realidade na consciência, representando simbolicamente as características da realidade refletida.

O limite dessa forma de compreender a relação entre consciência e realidade exterior é que a consciência acaba aparecendo como elemento meramente passivo, reprodutivo, frente à matéria, perdendo assim seu papel ativo na apreensão da realidade. O conhecimento em relação à matéria é assim visto dentro dessa perspectiva como a maior capacidade de o pensamento reproduzi-la em todas as suas características e particularidades.

Sem dúvida essa é uma característica essencial do pensamento, sua capacidade de refletir a realidade que lhe é exterior, apreender suas particularidades e características, da forma mais fiel e aproximada possível; mas se nos limitamos a ver nessa capacidade a única propriedade da consciência humana em sua relação com a matéria acabamos tendo uma visão limitada e unilateral de suas potencialidades.

Essa inclusive é uma das críticas centrais das correntes idealistas em filosofia a perspectiva materialista; essa seria reducionista e mecânica em estabelecer a relação entre o pensamento e realidade, não apreenderia o lado ativo e criativo do pensamento em relação a realidade, crítica inclusive feita pelo próprio Marx ao velho materialismo em sua primeira tese contra Feuerbach.

Mesmo nas visões mais dialéticas da teoria do reflexo, que entendem claramente que o pensamento não é uma fotocópia da realidade, mas a apreende a partir de aproximações sucessivas, sempre de forma limitada e parcial, como uma espiral que sempre se aproxima de seu centro sem nunca alcançá-lo (como na imagem utilizada por Lenin em seus cadernos filosóficos), limitada pelo momento e possibilidades históricas do conhecimento, essa relativa unilateralidade se mantém.

Assim, é evidente que a consciência humana não apenas reflete a realidade exterior, reproduz suas características, mas também projeta suas possibilidades de desenvolvimento, prevê possíveis desdobramentos dos acontecimentos, é ativa e criativa frente a materialidade que a circunda. A própria reprodução e reflexo da matéria pressupõe essa atividade de projeção, essa capacidade de antecipar e imaginar as possibilidades de seu desenvolvimento.

Uma teoria epistemológica da projeção, portanto, é necessária para preencher essa lacuna e superar limites na teoria do conhecimento materialista, mostrando como o pensamento além de reproduzir e refletir a realidade, de forma sempre aproximada e parcial, pode também projetar suas possibilidades, antecipar suas potencialidades, além de receptivo é também ativo e criativo frente a materialidade.

Indução e dedução

Um dos problemas centrais da filosofia moderna é a questão de como a partir das múltiplas experiências do sujeito do conhecimento, de suas múltiplas induções, é possível a formulação de deduções, ou seja, como a partir de uma análise da realidade, de um conhecimento analítico, produzir novas sínteses. O problema foi formulado primeiramente pelo filósofo empirista inglês David Hume em sua obra ’Investigações sobre o entendimento humano’. Segundo Hume nosso conhecimento, que é sempre baseado e limitado por nossa relação empírica, sensível, com a realidade, não permite nenhuma síntese, nenhuma dedução a partir das experiências vividas, posto que toda dedução, toda nova síntese, seria apenas uma imposição do pensamento, uma arbitrariedade, dado que por princípio não poderia ser vivido empiricamente.

Ex: o conhecimento que temos de que o Sol nascerá no dia seguinte, de que se soltarmos um corpo pesado na Terra ela cairá ao solo, que se empurrarmos um objeto ele se moverá, não são efetivos conhecimentos, mas apenas suposições arbitrárias, imposições dadas pelo costume de nosso pensamento à realidade, posto que não temos ainda a experiência de que o Sol nasceu efetivamente no dia seguinte, que o corpo que soltamos concretamente caiu, etc.

O primeiro a buscar resolver o problema será o alemão Emanuel Kant, de uma perspectiva idealista, contudo. Para o filósofo de Königsberg o que permite o que ele chama de juízos sintéticos é a existência de um "sujeito transcendental", de uma capacidade de apreensão da realidade abstrata, existente em todos os seres humanos.

A questão a ser explicitada aqui é como uma teoria materialista do conhecimento que veja esse apenas como reflexo da realidade pode cair em problemas análogos aos levantados por Hume na segunda metade do século XVIII (sem necessariamente cair nas absurdas ilusões idealistas que se expressam no pensamento do filósofo inglês).

Posto que o conhecimento apenas reflete a realidade como são possíveis novas sínteses, como é possível afirmar coisas sobre uma realidade ainda não vivida, não experimentada? Seria efetivamente impossível. Essa possibilidade de um conhecimento sintético, no entanto, de deduções a partir das múltiplas induções se dá não pela existência de um abstrato e ideal sujeito transcendental, mas pela capacidade concreta do pensamento humano de a partir das múltiplas experiências vividas, projetar as possibilidades de desenvolvimento da realidade, prever seus acontecimentos, imaginar seus desdobramentos.

Ex: a partir das múltiplas experiências de que o Sol nasceu podemos projetar que ele nascerá novamente amanhã, as múltiplas experiências que tivemos soltando corpos pesados nos permitem projetar que eles continuaram a cair, etc.

Projeção e práxis

Essa capacidade de projetar as possibilidades de desenvolvimento da realidade não vem, contudo, da existência de um abstrato sujeito transcendental, como pensava Kant, mas da sistematização da práxis, da atividade social consciente dos seres humanos, tanto fisiologicamente, no desenvolvimento do cérebro do ser humano, como expressa Engels em seu artigo sobre ’O papel do trabalho na transformação do macaco em homem’, como nas superestruturas através das quais a humanidade sintetiza seus conhecimentos da realidade.

As estruturas mentais, portanto, através das quais os seres humanos apreendem a realidade exterior, que permitem que reflitamos e projetemos essa realidade, são expressão da sistematização, da organização e idealização de sua práxis, de sua atividade efetiva de transformação do meio ambiente.

Em contrapartida é essa capacidade de projetar as possibilidades do desenvolvimento da realidade, dos desdobramentos possíveis da atividade humana sobre o meio circundante, que permite essa nova forma de atividade do ser humano sobre o ambiente que é a práxis, que tem como núcleo fundamental o trabalho, como atividade especificamente humana.

Todos os animais podem agir sobre seu ambiente e transformá-lo, mas só o ser humano pode agir a partir de um plano idealizado de antemão, e em sua realização submeter tanto sua ação, seus instintos e impulsos, quanto a realidade exterior a esse plano.

Projeção e ser genérico

A partir dessa capacidade desenvolvida em sua ação prática sobre o meio de projetar suas possibilidades de desdobramento podemos também nós seres humanos, como sujeitos coletivos, projetar nossas próprias possibilidades de desenvolvimento como ser genérico, como seres sociais.

A partir desse elemento se desenvolve outra diferença entre seres humanos e os outros animais; enquanto os segundos têm seu ser genérico determinado por suas características biológicas, instintivas, nós podemos, a partir de um conhecimento científico da nossa própria realidade, projetar novas formas de relações comunitárias.

Não estamos fadados a reprodução do mesmo sempre novamente, ao eterno retorno, mas podemos imaginar, criar mentalmente, sonhar com novas relações sociais e lutar escrupulosamente para realizar nossos sonhos de uma nova sociedade.

Projeção e pensamento estratégico

É elemento fundamental de pensar estrategicamente buscar prever os movimentos do inimigo (como bem sabe todo jogador de xadrez) assim como buscar prever o desenvolvimento dos sentimentos, da combatividade, de suas próprias tropas.

Aqui também a capacidade de projetar os possíveis desdobramentos da realidade material, inerente a capacidade humana de apreender o meio, é essencial. A cada movimento de seu exército projetar os possíveis movimentos do adversário, antecipando esses movimentos, buscando assim sempre ocupar as melhores posições que permitam uma melhor preparação para cada um dos conflitos particulares, das escaramuças, que juntos compõe a totalidade da guerra.

Projeção e liberdade

"Liberdade é a necessidade reconhecida", assim define Engels a liberdade, seguindo diretamente Hegel. Sem sombra de dúvida esse é um fator fundamental para a liberdade, porém essa transcende o reconhecimento da necessidade; a partir dessa característica e da capacidade que temos de projetar as possibilidades futuras podemos efetivamente escolher de que forma nos colocar para afirmar determinadas possibilidades de desenvolvimento e negar outras.

Isso porque o desenvolvimento da realidade humana, tanto individual quanto coletiva, não se dá de forma imediata, independente de nossa ação, mas é mediado pela forma como atuamos na realidade.

Assim, ao reconhecermos as formas necessárias de desenvolvimento da realidade exterior, material, tanto social quanto natural, reconhecemos também que nossa atuação, a maneira como nos portamos frente a essa realidade, é elemento ativo também para sua formação.

A partir desse reconhecimento, da apreensão das leis do desenvolvimento dessa realidade e de nossa capacidade de projetar suas possibilidades podemos escolher como atuar frente a essa realidade, como elementos ativos de sua formação. Como elemento ativos que somos da formação dessa realidade essa escolha não é puramente passiva, mas parte ativa dos rumos que toma o desenvolvimento da realidade.

É essa capacidade de projetar a influência de nossas escolhas sobre os rumos que irá tomar o desenvolvimento da realidade sobre a qual atuamos o fundamento da ação livre. Liberdade não significa a negação dos instintos e impulsos naturais, mas a capacidade de controlá-los e canalizá-los na busca de um determinado fim.

Essa capacidade que temos de controlar e canalizar determinados impulsos é expressão de nossa capacidade de projetar o desenlace negativo ou positivo de sua realização imediata, as possibilidades de realizarmos outros desejos ou planos caso controlemos os impulsos imediatos, tornando assim possível a realização de projetos maiores posteriormente, etc.




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