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Catástrofe sociombiental | O que expõe o terremoto que abalou a Turquia e a Síria?

O resultado catastrófico do terremoto que atingiu a Turquia e a Síria com milhares de mortos e feridos não deve ser explicado apenas nas condições geológicas da placa tectônica da Anatólia, mas nos conflitos geopolíticos e sociais da região.

sexta-feira 10 de fevereiro de 2023 | 15:16

O terremoto que abalou o norte da Síria e o sul da Turquia deixou até agora mais de 12.000 mortos (número que aumenta a cada minuto) - no momento de tradução deste artigo já passam dos 21 mil mortos - e cerca de vinte milhões de pessoas foram afetadas, segundo a OMS. Este resultado não deve ser explicado apenas nas condições geológicas da placa tectônica da Anatólia, mas nas falhas geopolíticas e sociais da região. Ou seja, o impacto dessas catástrofes é atravessado por conflitos sociopolíticos e regulações de mercado. Neste artigo vamos nos concentrar nesse problema.

Embora se saiba que as cidades estão em zona sísmica, portanto os edifícios deveriam ser construídos para resistir aos movimentos das placas tectônicas, evitando deslizamentos de terra que vimos nos chocantes vídeos nas redes sociais. O pano de fundo do terremoto que aconteceu em 1999, que deixou 17.000 mortos e milhares de feridos, explica por que os prédios caíram como uma torre de cartas.

Desde então, apesar das leis que impõem construções especiais para o caso, há denúncias de que o governo faz vista grossa no uso de materiais baratos nas obras civis. Por consequência disso, são as classes populares as primeiras a sofrer uma catástrofe desta magnitude.

Embora o sul da Turquia tenha revelado um forte crescimento da construção nos últimos anos sob a gestão do presidente Erdogan, a maioria das empresas de construção está ligada a figuras de seu governo, como revela o jornal Politico. A situação pode levar a uma possível crise política para o Partido "Justiça e Desenvolvimento" por não fazer cumprir os regulamentos de construção anti-sísmica. E, tudo isso em um momento de campanha eleitoral.

É por isso que vemos Erdogan na linha de frente para "salvar" a situação. Na última quarta-feira anunciou "estado de emergência"que duraria três meses e que, segundo ele, é para que os trabalhos de salvamento possam ser "feitos rapidamente", mas sem entrar em detalhes. Como diz o jornal Política Externa, “Erdogan está claramente consciente da história; Após o devastador terremoto de 1999, a resposta lenta do governo condenou o então primeiro-ministro turco Bulent Ecevit, abrindo caminho para a ascensão de Erdogan. Em um esforço para evitar esse destino, o presidente procurou aparecer na vanguarda dos esforços de socorro."

No entanto, a realidade da região onde ocorreu o terremoto é extremamente complexa. O sul da Turquia e o norte da Síria são predominantemente curdos, um povo que reivindica sua autodeterminação e cuja população está dividida entre a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irã e, em menor escala, a Armênia. Essa reivindicação histórica os levou a ser alvo de intensos ataques militares para reprimir suas aspirações territoriais.

Na Turquia, a segregação da minoria curda se expressa em termos territoriais e políticos com perseguições de partidos parlamentares como o HDP (Partido dos Povos do Curdistão) ou ataques militares a áreas controladas pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), uma marginalização territorial que marcou economicamente esse povo durante anos. Com o tempo, isso minou as capacidades de resiliência do povo da região para resistir a uma catástrofe como o terremoto deste ano.

Desde o início da guerra civil na Síria e da guerra contra o Estado Islâmico (com a entrada de atores internacionais), tanto Erdogan, quanto o presidente sírio, Bashar al-Assad, atacaram separadamente os curdos e as áreas onde eles haviam alcançado altas graus de autonomia.

Desde que Donald Trump e os EUA deixaram de dar cobertura aérea e retiraram suas bases militares em 2019 (cerca de 600 soldados americanos ainda permanecem na região), as cidades do norte da Síria sofreram um ataque mortal dos estados sírio e turco. Hoje toda a área, já devastada pela guerra, recebeu um novo golpe deixando milhões de desabrigados com temperaturas próximas à zero. Como o noroeste da Síria é controlado pela oposição chamada “rebelde” (muitos dos quais são financiados pela Turquia ou diretamente ligados a grupos como a Al Qaeda), a única ajuda humanitária são os “Capacetes Brancos” (White Helmets) operando na terra de forma independente.

María Constanza Costa, cientista política, professora da UBA e analista internacional especialista em Oriente Médio, explica que “as áreas de Iblid e Aleppo são o último bastião da oposição na Síria. As denúncias sobre a falta de infraestrutura de saúde para enfrentar a catástrofe e os pedidos de ajuda internacional crescem a cada hora, mas a comunidade internacional não dá uma resposta contundente. O governo sírio, por sua vez, não vai enviar ajuda para regiões que não controla." E acrescentou que “o impacto e a magnitude da catástrofe têm a ver com os anos de abandono e isolamento do norte da Síria, região controlada por combatentes que se opõem a Al Assad”.

Enquanto isso, a Turquia também impede a entrada de ajuda humanitária internacional em áreas controladas pelos curdos, como Rojava (famosa pela resistência dos destacamentos de mulheres). Como se não bastasse, em um ato criminoso em meio ao desastre, a artilharia turca vem bombardeando Tel Rifat contra as YPG curdas (Unidades de Proteção do Povo), que controlam a região autônoma do norte da Síria, atingida pelo terremoto.

Os líderes curdos estão denunciando que a grande maioria das cidades curdas não está recebendo ajuda. Muitos dos resgates estão sendo realizados pela auto-organização da população. O estado de emergência declarado por Erdogan faz com que as atividades de resgate, socorro e controle da informação sobre os números de mortos e feridos e a situação dos danos na infraestrutura sejam centralizados pelo Estado, para evitar qualquer "voz crítica" (especialmente curda) em pleno ano eleitoral.

Leandro Albani, jornalista especializado no Oriente Médio, disse que "é preciso lembrar, o estado de emergência anterior que Erdogan decretou foi depois da tentativa de golpe de Estado em 2016. Essa medida foi estendida ao longo do tempo e ele a usou para encarcerar milhares de opositores, sejam eles curdos, turcos, jornalistas, etc. O HDP ficou descabeçado de seus dirigentes, pois prenderam centenas dos seus militantes e deputados. Não seria estranho que fizesse o mesmo agora, tendo em vista as eleições de maio."

Este cenário mostra que as mortes, os feridos e o sofrimento de milhões que ficaram desabrigados pelo terremoto é resultado do descaso empresarial e dos interesses nacionalistas. Uma catástrofe capitalista onde quem paga são as classes populares com suas vidas.




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