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África | O declínio do Sudão ao caos

Desde 15 de abril, chegam notícias de intensos combates que deixaram centenas de mortos e milhares de feridos nas ruas de Cartum, a capital sudanesa. Um conflito estourou entre duas facções militares pelo poder no país, com consequências incertas.

segunda-feira 24 de abril de 2023 | Edição do dia

O Sudão se converteu novamente em um cenário de violência descontrolada que perturba a estabilidade de todo o norte da África. O regime de fato controlado pelas Forças Armadas do Sudão (SAF), lideradas pelo general Abdel Fattah al-Burhan, vive a sua pior crise após a sublevação do grupo paramilitar Rapid Support Forces (RSF), liderado pelo general e empresário Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti. O chefe do levante lidera um exército privado de cerca de 100.000 homens e conseguiu controlar posições-chave dentro da capital Cartum. Ambos os generais foram aliados na execução do golpe militar de 2021, mas várias tensões acumuladas explodiram recentemente.

Os combates começaram em 15 de abril. Centenas de vídeos nas redes sociais mostram confrontos de rua e aviões voando baixo metralhando ou bombardeando diferentes partes da cidade subsaariana, incluindo o aeroporto internacional. No momento, sabemos de pelo menos 350 mortos e mais de 3.200 feridos, segundo o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde da ONU, Tedros Ghebreyesus. Há também um número indeterminado de pessoas deslocadas que, se o conflito se espalhar, podem chegar a centenas de milhares. Devido à deterioração de infraestruturas vitais, cerca de 70% dos hospitais próximos aos locais de conflito estão fora de serviço e 9 deles foram bombardeados, segundo dados do Sindicato de Médicos do Sudão.

Esses confrontos não são raios em um céu sereno. A situação atual, se continuar a se agravar, pode mergulhar o Sudão em uma guerra civil e se espalhar para os países vizinhos da região. Nas linhas seguintes tentaremos entender em profundidade o que está acontecendo no Sudão a partir de seus problemas estruturais e históricos.

As raízes históricas dos confrontos

O Sudão passou por fortes turbulências políticas nas últimas décadas, incluindo uma prolongada Guerra Civil (1983-2005) que fragmentou sua integridade territorial em duas com a independência do Sudão do Sul em 2011 e um processo de mobilizações que terminou com os 30 anos do regime autocrático de Omar al-Bashir em 2019, em um processo semelhante ao da Primavera Árabe que em 2011 derrubou os regimes vitalícios do Egito, Líbia e Tunísia e iniciou guerras civis prolongadas no Iêmen e na Síria. Desde que conquistou a independência do Reino Unido em 1956, o Sudão sofreu golpes em 1958, 1969, 1985, 1989, 2019 e 2021, sendo o governo de três décadas de al-Bashir o mais longo no cargo.

O regime de al-Bashir foi construído tendo como modelo os governos militares dos países árabes (Egito, Líbia, Síria, Iraque, entre outros), e uma vez que o regime caiu, sua estrutura de poder associada ao Exército permaneceu intacta. Disputas internas entre militares e remanescentes da antiga Polícia Secreta, gangues paramilitares institucionalizadas e líderes tribais - que tinham um lugar subserviente ao regime de Al Bashir - ferviam enquanto o principal grupo paramilitar, as Forças de Apoio Rápido (RSF) - também chamadas de Janjaweed (que pode ser traduzido como “cavaleiros armados”) - alimentado por grupos tribais de pastores de camelos com cerca de 100.000 homens, permaneceu na órbita do governo.

Seu líder Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, primeiro apoiou a mudança de regime e depois o governo de fato de Abdel-Fattah Burhan (2021), aumentando a influência e a autonomia de sua organização dentro do Estado. Burham e Dagalo colaboraram para esmagar as massivas mobilizações e expectativas democráticas que derrubaram a ditadura em 2019, hoje se enfrentam para estabelecer um novo regime autocrático que mantenha seus lucrativos negócios. A atual disputa de poder entre esses dois generais tem suas raízes naquele evento, mas eles não têm grandes diferenças sobre qual regime deve governar no Sudão.

A facção do Exército al-Burhan encarregou-se de depor formalmente o ditador em 2019, como forma de aplacar as massas e sustentar os privilégios da corporação militar. Os protestos continuaram por um ano com comissões organizadas por trabalhadores, estudantes e profissionais. Os líderes dos protestos, incluídos a frente dos partidos Forças pela Liberdade e Mudança, cederam a várias das reivindicações mais importantes para chegar a um acordo de transição com o Exército para estabelecer um governo eleito sob a "tutela" dos líderes militares , que conservaram importantes parcelas do poder.

Entre 2019 e 2021, uma parte do governo de transição permaneceu em mãos militares e outra em mãos civis, embora na prática as alavancas fundamentais do poder estivessem sob o controle do Exército. As reformas tentadas pelo ex-primeiro-ministro civil, Abdalla Hamdok, foram sistematicamente bloqueadas pelo general al-Burham, que suscitava cada vez mais dúvidas sobre o seu compromisso com a "transição democrática", ao mesmo tempo que os partidos liberais mostravam a sua impotência para implementar as reformas exigidas pelos manifestantes que derrubaram o regime de al Bashir. A chave foi ter deixado o monopólio das armas, dos negócios estratégicos e do comando da política internacional nas mãos do Exército.

As expectativas frustradas no processo de transição, a subordinação dos partidos liberais à agenda imposta pelo Exército e a fragilidade da organização autônoma da população que saiu às ruas em 2019 enfraqueceram as bases do movimento. O golpe de 2021 uniu SAF e RSF para esmagar o movimento de massas, que viu centenas de milhares de sudaneses se mobilizarem e exigirem um governo inteiramente civil organizado em torno de comitês de resistência. A pressão popular que acumulou revolta devido à situação econômica cada vez mais grave desde o golpe (inflação de 400% e 20 milhões de pessoas em situação de fome) forçou um novo acordo em dezembro de 2022, estabelecendo um governo fraco de "transição" com a intenção de manter eleições no final de 2023.

Esse acordo foi promovido pelos Estados Unidos apoiando Burhan e as FLC, mas outros setores se opuseram a ele por diferentes motivos. Em princípio, a RSF se opõe a qualquer transição para um regime democrático; alguns líderes locais que controlam grupos armados se opõem porque não foram convocados para o processo político e fizeram demonstrações de força bloqueando os principais portos do Sudão, no leste do país, por onde passa 90% do comércio exterior. Também alguns sindicatos como a Associação de Profissionais do Sudão (que desempenhou um papel fundamental desde o início dos protestos) continuam firmes em exigir uma mudança estrutural que destrua as bases do antigo regime. Depois de uma primeira experiência fracassada, os comitês de resistência mantêm três linhas vermelhas: não negociar com os militares, não dividir o poder com os militares e não legitimar os militares.

Tanto as SAF quanto os Janjaweed, que compõem as RSF, embora estejam em conflito, não parecem dispostos a aceitar nenhuma das demandas dos comitês; ambos pretendem formar um regime autocrático. Até agora assassinaram impunemente centenas de manifestantes desde 2019, no passado cometeram crimes aberrantes como o genocídio que ceifou 300.000 vidas na região de Darfur em 2003. Hoje se enfrentam, mas ambos os grupos têm como prioridade o esmagamento definitivo da mobilização de massas como condição necessária para estabelecer um novo regime.

A grande divergência militar

As divergências entre as facções adiaram indefinidamente a "transição", pois a RSF se recusou a ingressar no Exército porque Hemedti se recusou a perder a base de seu poder e privilégios, baseada na autonomia da milícia. Embora Hemedti e a RSF nunca tenham afirmado fazer parte do governo central, eles acumularam enorme poder durante o regime de al-Bashir e desde o último golpe em 2021. Por outro lado, eles também representam diferentes interesses econômicos e alianças internacionais, o que poderia indicar tacitamente que eles têm visões diferentes do regime.

Burhan, como chefe das Forças Armadas (SAF), controla um importante complexo militar-industrial e estabeleceu fortes relações internacionais com os Estados Unidos (que mantinham um bloqueio a al-Bashir, acusando-o de abrigar "terrorismo internacional"), bem como as perspectivas de "paz" com o Estado de Israel. Ele também é apoiado pelo Egito (com quem tem uma ligação para conter o crescimento da Etiópia) e por influentes líderes islâmicos que chegaram ao poder nos dias da ditadura de Omar al-Bashir. Nesse sentido, é provável que ele busque alguma forma de legitimação por meio de eleições, como al-Sisi faz no Egito.

Hemedti controla as minas de ouro na região de Darfur (principal fonte de riqueza do Sudão acima do petróleo), bem como vários negócios, incluindo ferro, aço e transporte. Seus aliados são o general Haftar da Líbia, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, principais compradores de ouro contrabandeado de Darfur, e para quem contribuiu com tropas RSF na guerra do Iêmen. Esses vínculos sugerem que sua visão do Estado é semelhante à das monarquias do Golfo.

Cada um deles conduz uma política externa paralela, tendo reuniões próprias de alto nível com governos regionais e internacionais que têm interesses no país, entre eles: Estados Unidos (propulsor dos acordos de transição), Rússia (que construirá um porto no Mar Vermelho) e o Estado de Israel (Burhan assinaria a paz sob os conhecidos Acordos de Abraão). Por outro lado, o Sudão faz parte da Nova Rota da Seda promovida pela China e, através da China Harbour Corporation, ganhou licitações para a construção de terminais de contêineres e controla o porto de Haidob em uma localização estratégica do comércio mundial.

Até agora, as negociações de "cessar-fogo" não foram respeitadas por nenhum dos lados e os combates continuam. Cresce a preocupação internacional de que, se o conflito se transformar em uma guerra civil, isso poderá ter repercussões em vários países da África, o que encorajaria algum tipo de intervenção vizinha, ampliando a escala do conflito. Imediatamente, o Egito teve que evacuar as tropas que treinavam com seus aliados e foram capturadas pela RSF no aeroporto de Merowe, ao norte de Cartum, e bandeiras da RSF foram vistas no Chade, de onde podem recrutar rapidamente soldados de tribos irmãs daquele país.

Um conflito prolongado entre SAF e RSF poderia mergulhar o Sudão, incluindo os países vizinhos, em um caos sem precedentes, abortando qualquer horizonte de mudança estrutural vislumbrada pelos manifestantes que derrubaram o regime de al-Bashir. Mas, assim como desde então já se rebelaram diversas vezes, o vencedor dos embates entre as facções militares pode voltar a encontrar nas ruas seu pior inimigo: os protestos populares.




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