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ENTREVISTA | Ricardo Antunes, Jorge Souto Maior, Valdete Souto Severo e Diana Assunção | Contra a terceirização e a precarização do trabalho: "Este não é apenas mais um manifesto"

Esta semana foi lançado o Manifesto contra a terceirização e a precarização do trabalho. Um manifesto contra a terceirização, pela erradicação do trabalho escravo, a revogação integral da "reforma" trabalhista e o reconhecimento dos plenos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras em plataformas digitais. Para contar um pouco sobre o conteúdo e objetivos do Manifesto conversamos com alguns de seus principais impulsionadores: o professor de Sociologia da Unicamp Ricardo Antunes, especialista no mundo do trabalho, o professor da Faculdade de Direito da USP Jorge Luiz Souto Maior, a professora da Faculdade de Direito da UFRGS Valdete Souto Severo e a organizadora do livro “A precarização tem rosto de mulher” Diana Assunção.

sábado 15 de abril de 2023 | Edição do dia

O Manifesto contra a terceirização e a precarização do trabalho foi lançado por mais de mil intelectuais, juristas, parlamentares e entidades. Veja e assine também aqui

Esquerda Diário: Por que lançar um Manifesto contra a terceirização neste começo de 2023?

Jorge Souto Maior: Este não é apenas mais um manifesto.

É um chamado para uma grande e urgente mobilização para a prática de atos concretos, individuais e coletivos, nas diversas áreas de atuação de todos e todas que firmam o documento, contra esta autêntica chaga que, com ares de “modernidade”, foi juridicamente acatada e integrada às relações de trabalho no Brasil em 1993, e que, desde então, tem provocado os maiores danos experimentados pelos trabalhadores e trabalhadoras, sendo, inclusive, um dos elementos que se encontram na raiz dos problemas que promovem o trabalho em condições análogas às da escravidão.

Não é mais possível conviver com esta situação em silêncio e em estado de inércia.

A rejeição das injustiças e de todas as formas de violência contra a dignidade humana é uma obrigação da cidadania e do fundamento básico da vida em sociedade, que é a solidariedade.

A recente mobilização nacional que se viu em defesa da democracia impõe que se levem adiante, de forma coerente, os inflamados discursos proferidos. E não se pode falar em democracia numa sociedade que convive, passivamente, com fórmulas jurídicas que naturalizam a precarização da vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, negros e negras, como se dá, de forma precisa, com a terceirização.

Como dito no manifesto, já passou, e muito, a hora de pôr abaixo a terceirização!

A inteligência nacional que, reconhecidamente, milita em defesa dos Direitos Humanos, explicita isto.

Este manifesto é, pois, o primeiro e grande passo para a concretização desse objetivo!

Esquerda Diário: No Manifesto, vocês apontam que a terceirização foi o caminho de entrada para o trabalho intermitente e uberizado, podem comentar essa relação, e o tema da regulamentação do trabalho em plataformas digitais?

Ricardo Antunes: O manifesto que subscrevemos nos mostra que a terceirização foi a grande abertura do caminho para desmontar a legislação social protetora do trabalho e ampliar uma fissura, uma fragmentação no interior da classe trabalhadora, porque com a terceirização trabalhadores e trabalhadoras em condições distintas se inserem no mesmo espaço produtivo, os que têm direito ou as que têm direito e aqueles e aquelas que não têm direito.

E não é por acaso que inicialmente a terceirização começou com a terceirização das atividades meio de modo a impedir que a terceirização atingisse as atividades fins, mas isso com o tempo foi demolido. Deste modo, na medida em que você abriu a terceirização e ela se insere em um processo de crescente informalidade da força de trabalho e de flexibilização - e para a classe trabalhadora a flexibilização em geral significa precarização -, a porteira foi aberta.

E com a terceirização tendo se expandido enormemente - a minha querida amiga, professora e socióloga do trabalho Graça Druck, há anos atrás falou na pandemia da terceirização -, nós abrimos a porteira, e quando a terceirização da atividade meio ampliou-se para a terceirização da atividade fim a porteira foi escancarada.

Pois bem, nesse processo, chegamos em 2017 com a aprovação do trabalho intermitente que eu já disse desde aquele momento que é a legalização da ilegalidade. Naturalmente, eu não estou falando juridicamente, eu estou falando social e sociologicamente. É a legalização do ilegal, a partir do trabalho intermitente, que significa que você trabalha e recebe e você não trabalha e não recebe, com uma mera aparência de direitos, porque é muito fácil a empresa burlar, ela joga lá no salário hora de trabalho, embute 13º, férias, isso e aquilo, e aí o vilipêndio se mantém.

Se a terceirização já é conhecidamente uma forma de regulação do trabalho que incentiva a burla, o trabalho intermitente é mais ainda. É nesse contexto, deste pêndulo entre terceirização e intermitência, que vem o trabalho em plataformas, ou o assim chamado, como ele é mais conhecido, trabalho uberizado - mundialmente falando mais conhecido por um motivo muito simples a Uber foi a primeira empresa que, nascendo numa garagem nos Estados Unidos, se esparramou para o mundo de tal modo que o Uber está em todos os lugares do mundo, as cidades de médio e grande porte, são milhares de cidades, quando falamos em trabalho uberizado todos sabem o que é.

E esse trabalho uberizado, o que significa? Ele tem embutida uma manipulação visceral que significa criar um invólucro falso de que não são assalariados e não são assalariadas, de que são empreendedores, empreendedoras, autônomos, autônomas, as empresas dizem que são prestadoras de tecnologia, quando na verdade elas exploram a força de trabalho, seja do motorista de carro, seja do entregador de moto, bicicleta, a pé ou o que for, seja da trabalhadora doméstica que atua sob o comando das plataformas. É o trabalho que é explorado, de tal modo que há uma linha de continuidade muito acentuada entre a terceirização e o flagelo atual, o trabalho intermitente, trabalho uberizado ou plataformizado. É por isso que o manifesto condena ambos.

Esquerda Diário: O Manifesto trata dos casos de trabalho análogo a escravidão, podem falar sobre a relação entre esse problema e a terceirização no Brasil?

Valdete Souto Severo: Tem tudo a ver, porque se a gente olhar os casos de pessoas resgatadas nos últimos anos em situação de escravização, verá que a maioria deles se refere a pessoas terceirizadas. Como a terceirização interpõe um sujeito entre o Capital e o Trabalho, facilita a exploração fora dos parâmetros legais. Na realidade, esse terceiro, esse suposto terceiro, ou se trata de uma figura que junto com o empregador se apropria dos resultados do trabalho (fazendo parte, portanto, do “capital”) ou tem também sua força de trabalho explorada (é um empregado muitas vezes convencido de que virou empreendedor). Por isso, sequer se trata propriamente de um terceiro. Ainda assim, essa figura interposta, na maioria das vezes uma empresa ou pessoa sem maiores recursos financeiros, permite que grandes empresas estejam mais distantes do local e da condição em que a força de trabalho é efetivamente explorada e isso facilita, sem dúvida nenhuma, a exploração em condição análoga à de escravidão.

E como a terceirização, como já disse um relatório do DIEESE, acho que lá de 2015, é uma conta que não fecha - porque a empresa que busca terceirizar busca sempre reduzir custos, e reduzir custos contratando uma empresa para contratar pessoas significa que alguém, nessas etapas da troca entre Capital e Trabalho, irá perder -, quem perde será sempre o trabalhador ou a trabalhadora.

A terceirização significa concretamente o rebaixamento das condições de trabalho. O rebaixamento das condições de trabalho é exatamente aquilo que hoje se denomina condição análoga à de escravidão. Então, a relação direta não é um acaso, é exatamente porque é a terceirização a via empresarial que mais facilita, digamos assim, a precarização das condições de trabalho. E, quanto mais precariza, mais se aproxima da condição de escravização.

Então, o que a gente está vendo, o que a gente viu acontecer, por exemplo, no Rio Grande do Sul no último mês, que em um lugar 207 pessoas e no outro 85 pessoas foram resgatadas em condição de escravização, nas duas situações, o que se tinha era o repasse da força de trabalho a terceiros.

A empresa maior contrata uma outra empresa menor que, digamos assim, faz “o trabalho sujo”, essa grande empresa se protege através da terceirização e deixa as pessoas cuja força de trabalho reverte em favor do empreendimento, ou seja, que estão viabilizando o seu lucro, serem exploradas da forma mais abjeta possível. Então não há dúvida de que sim, a escravização e a terceirização são na verdade partes de um mesmo problema. Combater a terceirização significa combater a escravização de pessoas.

Esquerda Diário: É possível dizer que a terceirização tem rosto de mulher, e de mulher negra?

Diana Assunção: Sim, é possível afirmar isso categoricamente. O processo de degradação das condições de trabalho no sistema capitalista, consequência da exploração do trabalho, se combina com a existência do patriarcado e do racismo, utilizando-se dessas opressões de gênero, raça e sexualidade para potencializar seus mecanismos de exploração. Não é um mero acaso, portanto, que quando olhamos para as universidades do país verificamos um grande batalhão de trabalhadoras da limpeza que em sua maioria são mulheres negras. É a expressão desta combinação entre capitalismo, patriarcado e racismo que Karl Marx já apontava como uma forma de baratear o trabalho de mulheres, negros e até mesmo crianças. É por isso que hoje qualquer luta feminista ou anti-racista precisa colocar no centro a batalha contra a terceirização, ao mesmo tempo que os sindicatos precisam tomar para si a luta contra essas formas de opressão.

As mulheres e negros, além disso, ocupam os piores postos de trabalho, com menores salários e direitos. Sem falar na dupla jornada de trabalho que impõe às mulheres uma segunda jornada depois de um dia extenso no local de trabalho, elas seguem trabalhando, só que desta vez gratuitamente, dentro das suas casas. Isso compõe um retrato bastante cruel da situação de vida das mulheres trabalhadoras no Brasil, que se agravou muito com a aprovação da reforma trabalhista e da previdência. Há todo um debate sobre a necessidade de igualdade salarial entre homens e mulheres, entretanto este é um debate que não pode ser encarado por fora do fato de que a terceirização tem rosto de mulher e particularmente de mulher negra. Uma igualdade salarial, que diga-se de passagem só será arrancada com nossa mobilização, para ser efetiva precisa passar também pela batalha contra a terceirização e conta a reforma trabalhista, porque é com estes mecanismos que se diminui ainda mais os salários das mulheres e negras. E as empresas contam com a terceirização para tentar driblar qualquer obrigatoriedade legal de igualdade salarial, argumentando que pagam salários iguais para seus empregados e empregadas, mas que as trabalhadoras terceirizadas não são suas empregadas, e sim da empresa terceirizada, e que não têm controle nem responsabilidade pelos salários pagos por ela. Um absurdo! Por isso também não podemos confiar nas instituições do judiciário que na recente história do país mostraram avalizar essas práticas, ampliaram irrestritamente a terceirização, e também avalizaram a aprovação das “reformas” - além de se utilizar de mecanismos autoritários.

Por isso considero tão importante este Manifesto, e por isso também no último Encontro Nacional do grupo de mulheres Pão e Rosas, do qual faço parte, um grupo feminista socialista, votamos impulsionar com muita força esse Manifesto.

Esquerda Diário: Como diz o Manifesto, a terceirização é realizada em larga escala inclusive nas universidades públicas que, contraditoriamente, têm se arrogado um papel a cumprir na defesa de direitos sociais. Podem falar sobre as consequências que isso tem tido, e a tarefa colocada nas universidades?

Ricardo Antunes: A terceirização começa no setor privado como é de se esperar, os primeiros laboratórios de experimentação da precarização, do flagelo, do vilipêndio e da intensa exploração do trabalho sempre começam no mundo empresarial. Mas com o neoliberalismo, a financeirização da economia, a reestruturação produtiva do capital, a crise estrutural do capital que nós estamos tendo já há várias décadas - agora é uma coisa óbvia ninguém ousa contestar a ideia de uma crise estrutural, porque não temos mais ar limpo para respirar, não temos alimentação que não tenha transgênicos, a temperatura global do mundo se ampliou de tal modo, aumentou de tal modo que nós temos mudança climática e a sua descompensação imensa, todo esse cenário, digamos assim, que nasce nesse período e em particular no que diz respeito ao trabalho, ele significou que seu primeiro ingresso foi a terceirização no setor privado, do mundo privado. Mas dentro do processo neoliberal nós vemos, por exemplo, no Brasil com o Fernando Henrique Cardoso e o neoliberalismo; Collor tentou implementar isso, mas não conseguiu porque o seu governo foi deposto; nós tivemos a penetração da terceirização no setor público. Como o setor público é desmontado pelo neoliberalismo, a escassez de recursos, aquela ideia da lean production, da empresa enxuta é empurrada para dentro do setor público, demissão de funcionárias e funcionários, a intensificação do trabalho, e a terceirização entrou.

A terceirização passa a ser, de repente, a alternativa que as universidades usam para manter atividades que são fundamentais como limpeza, segurança e tantas outras, numa situação que cria um dualismo muito forte, os funcionários públicos e as funcionárias públicas com estabilidade, estatutários ou CLT, e as trabalhadoras ou os trabalhadores que são terceirizados.

É evidente que esse flagelo muitas universidades não criaram porque optaram por esse caminho. Em muitas aqueles reitores que, digamos assim, são favoráveis ao neoliberalismo, à financeirização, se eles pudessem terceirizariam todas as atividades incluindo a de professores. Basta olhar o número de professores substitutos hoje e a precarização que nós temos para ver como são brechas criadas para suprir a ausência do professor ou da professora com estabilidade.

Mas a terceirização ela entra e ela acaba se tornando um flagelo, como nós vemos nas universidades públicas paulistas, como nós vemos nas universidades federais no país inteiro, como nós vemos nas universidades do exterior. Eu tenho tido muitas atividades no exterior, é muito raro você encontrar numa universidade do exterior um corpo funcional todo ele dotado de estabilidade. Não, são funcionários e funcionárias que trabalham algumas horas do dia, alguns dias da semana, sob a condição de terceirização ou de trabalho intermitente.

Qual é o desafio que nós nos colocamos? As universidades, assim como o funcionalismo público em geral, as empresas públicas em geral, no passado não precisavam da terceirização para sobreviver. Os serviços de saúde eram muito melhores quando não tinham médicos e médicas terceirizados, enfermeiros e enfermeiras que são vilipendiados. Então é um desafio, não é aceitar a terceirização como inevitável, mas combatê-la, e fazer um exercício de tal modo que os trabalhadores terceirizados e terceirizadas voltem a ser como eram 15, 20 anos atrás, parte do corpo funcional das universidades públicas.

Contra a terceirização nas universidades públicas, contra a terceirização dos funcionários e funcionárias nas universidades e nas empresas públicas em geral, porque o terceirizado e a terceirizada quando você pergunta para ele “Você está contente com esse trabalho?”, ele às vezes diz “estou contente com esse trabalho porque o pior é o desemprego”.

Aí você pergunta em seguida a ele “- Mas você gostaria de ser como o colega do lado ali que é estável, ou o professor ou funcionário que são estáveis?”, “- Claro que eu gostaria”. Eu até hoje não vi um funcionário terceirizado, nem uma funcionária terceirizada dizer que prefere ser terceirizada ou terceirizado ao invés de ter estabilidade. E nós temos que combater isso.

E o nosso manifesto chama a atenção também para isso. Último ponto, a terceirização, como está tão bem enfatizado no manifesto, toda esta imensidão de trabalho análogo à escravidão que vai até a escravidão digital dos trabalhadores em plataformas, passando pelo sucateamento das condições de trabalho encontra, digamos assim, o seu ponto de partida num processo de terceirização que começou como suplementar. Hoje tem empresas do mundo que todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras são terceirizados, de tal modo que a empresa tem uma marca e contrata uma miríade de trabalhadores e trabalhadoras que ela contrata e descontrata como uma sanfona. Em época de expansão, a sanfona abre, em época de recessão a sanfona se restringe.

Esquerda Diário: Qual a solução para o problema da terceirização?

Valdete Souto Severo: A solução para o problema da terceirização é bem simples na verdade. É proibir, tal como foi feito no passado quando a marchandage, foi proibida na Europa, foi proibida no Brasil, tal como a primeira resposta que a justiça o trabalho deu à intermediação de pessoas na relação entre Capital e Trabalho com a Súmula 256, ou seja, proibir qualquer forma de terceirização. Na verdade, esse é um assunto muito interessante da perspectiva do quanto não existe uma via, um meio, em que seja possível contemporizar aqueles que querem terceirizar com aqueles que querem proteção social para quem vive do trabalho, não tem essa possibilidade. Se a gente afirma que a terceirização é um caminho para a precarização do trabalho, é rebaixamento das condições de trabalho, porque se contratar diretamente força de trabalho é pior para a empresa do que contratar uma empresa que contrata força de trabalho, por isso a conta aqui não fecha, é porque nesse caminho de contratar uma empresa para contratar força de trabalho alguém está perdendo, quem perde é quem vive do trabalho. Então se é assim, se a terceirização é igual a precarização, não tem uma via do meio, para resolver o problema da terceirização a única forma é impedir a terceirização, é proibir a terceirização. Então é por isso que faz mais de 10, 20 anos, que poucas pessoas no Brasil vem repetindo insistentemente, enquanto a jurisprudência e a doutrina andam no caminho contrário e a gente sabe porquê, vem insistindo na necessidade de proibição e qualquer forma de terceirização, não existe divisão entre atividade meio e atividade fim. Para conter ou para de algum modo combater o problema gerado pela terceirização que é a precarização das condições de trabalho, a viabilização de trabalho infantil e trabalho análogo a escravidão, o único modo é a proibição integral de terceirizar. A relação social de trabalho tem dois polos, de um lado o Capital de outro lado o Trabalho, é assim que a legislação trabalhista encara no artigo 2º e 3º da CLT, é assim que a Constituição da República trata no inciso I do artigo 7º quando garante o direito fundamental à relação de emprego, relação de emprego tem dois sujeitos, então na verdade é simples se a gente for pensar, a solução é simples, proibir completamente qualquer espécie de terceirização.

Esquerda Diário: Concretizado o objetivo de acabar com a terceirização, como ficam os(as) trabalhadores(as) terceirizados? Perdem os seus empregos e ficam em situação ainda pior?

Jorge Souto Maior: A respeito desta legítima preocupação, que, inclusive, tem sido utilizada, entre os próprios pensadores progressistas e até representações sindicais, acabando por se constituir fator de desmobilização e, por consequência, de perpetuação da terceirização, é importante deixar consignado desde logo que, concretamente, a terceirização “não gera empregos”.

O emprego é determinado pela necessidade do processo produtivo de reprodução do capital. Para que haja emprego, ou, mais propriamente, trabalho assalariado, é necessário que haja empreendimento capitalista que envolva produção e circulação de mercadorias, o que se realiza por meio do trabalho. Se as condições estiverem dadas, o capitalista vai precisar de mão de obra, inclusive para os serviços de limpeza, vigilância etc, que, certamente, fazem parte do “negócio”. Ele só se valerá da terceirização para a contratação dessa mão de obra se este instrumento jurídico existir e porque, existindo, lhe possa garantir menor custo de produção, vindo daí, inclusive, a lógica precarizante da estratégia produtiva em questão. Se não houver a terceirização a necessidade do serviço não deixará de existir e o capitalista se verá obrigado, caso queira levar adiante o seu objetivo de produzir para reproduzir o capital, a contratar diretamente os serviços.

Então, concretamente, a terceirização não é o fator que gerou o emprego. Aliás, muito ao contrário, é o fator que contribui para a precarização do emprego.

Sendo assim, os(as) terceirizados(as) não serão conduzidos(as) ao desemprego, a menos que o capitalista, por vingança (e este é um sentido muito próprio de quem detém o poder econômico e se vê contrariado, ainda que a contrariedade não lhe cause grande dano, porque o direito não inverte os polos, apenas impõe alguns limites), queira “se livrar” daqueles(as) trabalhadores(as), contratando outros na sequência.

Sendo esta a realidade que, com razoabilidade, se pode presumir, a eliminação jurídica da terceirização deve ser acompanhada de outra garantia jurídica, constitucionalmente assegurada, que é a proteção contra a dispensa arbitrária que, por consequência óbvia, impede, igualmente, a dispensa por ato de represália e vingança, valendo lembrar, inclusive, que impera no ordenamento jurídico internacional (em premência de, enfim, reverberar de forma explícita no Brasil), o preceito da proibição da dispensa coletiva.

Assim, com o fim da terceirização, trabalhadores e trabalhadoras terceirizados(as) serão automaticamente integrados(as) ao rol dos(as) denominados(as) trabalhadores(as) efetivos(as).

E isto não se altera quando visualizamos a hipótese dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as) na administração pública, pois os mesmos preceitos jurídicos citados se aplicam ao empregador ente público.

A exigência do concurso público para efetivação de trabalhadores(as) como servidores(as) efetivos(as) não é óbice ao resultado preconizado, isto porque, primeiro, se, de fato, a questão da legalidade estrita estivesse valendo, não haveria trabalhadores(as) terceirizados(as) no serviço público, pois a norma constitucional que prevê a realização de concurso público para a contratação de servidores não traz qualquer excepcionalidade para as ditas “atividades-meio” ou qualquer outra atividade. Então, o argumento do respeito à legalidade estrita aparece apenas como retórico e até de forma desrespeitosa à inteligência humana.

Ademais, o objetivo do concurso é evitar que apaniguados do administrador público de plantão tenham acesso privilegiado aos postos de serviços. Ocorre que esta forma pouco republicana de gestão da coisa pública foi preservada nos “cargos em comissão”, para os quais, inclusive, se direcionam os bons salários. Serviço de limpeza, de vigilância e de escriturário não geram situação de privilégio aos seus executores e a contratação por meio de terceirização não gera também sequer proveito eleitoral para o gestor, podendo, isto sim, provocar desvio indevido do gasto público, em contratações de empresas de terceirização feitas com superfaturamento, ainda que mediante licitação, valendo lembrar que em alguns tipo de terceirizações, como as legitimadas pela decisão do STF na ADI 1923, sequer se exigem licitações.

Além disso, a avaliação em concreto da aptidão do(a) trabalhador(a) para a realização do serviço público, que no concurso público se mede por provas escritas, já foi verificada em concreto e, em muitos casos, por vários anos.

Assim, o único efeito jurídico e moralmente aceito para a situação dos(as) terceirizados(as), diante da eliminação da terceirização, é o da sua efetivação aos postos de trabalho.

Este movimento, é bom lembrar, busca corrigir e não promover injustiças!

Esquerda Diário: Quais os objetivos do Manifesto, em quem vocês querem chegar? Como o Manifesto pode servir como um instrumento para a luta por mais direitos?

Diana Assunção: Como Jorge, Ricardo e Valdete já expressaram em outras palavras, nosso objetivo é impulsionar um movimento contra a terceirização. Este movimento parte de um conteúdo bastante claro: queremos o fim da terceirização, a igualdade de direitos para terceirizados e trabalhadores de plataformas digitais, a efetivação de todas as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados - sem a necessidade de concurso no caso dos serviços públicos -, a punição dos patrões escravocratas e a revogação integral da reforma trabalhista. Esse programa não somente se enfrenta com toda a herança bolsonarista como também confronta posições do atual governo de Lula-Alckmin, que já declarou, por exemplo, que não irá atuar para revogar a reforma trabalhista. Portanto, trata-se de uma batalha a ser dada. Queremos escancarar a grande contradição que existe entre o discurso de “maior igualdade e mais direitos” com a perpetuação de uma situação de ultra-exploração que está legalizada, e que atinge principalmente as mulheres e negros. Começamos este Manifesto e em poucos dias chegamos a 1 mil assinaturas de intelectuais, juristas, professores e pesquisadores. A partir de agora seguiremos as assinaturas com petitório online, mas lançaremos o movimento também nas universidades, escolas e locais de trabalho com coleta impressa de assinaturas.

Estamos propondo que o Manifesto não seja um fim em si mesmo, mas justamente um instrumento de combate que pode ser utilizado também para potencializar lutas específicas em cada local. Queria dar um exemplo do meu local de trabalho, a Universidade de São Paulo. Na USP que ocupa altos postos nos rankings internacionais, a terceirização não somente é legalizada como escancarada em uma verdadeira segregação. Não é de conhecimento amplo, mas na USP um terceirizado que trabalha na universidade com salários e direitos muito menores é impedido de utilizar o ônibus interno da USP, em uma “cidade universitária” que leva este nome por ter 3.700.000 m2. Todo o restante da comunidade universitária - estudantes, funcionários, professores - recebem um cartão, o BUSP, para usar os ônibus gratuitamente. Milhares de trabalhadoras terceirizadas, cujo trabalho é fundamental para a universidade funcionar todos os dias, não recebem o cartão, tendo que pagar pelo ônibus que é gratuito para todos - justo elas que ganham menores salários, e por isso acabam fazendo tudo a pé. Isso por não serem consideradas parte da comunidade universitária. Como a Reitoria desta universidade pode sustentar tamanha segregação? Se pensamos que são majoritariamente os negros que ocupam estes postos de trabalho impedidos até mesmo de usar o ônibus, nos remetemos à segregação racial nos EUA na metade do século passado com a história de Rosa Parks, quando as leis raciais impediam os negros de usar os mesmos assentos nos ônibus que os brancos. É contra esta hipocrisia capitalista, escondida atrás de um discurso supostamente democrático, que queremos lutar. Que este Manifesto chegue em todos os cantos do país, através de atos, debates, manifestações e todo tipo de iniciativa que potencialize um grande movimento contra a terceirização e que seja uma ferramenta também para todos os trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas avançarem como protagonistas da luta pelos seus direitos como parte da classe trabalhadora.




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