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Análise | Com epicentro na França, uma onda de greves se desenvolve em vários países da Europa

Só nos dois últimos meses já ocorreram uma dezena de greves e mobilizações de massa na França contra a reforma da previdência. A aplicação do decreto antidemocrático 99.3 para aprovar esta reforma, repudiada nas ruas e rechaçada pela maioria da população, significou um salto bonapartista por parte de Macron. Isto abriu um ponto de inflexão e radicalização na luta, com a multiplicação de mobilizações espontâneas, greves duras em setores estratégicos, cortes de ruas, ocupações de colégios e universidades e fortes enfrentamentos com a polícia. O processo de luta de classes na França é o mais avançado do continente e viemos cobrindo-o em diversos outros artigos publicados no Esquerda Diário. Neste artigo veremos o que está havendo em outros processos de greve na Europa, apresentando um panorama mais amplo que abre espaço para alguns debates estratégicos.

Josefina L. MartínezMadrid | @josefinamar14

sexta-feira 14 de abril de 2023 | Edição do dia
Texto traduzido do Ideias de izquierda, original em espanhol.

Do outro lado do Canal da Mancha, no Reino Unido, vem se desenvolvendo uma a maior onda de greves dos últimos 50 anos no país, enquanto que na Grécia houve 3 greves gerais desde o fatídico acidente de trem ocorrido em 28 de fevereiro. Na Alemanha, a maior greve de transportes e serviços públicos dos últimos 30 anos paralisou o país no último 27 de março, e em Portugal, a mídia referia-se a um “inverno do descontentamento” em fevereiro, pela onda de greves de professores, trabalhadores da saúde e ferroviários. [1] Na Europa, não se vivia um cenário deste tipo, com greves importantes ocorrendo simultaneamente em vários países, faz pelo menos uma década, desde os anos que seguiram a crise capitalistas de 2008.

As greves como catalizador de um profundo descontentamento

Em 11 de fevereiro, 140 mil docentes toaram as ruas de Lisboa em uma manifestação na maior manifestação da educação da última década. “Estou aqui pelos meus alunes, pelos meus colegas precários, por questões maiores que envolvem os trabalhadores, por causa do congelamento (dos salários)”, explicava Maria Guerra, professora de Leiria (situada 150 km ao norte de Lisboa). Os professores ficaram “exaustos” depois da pandemia e agora são atacados pela inflação. [2] E se a greve era por salários e pelo plano de carreira, esta também servia para canalizar a expressão de mal-estares acumulados pela categoria.

Na Grécia, as greves e manifestações explodiram a partir do acidente de trem no qual morreram 57 pessoas no dia 28 de fevereiro, e muitas destas pessoas eram trabalhadores e estudantes universitários. Também nesta mobilização, se expressa a raiva acumulada por múltiplas razões. “A dor converteu-se em raiva pelas dezenas de companheiros e cidadãos mortos e feridos”, afirmava o sindicado ferroviário em um comunicado. Desde então foram convocadas 3 greves gerais, em 8, 13 e 16 de março, às quais se somaram a greves no serviço de metrô e duas semanas de greves no serviço nacional e interurbano de trens. Na greve do dia 8, a imprensa internacional destacava a massividade das manifestações, e que em todas as cidades “foi notório o protagonismo da juventude, pouco comum nas convocações sindicais”. Em algumas localidades, como Patras, Volos, Heraclion ou Mitilene “não se viam manifestações tão grandes desde o fim da ditadura em 1974”. [3] Durante a greve feral de 16 de março, convocada por ambas centrais sindicais, do setor público e do privado, ADEDY e GSEE, esvaziaram-se os aeroportos, o transporte aquaviário não funcionou, pararam os trens, metro, ônibus e taxis. A greve foi sentida com força no setor público, na saúde e na educação, e repetiram-se as manifestações nas cidades principais, terminando com choques com a polícia e uma forte repressão. Imagens que não se viam desde a chegada do Syriza ao poder, em 2015. A deterioração dos serviços públicos é uma consequência direta das privatizações e dos planos de austeridade impostos pela Troika de 12 anos para cá, aplicados pelos conservadores e também pelos neorreformistas do Syriza. Isto combina-se agora com um salto na crise, produto da inflação, acelerada pela guerra na Ucrânia.
O salto inflacionário também tem sido o disparador da maioria das greves na Alemanha, ocorrendo há vários meses em hospitais, na educação, nos correios e nos portos. A “mega greve” do transporte em 27 de março paralisou o gigante alemão. Neste país, a inflação alcançou 8,7% em fevereiro; os sindicatos EVG e Ver.di estão exigindo 10,5% de aumento salarial, enquanto que as patronais oferecem somente 5% e mais um bônus extra. A união de ambos os sindicatos é algo inédito nestes últimos anos. A greve foi acompanhada de mobilizações em diversas cidades alemãs e gerou um importante debate nos meios de comunicação. Ainda assim, apesar da agitação patronal contra a greve nos dias anteriores, a jornada segue de forma tranquila. Os sindicatos não colocaram, até agora, nenhuma continuidade à luta, anunciando que voltaram-se para as mesas de negociação salarial.

Os trabalhadores da saúde dizem “Não!”

No Reino Unido, o ponto mais alto da mobilização produziu-se com uma mega greve no dia 1 de fevereiro. Muitos jornalistas definiram esta como uma greve geral de fato, porque confluíram as greves de ferroviários, servidores públicos, enfermeiras, bombeiros, professoras e professores e outros setores. Neste dia, 500 mil trabalhadores saíram às ruas em protesto contra o aumento do custo de vida.

No setor privado, as greves conseguiram nos últimos meses algumas vitórias importantes. Por exemplo, nos meados de fevereiro, os motoristas de ônibus de Londres suspenderam a greve, por ter conseguido o aumento recorde de 18%. No setor público, o governo de Sunak mantinha uma linha dura e um discurso quase thatcherista contra os grevistas, promovendo uma nova legislação antissindical. Por isso, as greves no setor público adquiriram um tom político maior, de enfrentamento ao governo.

Mais recentemente, Sunak tentou fechar acordos separados com cada sindicato. No 16 de março, chegou a um acordo com os sindicatos do NHS (Saúde pública nacional) para frear temporariamente as greves, em base a um aumento de 5% com pagamento extra pelo trabalho durante a pandemia. Segundo a legislação britânica, deve-se abrir uma consulta entre os filiados ao sindicato para a avaliação da proposta, e isto ocorrerá no final de abril. Os sindicatos, exceto o UNITE, apresentaram esta proposta de acordo como uma vitória e chamaram à aceitá-lo.

O mais interessante é que nas últimas semanas, surgiu uma campanha intersindical chamando à rechaçar esta oferta salarial do governo, tanto entre os trabalhadores do NHS (Sistema de Saúde britânico) quanto nas associações da educação. Com o lema “NHW Workers Say NO!”, estão sendo abertas campanhas explicando porque rejeitar as ofertas do governo e continuar com as greves (ainda que não existam propostas concretas a respeito da continuidade destas greves). [4] Em uma declaração, assinalavam “Éramos heróis na pandemia, mas quando tratamos de melhorar nossos salários, viramos o inimigo. Sabemos que em todo o país, há gente com raiva. Sigamos jutos, todas as categorias, todas as áreas, todos os sindicatos”. O resultado destas consultas definirá o panorama nos próximos meses, apesar da estratégia da maioria dos sindicatos se resumir a apostar numa mudança eleitora em 2024 que coloque os trabalhistas no poder, depois de mais de uma década de governos conservadores.

As greves da saúde tem sido um elemento comum em vários países depois da pandemia. No Estado espanhol, desenvolveram-se manifestações massivas pela saúde pública em várias cidades. Em Madri, uma maré branca foi às ruas no último dia 12 de fevereiro, com centenas de milhares de pessoas em apoio à greve dos médicos da atenção primária, e contra o sucateamento da saúde pública. Também houve lutas de outros ramos da economia sem ser da saúde, e inclusive algumas destas lutas obtiveram vitórias, como as trabalhadoras da Inditex-Zara, que conseguiram aumentos acima de 15%. As direções sindicais matém as greves divididas por setor de produção, sem nenhuma continuidade e sem um programa de união das categorias, seja entre efetivos e terceirizados, seja de dentro e de fora dos hospitais. As burocracias majoritárias não convocam uma greve geral no Estado Espanhol desde a última década (a última foi em 14 de novembro de 2012). Com uma inflação relativamente controlada de 3,3% em março (ainda que para alimentos, seja de 7,6%), a CCOO e a UGT impuseram a “paz social” do braço da ministra do Trabalho do Partido Comunista, Yolanda Díaz, e do governo “progressista” do PSOE-Podemos. Em um ano fortemente eleitoral, com eleições municipais autônomas em maio, e eleições gerais no fim do ano, as burocracias e a esquerda reformista se lançam a uma campanha dirigida pela opção do “mal menor” contra a direita, atuando para manter a coalizão governamental com o social-liberal PSOE.

Um retorno Desigual da luta de classes

Os processos grevistas que citamos aqui estão marcados pelas novas condições econômicas e políticas abertas no continente com a pandemia, a inflação e a guerra na Ucrânia. Enquanto os governos das principais potências europeias vêm aumentando os investimentos militares e o discurso bélico através da OTAN, o “front interno” começa a ranger e mostra importantes contradições. Assim indica o retorno, ainda que desigual, da luta de classes. E quando os governos respondem as manifestações com medidas mais bonapartistas e repressivas, como o caso de Macron, a raiva se estende.

O ponto mais avançado da luta de classes neste momento está na França, e o que acontecer lá impactará para além de suas fronteiras. Lá começaram a emergir tendências à auto atividade por parte de setores mais combativos, seja através de greves duras, seja através de coordenações de luta ou rechaçando a traição das burocracias.

O que nos interessa destacar é que, em vários países da região, está se produzindo uma mudança para a tendência à maior intervenção da classe operária, que começa a mover-se em greves por recuperação salarial ou condições de trabalho. Na maioria dos casos, as burocracias sindicais conseguem dividir ou pacificar estas lutas por dentro. Ao mesmo tempo, como defendeu Santiago Lupe em um artigo sobre este tema: “o outro grande ponto em comum entre as diferentes burocracias de cada país é como estão atuando como um verdadeiro braço do Estado, zelando para que as greves e o descontentamento operário não se ligue ao questionamento da política imperialista de seus respectivos governos”. Quer dizer, estão tratando de separar as lutas no “front interno” do questionamento à política externa imperialista destes Estados.

Outro elemento a se destacar é a participação e solidariedade de setores da juventude nestas mobilizações e greves, como ocorre na França de forma mais ativa, mas também na Grécia e no Reino Unido. Uma juventude golpeada pela precarização, politizada pelos movimentos contra a crise climática, pelo movimento feminista e antirracista. Jovens que sentem que não devem nada ao capitalismo, que estão girando à esquerda ao calor de novas experiências de luta. Esta é uma contratendência importante aos ideais distópicos de “no future” e ao individualismo presente em setores da juventude, assim como contra a influência da extrema direita, que busca capitalizar de forma reacionária esse descontentamento.

A onda de greves atual, no entanto, não é comparável com o auge do movimento operário e popular do maio de 68 francês, o outono quente italiano ou a primavera de Praga, momentos do último ascenso revolucionário no continente europeu, marcado pela radicalização operária e da juventude. A lembrança do processo emerge, mesmo assim, como um clarão, quando vemos setores da juventude francesa mobilizando-se pela madrugada para apoiar um piquete operário e enfrentar a repressão policial, ou quando trabalhadores da refinaria mais importante da França chamam a generalizar a greve por tempo indeterminado. Nestes exemplos é possível vislumbrar a potencialidade de uma classe operária que, quando predisposta ao combate, pode agrupar atrás de si setores da juventude, dos movimentos anti racistas e de um feminismo ligado à luta de classes, contra governos imperialistas e contra o capitalismo.

Desde a irrupção da grande crise capitalista de 2008 até hoje, temos visto o retorno da luta de classes, que se desdobrou em vários ciclos, com o limite de não haver superado o momento da revolta (ou a combinação de greves parciais, controladas pelas burocracias, com tendências “revoltistas” como os coletes amarelos ou setores de juventude). Neste marco, vez ou outro operaram diversos mecanismos para desviar a mobilização até formas distintas de institucionalização, com o objetivo de recompor regimes políticos em crise. [5]

A esquerda reformista, que se agrupa na França ao redor de Mélenchon – apoiado inclusive pelo NPA -, pretende encabeçar todo o descontentamento, as mobilizações e as greves, até uma hipotética mudança eleitoral apostando em um “governo de esquerda” nos marcos do regime burguês. Da mesma forma atuam as direções sindicais no Reino Unido, para fortalecer a base eleitoral dos trabalhistas, ou a esquerda neo reformista espanhola, apostando em um novo ciclo do “mal menor”.

Os processos atuais, como os que se desenvolvem na França e mais incipientemente em outros países, colocam alguns elementos novos. Diante da rápida deterioração das condições de vida, e do endurecimento bonapartista dos governos – que acompanha no “front interno” com a política de rearme imperialista – setores operários e de juventude começa a se radicalizar, enquanto que amplos setores da classe operária começam a despertar. Isto coloca a possibilidade de avançar até um novo momento da luta de classes, a uma condição que se possa superar a política das burocracias sindicais e reformistas.

Os companheiros do Revolution Permanent (NdT – o Esquerda Diário da França) vem dando a luta por esta alternativa, impulsionando a Rede pela greve geral como polo que agrupa setores combativos, chamando pela formação de comitês de ação pela greve geral e por uma lista de reivindicações para unir o conjunto da classe trabalhadora, com uma política de independência de classe que tem por objetivo derrotar Macron na luta. A luta política e programática contra as burocracias e as correntes reformistas é chave para que setores avançados da classe operária e da juventude façam experiência com estas direções e tire conclusões acerca da necessidade de uma perspectiva independente, anticapitalista, socialista e revolucionária.


[1[1]El Gobierno portugués, en el invierno del descontento: profesores, sanitarios y ferroviarios en huelga, El País, 11/02/2023.

[2[2]Profesores de la escuela pública lusa toman Lisboa en la mayor protesta de maestros, El Imparcial, 12/02/2023.

[3[3]Grecia vive la mayor huelga general de la última década en protesta contra el accidente de tren, El País, 08/03/2023.

[4[4]NHS union members step up campaign to reject ‘paltry’ pay deal, The Guardian, 19/03/2023.

[5[5]Para aprofundar nesta questão, sugerimos o livro de Matías Maiello, De la movilización a la revolución, Ediciones IPS, 2022.





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